domingo, 27 de novembro de 2016

Sobre legados.

Rachel já era casada, tinha 2 filhos e trabalhado como secretária executiva durante anos, antes de realizar o sonho de  ingressar na universidade.

Silvia tinha acabado de se casar e já era formada em Economia.

Eu era recém chegada a São Paulo, tinha abandonado a Engenharia Química e assumido a minha vocação na área de língua e literatura.

Vocês tinham que conhecer a Rachel pra entendê-la. Vegetariana. Super perfeccionista. Super detalhista. Super preocupada.  Super exigente. Super dedicada. Super generosa. Super amorosa. Super solidária.  Super atenta. Super filha. Super mãe. Super avó. Ganhou o apelido de Mrs. Morel, em referência à personagem-mãe do clássico  inglês Sons and Lovers de D.H. Lawrence.

Vocês tinham que conhecer a Silvia pra entendê-la. Não há pessoa mais atrapalhada. Nem mais engraçada. E engraçada simplesmente porque é, sem qualquer intenção de ser.  E não há quem tenha histórias iguais. Sério. Nenhuma ficção chega aos pés das coisas que acontecem com a Silvia! São enredos fantásticos, cheios de tramas, subtramas, melodramas, tragédias, comédias. Mas também não há pessoa mais prática e mais objetiva. Problemas com ela não se criam e são logo colocados dentro da sua ordem de grandeza  e zonas de solução.

Eu? Bem, vocês me conhecem bem pra me entender. Sou algo no meio das duas e bem fora das duas.

Portanto,  só a casualidade - ou fatalidade - explica esse encontro  improvável na Faculdade de Letras da USP em 1978. Improvável não o encontro em si, pois, como em qualquer curso, a diversidade  é esperada, previsível e saudável. Digo improvável por ter enraizado, sobrevivido e frutificado fora daquelas salas de aula improvisadas na colmeia, onde o curso de Letras funcionava precariamente naquele tempo.  Trinta e oito anos depois, nossas diferenças fazem toda a diferença nessa amizade sólida e que  já atravessa a 3ª geração!

Não pensem que foi fácil. Rachel sofreu um pouco.  Fazíamos os trabalhos juntas, planejávamos todos os detalhes e, na hora H, eu, que não me preparava como ela, no despreparo  trocava tudo  e fazia no improviso. E ela ficava sem chão, sem saber como seguir, com aquele monte de folhas que ela tinha estudado e decorado por dias.  Ela quis me matar muitas vezes. Sou uma sobrevivente! Mas lembro com carinho das tardes e tardes na sua casa  alternando os trabalhos com as  minhas epopeias  amorosas. Ela ouvia sempre atenta, preocupada e nem sempre de acordo! Foi um alivio quando me estabilizei e casei!

Silvia estava sempre correndo! Ia de casa pra faculdade, da faculdade pra casa da mãe  e nunca tinha tempo pra nada! Uma vez tiramos zero - ZERO!! - num trabalho de francês.  Tínhamos que ler e resumir La Symphonie Pastorale de André Gide.  Inteligentes que somos,  dividimos o livro no meio e uma fez uma parte e a outra fez a outra parte. Trocamos, copiamos e entregamos. O trabalho era individual e não em grupo e a professora deu zero pras duas quando identificou as partes absolutamente iguais! Rimos de nos acabar! Duas marmanjas sendo pegas colando. Tivemos que fazer um trabalho de substituição. Bem longe uma da outra!

Formamo-nos em  1981, numa cerimônia coletiva com outros cursos em uma sala na reitoria, sem qualquer pompa ou destaque. Mera formalidade. Mas os legados desses 4 anos em que nossa amizade foi construída não cabem em nenhum diploma!

Vocês tinham que conhecer a Rachel para entender o seu legado! Ela vem de um núcleo familiar pequeno dentro de outro núcleo familiar enorme! Sua mãe, a queridíssima D. Branca, já falecida e com quem tivemos a sorte de conviver por muitos e muitos anos, ficou viúva muito jovem e com dois filhos pequenos. Mas a família maior, de avós, tios e primos tornou-se a família de referência e de lindos exemplos de união e doação. Não conheço ninguém mais dedicada e com maior senso de família do que a Rachel! Seus cuidados realmente emocionam! Além disso, tornou-se a fornecedora oficial das burekas que os meus filhos tanto amam! E é a minha consultora para dúvidas de português, tradução ou qualquer assunto correlacionado. |E a voz da consciência e sensatez!

Vocês tinham que conhecer a Silvia pra entender o seu legado! Ela dá aulas particulares  de absolutamente tudo! De corte e costura a Física Quântica! E diz pérolas aos seus alunos do tipo : Não pensem que aqui é um templo  ou tenda de milagres!! A gente chora de rir! Silvia tem uma irmã gêmea, Sandra, casada com Arnaldo, o melhor obstetra do mundo e quem me ajudou a trazer Daniel e Marina ao mundo! Só isso já seria legado pra legado suficiente! Mas ela ainda   tem 4  cunhadas que também herdamos como se fossem nossas!! Além do mais, é um guia ambulante! Conhece todas as lojas, sabe onde se compra qualquer coisa e faz os melhores roteiros de viagem!


Rachel é casada com Mauricio, que tem um coração maior que esse  mundo! Seu filho Adriano é casado com a Fernanda e têm 2 meninos: Gabriel e Ian. Adriano, professor da USP,  é o nosso olhar crítico  e cético sobre a educação universitária. Sua filha Carolina é casada com Rich, tem um filho, Joshua,  e mora nos Estados Unidos. Carolina é grande companheira e que faz enorme falta no nosso convívio diário. A Carolina é uma história à parte nessa nessa história!

Silvia é casada com Luiz Antonio, na minha opinião e  na da Rachel, um santo! Sua filha Renata, que hoje é a médica da minha filha, é a  doçura em pessoa,  casada com Fabiano e têm o Antonio, de 1 aninho e meio. Seu filho Luiz Felipe é o nosso xodó e namora a Cibelis, já adotada com torcida organizada!A caçula, Marina como a minha, mora em Londres e é a nossa Lady absoluta! Realeza da cabeça aos pés!

Nosso maior orgulho é sermos capazes de reunir, todos os anos, nossas 3 famílias e comemorarmos todas as coisas boas que vivemos naquele ano. E, por sorte, sempre temos muito pra comemorar! Principalmente o fato dos nossos filhos, e agora netos, fazerem parte desse legado e, espontaneamente (ou assim queremos acreditar!) acomodarem suas agendas para estarem juntos, interagirem, construírem afinidades e participarem desses encontros que têm tamanha importância pra nós!

Tem sido meu privilégio - e enorme prazer - receber esses encontros na minha  casa! E a cada ano, meu prazer é maior e mais emotivo! Olho pras minhas amigas, para as nossas famílias juntas, e meu coração transborda de carinho e orgulho!

Costumo brincar  dizendo que quando tudo parece fora do prumo, sem sentido e caótico, volto ao meu centro e me reconheço no mundo quando acordo e vejo que a Rainha Elizabeth continua aqui. De alguma forma, a certeza da permanência dela é a minha certeza de que o mundo ainda é  o mundo.

Mas tenho outra certeza. Quando tudo parece mesmo fora do prumo, sem sentido e caótico, esse encontro anual é a minha garantia  de que tudo continua certo no meu mundo!

Ontem fizemos o nosso encontro 2016. E hoje acordei com o meu mundo mais florido, mais esperançoso e muito mais promissor!






domingo, 20 de novembro de 2016

Pós-verdade.


O elevador de serviço está parado há dois dias. A conta de luz aumentou. Já é Natal? A unha do meu dedinho do pé está doendo, acho que encravou. Será que te amei mesmo algum dia? Mandioquinha virou artigo de luxo, Garotinho foi preso. Garotinho foi pro hospital. Garotinho foi preso. Garotinho foi pro hospital. Em que sonho te perdi? Lei do Amor fere todas as leis. Meu vestido preto com brilho não cabe mais. Viva o Uber. E os drones. E viva quem eu era com você. Empoderamento é ideologia de quem não tem qualquer ideologia. Desidratar alguém é prova de amor. A boca do inferno de Gregório de Matos foi pro céu. Mickey Mouse completa 88 anos. E eu não sei ser sem você. Dilma não vale nada. Lula não vale nada. Temer não vale nada. Renan não vale nada. Aécio não vale nada. Alckmin não vale nada. Mas quanto vale quem vale? Carboidrato não engorda. E dormir é overrated. Ai, que saudades de nós. E saudades da Darlene. Vidas Secas afogaram. Queria ir pra Mongólia. Ou pra Arcádia. Ou ficar mesmo no Itaim. O Brexit acabou com o verão no Brasil. Tudo culpa do Bob Dylan. O que nos fizemos? O que nos causamos? Não me vejo no Retrato de Cecilia Meireles. Nem no retrato de Dorian Gray. Mas me vejo no Retrato em Branco e Preto do Chico. Sempre me vejo no Chico. Queria mesmo era ser a Capitu. Só que recatada e do lar. Nosso lar. E nossas contas, contas, contas. Nossas contas desacertadas. Je suis. I am. Ai, bendito. Sonhei com o Papa Francisco e acordei de burka. O Japão é comunista. É, sim! Tá escrito na bandeira. Trump é o novo dono do mundo. Mas há ainda algum mundo no mundo?A Superlua minguou em redondilhas menores. E eu só sei que nada sei. Nem saberei. Só vou saber quando souber trazer você de volta pra mim. Sobreviverei a todas as verdades. A verdade salva? A ignorância salva. E quem me salvará do teu vazio? God save the Queen.


terça-feira, 15 de novembro de 2016

Coroas e Caras.

"Liberdade! Liberdade!... Abre as asas sobre nós..." 

Os versos acima são do Hino da Proclamação da República, mas ficaram mais conhecidos  100 anos depois, como refrão do samba enredo na vitória da Imperatriz Leopoldinense  em 1989.

Do latim "res publica" (coisa pública), o conceito de república é amplo, pois abrange outros conceitos como democracia, bem comum e liberalismo. Hoje, entendemos como república a forma de poder que emana do povo, fundamentada numa constituição  que promove, protege e garante os direitos fundamentais e as liberdades civis de todos os cidadãos de igual forma.

Em 15 de novembro de 1889,  proclamou-se a República no Brasil, pondo-se fim à Monarquia.  Teoricamente, isso significaria a migração do "império da coroa" para o  "império da lei".

127 anos depois, no entanto, ainda vivemos num autêntico sistema imperial, onde cora e lei ainda se confundem. Privilégios de poder seguem transmitidos hereditariamente. Igualdade aplica-se apenas às minorias beneficiadas. E a justiça regulamenta, predominantemente, justificativas para a impunidade.

A partir do escândalo do mensalão, em 2005, temos vivido a tímida esperança da descoroação desses impérios anacrônicos. Esperança frustrada por tão poucas punições e pelo rápido rearranjo dos podres poderes.

A operação Lava-Jato reacendeu essa esperança, ao mesmo tempo em que testemunha, atônita, as manobras mais do que  escabrosas para transformar denúncias em  vitimizações e vitimizações em denúncias.  O salve-se-quem-puder começa a abalar os pilares que , historicamente,  perpetuam coroas: lealdades, fidelidades e cumplicidades. Mas, ainda assim, ainda que com já alguns condenados, a mobilização para salvação dos podres poderes preocupa e decepciona.

A consolidação da  nossa república parece , ainda , um futuro distante e utópico e   conceito mais simbólico do que real.  As moedas de troca continuam manipuladas. É muita coroa pra pouca cara!


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Porque saber ler é preciso.

Maria foi nossa empregada por muitos  muitos e muitos anos. Já nem me lembro quantos. Ela já trabalhava conosco quando morávamos em Belo Horizonte e nos acompanhou na mudança pro Rio. Era negra, gorducha e aguentava, estoicamente, uma casa com 5 crianças com horários variados e, a partir da nossa adolescência,  as refeições com a mesa cada vez mais cheia de amigos.  Maria tinha uma melhor amiga, d. Alice, costureira, e um namorado, Bruce,  motorista de ônibus de turismo e que a esperava na rua de trás para namorarem. E era analfabeta.

Maria foi a minha primeira cobaia como professora. Fiz dela um projeto pessoal e adorava passar tempo no quarto ela, ensinando-a a escrever as primeiras letras. Falava sobre vogais e consoantes, cantava as musiquinhas que aprendia na escola e ela ia aprendendo. Quer dizer, aprendendo apenas o que tinha se proposto a aprender: escrever o seu nome. Maria Alves. Copiava, copiava, copiava. Um esforço enorme para reproduzir  as letras que compunham o seu nome sem olhar para o modelo. Maria Alves. Um nome tão comum quanto o analfabetismo que  ainda marca as tantas outras Marias Alves no Brasil.

Não tinha a dimensão, na época, do que significava viver num mundo em que letras não fazem sentido. Ou em que o itinerário do ônibus é definido pelas suas cores. Ser cega, surda e muda sem ser. E precisar se relacionar com o mundo que impõe o mistério implacável e intransponível da alfabetização.

Fui entender esse abismo muito tempo depois. E a consciência da indignidade do analfabetismo marginal me faz sempre lembrar da Maria com  admiração ampliada e orgulhosa por, por questão de honra determinada, ter aprendido  a desenhar o seu nome!

Ainda que tenhamos evoluído nas últimas décadas, o Brasil ainda ocupa a vergonhosa  8ª posição, segundo a UNESCO,  de pais com maior número de analfabetos no mundo. 8,7% dos brasileiros acima de 15 anos ainda  são analfabetos absolutos e 27% são analfabetos funcionais. Mais além, apenas 8% da nossa população são considerados "proficientes" ou seja, capazes de compreender e elaborar textos de motivações diversas, além de gráficos e tabelas, e  conseguir opinar, argumentar e se posicionar com clareza e consistência.

Tendo nas palavras a  minha formação e trajetória profissional,  tenho dificuldade em imaginar o mundo desprovido da mágica do ler e escrever. Porque aprender letras é, sim, um processo mágico. Entendê-las na sua primitividade e, a partir daí, experimentá-las em ordenações múltiplas para significados infinitos é  agigantar, alargar, libertar, transformar, romper, desafiar, ultrapassar. É multiplicar e desvendar mundos, universos. É mergulhar em realidades sonhadas ou em sonhos reais.

Precisamos intensificar  as políticas e ações  - possíveis e disponíveis - para erradicar o analfabetismo em nosso país. E acreditar que a primeira e maior das riquezas e grandezas de uma verdadeira nação  é ter nas letras, em cada uma, como em cada letra que compõe o nome Maria Alves, diamantes reluzentes!



quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Trump e muros.


Em 9 de novembro de 1989 Daniel tinha 2 anos e 4 meses e Marina quase 10 meses. E eu testemunhava, incrédula, as imagens do Muro de Berlim sendo derrubado por marretas e picaretas. Marretas e picaretas mais simbólicas do que reais e que mal tiraram lascas da solidez separatista que o tinha erguido 28 anos antes. A imagem daqueles milhares de pessoas ocupando o topo do muro me impactam até hoje. Para a minha geração, juntamente com a chegada do homem à lua, uma das maiores transformações da humanidade.

Em 2012 fui a Berlim com a Marina e emocionei-me muito diante do que restou do muro. Por tudo o que representou antes e depois da sua queda. Foram minutos de recolhimento e absorção solitários e necessários. Os grafites desordenados e de cores e imagens intensas - a maioria de teor pessimista e fatalista - carregam um simbolismo que minha filha, de outra geração, não sentiu.

Ao longo desses 27 anos,  a queda do muro tem nos assombrado com sua herança contraditória.  É  bem verdade que algumas liberdades incontestáveis ganharam espaço e o mundo desordenou-se em pontes importantes. No entanto, muitos outros muros -  visíveis e invisíveis -  foram sendo erguidos diariamente, impondo distâncias absolutas e intransponíveis. Os muros das inconciliações e intolerâncias alastram-se em proporção ainda maior do que as  pontes de conexão disponibilizadas  pelo nosso  mundo globalizado.

Hoje, num mesmo coincidente 9 de novembro, a eleição de Donald Trump re-ergue  o que talvez  seja o  muro mais simbólico da história da humanidade. O país guardião da democracia sucumbe ao autoritarismo separatista, discriminatório, preconceituoso, machista e xenofóbico. Em nome do resgate da grandeza épica -  ainda mais potente do que o Sebastianismo português - retira-se do mundo escolhendo que valores guardar e que valores rejeitar, além de escolher quem comporá a identidade idealizada e renegar, a qualquer preço, quem  ameaça a sua pureza.

A promessa do muro divisório com o México é apenas um dos muros que a partir de hoje passam a delinear  a geografia estadunidense. A proximidade com ideologias nacionalistas até então opositoras assusta. Não se imaginaria, em qualquer tempo, sob qualquer condição ou configuração, um discurso de um presidente americano alinhado com líderes antidemocráticos.

Temeroso perceber recuos tão determinantes quanto mais o mundo se mostra frágil e desamparado. Desalentador reconhecer que os movimentos para entendimento e conciliação serão paralisados. Incerto prever os desdobramentos e impactos no equilíbrio entre ordens e desordens no mundo. Essas ordenações e desordenações são mutáveis e são elas que promovem as transformações. Progressos e retrocessos igualmente.

MAKE AMERICA GREAT AGAIN. Pergunto-me em que grandeza os americanos votaram.







segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Memórias de Halloween.






Minha sogra fazia bolos como ninguém. Do simples de fubá pra tomar com cafezinho ao recheado com várias camadas e coberturas elaboradas. Era a boleira oficial da família restrita e também da família estendida. Natural, portanto, que meus filhos tenham adquirido, desde bem pequenos, o hábito, o prazer genuíno e o paladar apurado para bolos. Com o empurrão da genética, a cumplicidade da Cristina  e a ajuda da santa Betty Crocker, minha casa sempre teve bolos. Eu tive pouquíssima participação nessa tradição. Não tinha e não tenho o talento que tem, por sorte, a minha filha. Neta da avó, sem dúvida!

Mas, ainda que pelo avesso, também tive o meu momento de glória! Quando o Daniel estava no 2nd grade, ele se ofereceu para levar um bolo para comemoração do Halloween na sua classe. Fiz o bolo às pressas, sem muita vontade e com a cobertura de chocolate granulado nada original. Para torná-lo um pouco mais temático, desenhei um fantasma de marshmallow. Claro que com toda a minha habilidade, o fantasma ficou horroroso e o marshmallow começou a escorrer. Mas foi assim mesmo e, afinal, era Halloween e tudo valia!   Resulta que o bolo foi um sucesso! E passou a fazer parte das comemorações de Halloween dos anos seguintes!

"Mrs. Mazzarolo will bring her  spooky cake" me redimiu!

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O Tablado. 65 anos de mágica teatral.







A primeira peça de teatro a gente nunca esquece!

 A minha foi O Rapto das Cebolinhas, de Maria Clara Machado, encenada   num teatro dentro do Parque Municipal de Belo Horizonte, onde morei na minha infância.

Coronel, Maneco, Lucia, Gaspar, Florípedes. E o inesquecível Camaleão Alface!!! E as ainda mais inesquecíveis cebolinhas da Índia e seu chá milagroso! Esses foram os personagens que estabeleceram a minha relação de absoluta entrega à mágica do teatro!




Maria Clara Machado é a referencia absoluta do teatro infantil de qualidade!Que criança não se emocionou com o fantasminha Pluft e a menina Maribel? Ou com a bruxinha Angela de A Bruxinha que era boa? Enredos fantásticos que criavam identificação imediata com o universo infantil. Textos ricos cuja assimilação era plenamente correspondida. Emoções e conflitos familiares e empáticos. E montagens lúdicas, coloridas, envolventes. Respeito e consciência da importância do teatro na formação de habilidades e relações infantis.

O Tablado, o espaço criado em 1951, tornou-se o santuário desse universo. E da vivência e formação dos jovens que queriam se dedicar a essa arte.

Por coincidência  - ou não -  estudei ao lado do Tablado quando voltei para o Rio. O lugar exercia uma atração inexplicável! Ou plenamente explicável pelos interesses que desenvolvi mais tarde. Uma porta modesta, quase imperceptível numa pacata rua no Jardim Botânico. Sem luxo ou alarde. Um entra e sai de jovens com roupas não convencionais e ares de importância. E meu coração batia forte de curiosidade e vontade de descobrir o detrás daquela porta. Não sei dizer quantas vezes pulei o muro dos fundos da  escola para dar de frente com aquela placa sagrada: O Tablado.

Cheguei a cursar O Tablado por 6 meses. Cheguei retraída, ansiosa. Parecia estranho ocupar aquele espaço ao qual não pertencia. Intromissão solene, respeitosa. Na primeira aula, não quis participar de qualquer atividade. Observei apenas. Nas aulas seguintes, aventurei-me nos exercícios de expressão corporal, e fui, aos poucos, me integrando àquele ritual. Mas não consegui seguir. Entre uma escola academicamente muito exigente, treinos de vôlei e uma necessidade social intensa de adolescência, o Tablado simplesmente foi. Embora nunca tenha realmente ido! Muitas vezes me perguntei  o que teria sido seguir esse caminho...

Talvez ter escolhido a literatura tenha mantido o meu Tablado vivo. Talvez ter um filho de teatro seja a minha retribuição ao Tablado.  Mas nada referente ao Tablado é talvez. Se há uma certeza inquestionável é a sua importância jamais superada.

Hoje O Tablado completa 65 anos. Impossível contar quantos profissionais saíram daquela porta modesta. Ou quantas produções encantaram plateias! Ou quantas crianças foram tocadas pelos seus  personagens e tramas fantásticos!

Penso no Tablado e penso numa porta que apenas se entreabre e deixa vislumbrar pequenas porções de mágica. Como goles de  chá. Chá da Índia. Feito das cebolinhas que jamais  se deixaram raptar.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Sapatos.

Seguiu à risca as instruções de Mãe Nena. Comprou o espelho e o par de sapatos. Na primeira noite de lua cheia, posicionou o espelho perto da janela para refleti-la por inteiro. Colocou os sapatos por cima e lá os deixou, lembrando-se de pingar, todas as noites, sete gotinhas de essência de ylang ylang. Quando acabou a lua cheia, guardou o espelho e os sapatos. Esperou o momento certo. Naquela noite, sentiu ser a hora de cinderelar-se. Fez-se bonita, borrifou seu perfume predileto e calçou os seus sapatos enluados. E foi assim, tal qual um conto de fadas, que ele surgiu. Quando seus olhares se cruzaram, ela arrepiou-se. E soube que ele seria o seu caminho. Um caminho aberto para flores coloridas em campos verdejantes e pássaros gorjeadores por cascatas borbulhantes e estrelas cadentes em céus infinitos e sinfonias orquestradas no amor. Tirou os sapatos com cuidado e guardou-os bem junto do coração. Não olhou pra trás.




(Publicado no grupo MINICONTOS  em 1º de abril de 212. Palavra-tema: SAPATO)

sábado, 15 de outubro de 2016

Pelo buraco da fechadura.

Rubem Alves dizia que num mundo com informações acessíveis  nos teclados, o professor não deveria ensinar nada. Nada. Apenas espantos. Matemática, geografia, biologia e demais matérias estão nos livros, na internet, em todo lugar. Mas não os espantos. Os espantos precisam ser aprendidos, apreendidos, descobertos, valorizados.

Adoro pensar na profissão  de professor sob a ótica do espantoso!

Embora seja de uma geração em que a informação ainda precisava ser ensinada, foram os meus professores de espanto que me tocaram e transformaram. E provocaram inquietudes e despertaram curiosidades. E uma grande alegria pelo pensar!

Tive sorte. Tive grandes mestres que estabeleceram altíssimos padrões de educação possível.  E me ensinaram que a função maior da educação é promover encontros. Todos os tipos de encontro. Com pessoas, com mundos, com o mundo. Mas, principalmente, o encontro com o nosso íntimo tímido e inseguro. Mas ávido por espantar-se. Por encantar-se. Pois é no encontro com o encantamento  - verdadeiro, intenso, desprevenido - que o aprendizado se revela!

Talvez seja esse o maior desafio da educação atual. Mais do que propor novas estruturas ou reformular conteúdos,  deve-se resgatar o fundamental. E o fundamental ainda é se espichar  e contorcer para ver um pouco mais além. Ver pelo buraco da fechadura. E espantar-se e encantar-se com as possibilidades do outro lado!




quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Bob Dylan. Porque são tantos os ventos nessa vida...









A nomeação de Bob Dylan para o Nobel de Literatura 2016 foi recebida com surpresa, espanto e algum questionamento. Afinal, com tantos escritores talentosos e obras tão belas, por que a música seria elevada ao status de literatura?

Basicamente, porque os conceitos que definem as manifestações artísticas devem ser ampliados. Inclusive e talvez principalmente a literatura. Traduzir emoções, criar histórias, inventar mundos. A palavra a serviço do que toca, emociona, descreve. E, principalmente, transgride. A literatura deve provocar estranhamentos, ocupar espaços incomuns, validar inadequações, causar assombramentos.

Bob Dylan é mestre em todas essas funções! Suas composições são complexas, elaboradas e de lirismo absolutamente tocante. Suas letras são poesias no sentido mais puro de poesia e, aliada à musicalidade, têm correspondência imediata e duradoura.

Bob Dylan talvez seja o maior marco musical da minha vida (claro, não contando o CHICO!!!)! Minha adolescência foi musicada a Blowin' n the Wind, Like a Rolling Stone , Lay ,Lady ,Lay, Mr. Tambourine Man, Just like a Woman, The Times they are A-changing, It ain't me Babe, Hurricane and Idiot Wind. Músicas icônicas que atravessam gerações com a mesma potência e influência.

Mr. Tambourine Man talvez seja a mais poética de todas!  "Yes, to dance beneath the diamond sky... With one hand waving free... Silhouetted by the sea... Circled by the circus sand... With all memory and fate... Driven deep beneath the waves... Let me forget about today until tomorrow..."Quanta poesia! Quanto lirismo! Quanta beleza!

Mas, sem dúvida, são os ventos de Bob Dyan que me emocionam! Blowin' in the Wind foi hino da minha geração! Hurricane foi uma revolução! Mas o meu vento preferido, Idiot Wind! Com Idiot Wind, conheci o som do ódio e da agonia dilacerante da ambiguidade do amor perdido. Com o subversão da métrica, ele subverte a ordem do mundo e do pensamento.  "It was gravity which pulled us down... And destiny which broke us apart... You tamed the lion in my cage... But it just wasn't enough to change my heart." Obra prima!

 E que muitos e muitos outros ventos ainda soprem  belos, poéticos e surpreendentes! E que mudem cursos! E sacudam o estático e imutável!


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Dia Mundial da Careta. Ou A Careta, A Lagartixa e Os Cupins.

Era uma vez um mundo povoado por caretas de criancinhas. Línguas pra fora, olhos zarolhos, bochechas tortas e toda forma de careta que se possa imaginar! Era um mundo muito louco, mas muito divertido!

Um dia, uma lagartixa muito da caprichosa resolveu que queria para si todas as caretas desse mundo. E passou a assustar, então, criancinhas desprevenidas. Era passar alguma e a lagartixa botava o linguão pra fora! As pobres criancinhas, coração batendo forte, corriam em debandada e deixavam suas caretas para trás. A lagartixa voltava para casa às gargalhadas e guardava as caretas bem guardadinhas. Já tinha uma coleção e tanto! E quanto mais acumulava, mais o mundo ficava sem graça.

Acontece que a casa da lagartixa era infestada de cupins. Infestada mesmo. E eles se irritavam com os gritos das criancinhas e com as gargalhadas da lagartixa. Além do mais, as caretas estavam por todo lado e dificultavam seus movimentos. Cupins são lentos e pesados. E gostam de sossego para roer e comer as madeiras apetitosas em paz. E também gostam de se refastelar com a pança cheia. Os cupins não gostavam das caretas.

Pediram com educação. A lagartixa nem tcham nem tchum. Brigaram. Ela deu de ombros. Até que resolveram expulsar a lagartixa e as caretas de casa e se amontoaram duros que nem rochas para bloquear as portas e janelas pra lagartixa não conseguir mais entrar. Ela bem que tentou. Fez muita força, mas os cupins não arredaram nem um tiquinho assim.

A lagartixa sentou ali fora com todas as suas máscaras espalhadas. Experimentou uma, outra, e outra mais. Rainha das caretas! Todas suas! E deu de costas para os cupins da casa infestada. Eles iam ver só!

Mas por que então não se divertia? Por que as caretas não pareciam mais caretas? Por que o mundo parecia tão chato? Seria mesmo que caretas sozinhas não tinham graça? E ficou ali matutando enfastiada. Nem sabia quanto tempo passou, Tempo parado é o pior tempo que existe!

Até que... Mas esperem! Quem vinha lá? Ela escutava passinhos e risadinhas de criancinhas. Será? . Escondeu-se pra ver quem se aproximava. Oh...Eram mesmo criancinhas! E duas! E lindas! Seriam forasteiras? Tinham que ser! As criancinhas daquele mundo não passavam por ali desde que ela tomou para si todas as caretas. A lagartixa se fez de mortinha pra não assustá-las. E entreabriu um dos olhinhos pra ver bem o que elas faziam. As criancinhas saltitavam e riam. Pra lá e pra cá! Que alegria! A lagartixa se espichou mais um pouquinho. O que??? Tinham caretas!! Ela não podia acreditar!

Mas que caretas eram aquelas? A lagartixa nunca tinha visto igual! Não, não, parem! Mas o que pensam que estão fazendo? As caretas da lagartixa pareciam ter enlouquecido! Ao ver as caretinhas lindas das lindas criancinhas, as caretas se rebelaram. Não queriam mais morar na casa infestada de cupins. E muito menos ser caretas de lagartixas! Queriam ser o que deveriam ser! Assim, em marcha livre, saíram pelo mundo procurando as criancinhas que ficaram sem suas caretas.

E foi assim que 12 de outubro, aquele dia memorável, virou o Dia Mundial da Careta. Uma festa só! Nunca se viu tantas caretas rodopiando felizes e fazendo maluquices! E tudo ficou bem como deveria ser.

E as criancinhas lindas das lindas caretas? Olhem elas ali na foto!

E a lagartixa? O que aconteceu com a lagartixa? Deu meia volta, entrou na casinha infestada, fez as pazes com os cupins e nunca mais foi vista!



segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Juba2


Sábado, 8 de outubro. Casa das Caldeiras em  São Paulo.

No espaço reservado para a cerimonia religiosa, os tijolos aparentes  das paredes se harmonizavam com o tapete rústico e colorido que cobre a nave principal e com as luminárias de velas emolduradas apenas por um ramo verde. A música  convidava e entretinha enquanto esperamos ansiosos e emocionados.

Há algo de  solene e incomparável no cortejo de um casamento. Uma magia. A apreciação coletiva e solidária a  toda aquela simbologia e corações compartilhados na  nova unidade formada. Naqueles passos até o altar, há 2 histórias de famílias e amigos sendo contadas e celebradas. E fazer parte de alguma forma dessas histórias explica as comoções nem sempre explicáveis.

Vi o noivo entrar com sua mãe. Vi a minha amiga entrar com o pai do noivo. Tão linda e elegante!  Majestosa! Caminhei com ela em pensamento, familiar com  muitas das passadas que a levaram até o altar. Vi com imenso carinho a Renata,  sua filha mais velha com  seu marido e seu filho Marcelo com a bela namorada.  Suas imagens de crianças se misturaram às dos adultos que hoje são. Vi os netos da minha amiga protagonizarem uma das cenas mais ternas que já vi num casamento: o  mais velho literalmente puxar o seu irmãozinho que mal aprendeu a andar pelas mãozinhas, com o maior cuidado, até chegar no final da nave!  Por fim, vi o meu amigo trazer pelos braços a sua bela Juliana. 


Conheci a Juliana quando ela tinha apenas 4 aninhos. Uma menina decidida, atrevida, mãozinha na cintura e queixo pra cima. Vozeirão. E quanta atitude! Não levava nenhum desaforo pra casa, muito menos vindo de  qualquer menino "idioto"!  Juliana tornou-se uma linda, muito linda mulher! E nunca perdeu a sua personalidade forte e desafiadora!


Vê-la desfilar, altiva e bela no maravilhoso vestido de renda segurando firme o maravilhoso buquê e estampando o  seu característico sorriso espontâneo e escrachado me encheu de emoção!  Flashes desse tempo que passou tão rápido!  Quando foi que esse tempo passou a ser contado em  passos até um altar?  





Juliana, Juba na infância, casou-se com João, também Juba na infância. Daí o Juba2. Escrevi o conteúdo do site de casamento deles e, nessa construção, aprendi o que os atraiu e como  fortalecem os pilares de sua relação. Nos seus votos, na troca de alianças e nos testemunhos de seus amigos, essa  nova história  conjunta começa abençoada!

















A festa que se seguiu foi só alegria! E que festa! Em cada detalhe, uma delicadeza. E só quem conhece a minha amiga Bel consegue entender todas as delicadezas em tantos detalhes! Porque a Bel é esse tipo de pessoa que se coloca inteira!  Das gravatinhas dos pajens costuradas por ela uma a uma, até a dobra de cada forminha. Tudo tem a assinatura da sua elegância pessoal, individual e que  acolhe e prestigia!  Não sei como ela faz, mas sempre faz tudo ser especial e dedicado! É um talento que não conheço em muitas pessoas. E ela faz tão bem...

Dançamos, comemos, bebemos. Rimos. Muito. E, mais uma vez, celebramos com alegria e orgulho  a nossa amizade rara!

Bela Ju e  João: votos de imensa felicidade e uma vida conjunta plena e próspera!

 Bel e José Francisco: parabéns pra filhota! Parabéns pela linda festa!

Queridos amigos que fazem parte dessa história: como é bom termos tanto a celebrar e comemorar!
Que nossos corações continuem sempre alargados para conter tantos mais de nós!!




quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Peer Gynt. Sobre caminhos e encruzilhadas.

"Nos encontraremos na próxima encruzilhada, e então veremos se... eu não direi mais nada." (Peer Gynt - Henrik Ibsen)





Peer Gynt foi escrita em versos pelo norueguês Henrik Ibsen em 1867. Transgressora, espantosa e fantasiosa. Ainda hoje. Ainda sempre.

Os grandes dramaturgos, estes que atravessam os séculos atemporais e extraterritoriais,  o são pelo seu  conhecimento - sensitivo ou intuitivo - das profundezas das naturezas humanas. Não o conhecimento furtivo e superficial das motivações, ambivalências, virtudes e vícios, mas o conhecimento mais sensível, empático, reconhecível e traduzível. Tocar a alma. Ler a essência. E extrair delas - da alma e da essência - o que só a elas pertence, independente de contexto geográfico ou temporal. Criar o isolamento da alma e da essência é o que permite a sobrevivência e imortalidade da dramaturgia genial e garante a sua correspondência em leituras atualizadas. Ou expandidas. Ou igualmente audaciosas e não convencionais.

Mais genial ainda é conseguir extrair novas potências de uma obra de tamanha potência e oferecer um espetáculo tão absolutamente transgressor, espantoso e fantasioso quanto a intenção primeira do autor! E o Peer Gynt do Gabriel Villela é um verdadeiro abuso de genialidades!

Como explicar  o impacto de um texto tão denso - o original tem 5 horas de duração - ser condensado em 100 minutos e  não perder conteúdo?

Como explicar a complexidade do texto ser adaptado para a linguagem infanto-juvenil e não perder seus desafios?





Como explicar a beleza do cenário que sempre arrebata pelas suas alegorias? Destaque para a porta e janelas. Assinatura mineira do diretor.




Como explicar o efeito dos figurinos coloridos, palpitantes e simbólicos? Que capacidade é essa de agregar o desagregador, de combinar o destoante, de pontuar os símbolos universais do teatro, de brincar com texturas, referências, despojamento e irreverência calculados? Destaque para as máscaras que realmente se superaram nesse espetáculo! Que máscaras!

Como explicar a escolha da trilha sonora tão perfeita? A musicalidade, sempre tão presente nas montagens de Gabriel Villela,  penetra pelo palco, espalha-se pela plateia e conquista seu espaço de protagonista. Que presente!




Como explicar o efeito de puro deslumbramento de viver a magia de um verdadeiro teatro de marionetes? Pois assim me senti! Em um teatro de marionetes com cada movimento de cada boneco  cuidadosamente impulsionado por fios invisíveis e criando a fantasia envolvente que em nada pretende imitar a realidade! A não ser a realidade que apenas a fantasia do teatro consegue criar!




Como explicar a harmonia entre 15 atores tão talentosos na composição uniforme e uníssona quase impossível? Com exceção da Mel Lisboa, de quem já virei fã,  já conhecia o trabalho dos demais em outras montagens do Gabriel e cada vez mais  me surpreendo com a sua capacidade de doação e de provocar emoções. Quantos talentos - MESMO - reunidos em um só palco! Destaque para o estreante nessa trupe, não por acaso o meu filho Daniel Mazzarolo, que brilhou, encantou e mostrou  tão caudalosamente o seu potencial de compreensão, reflexão, adaptação, interpretação, generosidade, adequação e cooperação!

Talvez a explicação esteja  justamente na alternância entre caminhos e encruzilhadas. Pois assim vejo a missão do artista. Múltiplos caminhos que se encontram em múltiplas encruzilhadas. A cada novo caminho, novas encruzilhadas. De cada nova encruzilhada, novos caminhos.

E é nesse labirinto de caminhos e encruzilhadas que a arte se sustenta e se resolve. Ou se perde. Para cada resposta, tantas novas perguntas... Pra cada solução, tantos novos desafios...

Minha admiração imensurável pelo Gabriel Villela pelas escolhas de seus caminhos e  pelas encruzilhadas que nos permitem todas essas emoções e encantamentos.

Meu agradecimento aos atores que embarcam às cegas nesses caminhos indizíveis e burlam encruzilhadas quase suicidas.

Em Peer Gynt, caminhos e encruzilhadas se encontraram em todos os eus artísticos!   Imperadores de loucos! E que viva a loucura!






segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Mãozinhas que falam.

Em 24 de abril de 2002, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) passou a ser oficialmente reconhecida como parte do grupo de línguas do Brasil. Esse reconhecimento trouxe também regulamentações que garantem a sua circulação em território nacional, além de determinar que os sistemas educacionais em todas as esferas (federal, estadual e municipal) a incluam como parte integrante dos Parâmetros Curriculares.

Desde então, a implantação de escolas bilíngues para surdos tem sido amplamente debatida. O bilinguismo - constituindo a língua de sinais como primeira língua e a língua portuguesa como segunda - consolida-se, mesmo que sem unanimidade entre os profissionais bilinguistas, como proposta educacional como maiores benefícios de capacitação acadêmica e também de inclusão social do deficiente auditivo na comunidade ouvinte.

A linguagem dos sinais permite que a criança surda acesso os conceitos de sua própria comunidade, elaborando os seus sentimentos e ideias de interação com o mundo. A língua portuguesa, por outro lado, fortalece as estruturas linguísticas, permitindo maior acesso à comunicação.

A proposta bilíngue sugere um novo olhar sobre a surdez, distante de sua visão meramente clínica e reabilitadora. Entender que a surdez compromete o desenvolvimento da linguagem verbal, mas não impede os desenvolvimento dos processos não verbais, possibilita o aprimoramento dos dois universos linguísticos. E integra o deficiente auditivo no mundo ouvinte, mantendo a sua auto-imagem positiva como surdo.

Após 14 anos, pouco avançamos. As dificuldades são inúmeras e não surpreendem. Obviamente, a falta de recursos e de suporte do poder público aparecem como principais dificultadores. Relatos de instituições comprometidas com o bilinguismo apontam despreparo na formação e capacitação e, em alguns casos, até mesmo a falta de compreensão dos profissionais envolvidos. Mais ainda, por falta de mediação competente, agravam-se os conflitos de funções e papéis entre professores, professores bilíngues, tradutores e instrutores, alunos surdos e ouvintes e até mesmo entre as próprias famílias - 90% ouvintes - que nem sempre dispõem do conhecimento e orientação necessários para promover o bilinguismo pleno no ambiente de casa.

Sob condições tão adversas, o avanço é abaixo do esperado ou desejado. E tem recuado sensivelmente nos últimos 5 anos.  Uma pena.

Que a nossa surdez  coletiva  passe a ouvir  efetivamente os que não ouvem e que a inclusão se consolide de forma rápida e plena. Raízes frutíferas do diferente que nunca deve ser excludente.



quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Pra não dizer que não falei de flores.

Era um abismo inconformado com o seu triste destino. Desde a sua primeira consciência, nada mais lhe chegava que não sombras, infortúnios e limites de desesperança. Não gostava dos gemidos e soluços que ecoavam ensurdecedores por suas profundezas. Repudiava o espaço sombrio do seu confinamento. Sonhava alto, luminoso e amplo. Um dia, por descuido, uma flor caiu aos seus pés. Uma flor! Ele já tinha visto uma flor antes. Mas morta, despedaçada. Assim inteira, colorida e perfumada era a primeira vez! Que felicidade! O abismo olhou em volta. Olhou, olhou até que viu um pedacinho escondido de terra. Que sorte! Cavou um canteirinho e plantou a flor. O abismo não cabia em si de tanta alegria! Que flor linda! Seria o abismo mais colorido do mundo! E o tempo passou. E o abismo cuidou e cuidou daquela flor. E a flor cresceu. E floresceu muitas e muitas vezes. E logo o abismo estava mais florido do que o jardim mais florido do mundo! E quem chegava ali, na pontinha daquele limbo, sentia apenas cores e perfumes. E o abismo não parecia mais tão assustador...





(Publicado no grupo MINICONTOS em 24.07.2016. Palavra-chave: ABISMO)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Esperando Godot. E são tantos os ponteiros dessa vida...

"Imagine se isso... Um dia isso... Um belo dia...Imagine... Se um dia... Um belo dia isso...Cessasse... Imagine..." (Samuel Beckett)





Se o tempo constrói-se estático e desesperançado em Esperando Godot de Samuel Beckett,  suas (re)leituras sempre provocam  movimentos  de incômodo e estranhamento. Não há texto, pelo menos no meu repertório, tão simbólico sobre a (in)existência. A espera sem fim não se sabe por quem ou para que. O desolador e o inóspito como cenário para a aridez da condição humana.

A espera como protagonista é a ironia que suaviza e humaniza a complexidade das angústias, questionamentos e distrações da vida. E é na combinação entre o trágico, o cômico e o filosófico que o tempo (trans)corre fluido e capsulado.

Esperando Godot de Elias Andreato e Claudio Fontana traz essa  imagem do tempo capsulado e, ao mesmo tempo fluido, para o formato de arena. Engrenagens de um relógio dão chão e reproduzem o compasso do tempo que, paradoxalmente, passa sem passar. No centro do palco, uma estrutura metálica da árvore nua, cujos galhos apontam em várias direções.  O efeito não poderia ser mais potente! Ponteiros diversos e desencontrados que sugerem possibilidades enquanto  se encerram na roda que gira, mecanicamente,  sem começo nem fim.

Quem teve a oportunidade de assistir à dupla em Um Réquiem para Antônio se surpreenderá com a versatilidade e talento para desconstruir a dualidade Salieri/Mozart e construir a cumplicidade entre Vladimir e Estragon na mesma arena! Em perfeita sintonia, Elias e Claudio emocionam pela entrega aos personagens tão densos e intensos extraídos da simplicidade do olhar vazio e confuso... Ou do esforço do andar manco... Ou da repetição dos movimentos de se por e tirar o chapéu... Ou dos versos lindamente cantados colorindo lirismo na falta de cor... Ou nos sorrisos e abraços iluminados que aliviam o reconhecimento na solidão...

Raphael Gama como Pozzo, Clovys Torres como Lucky e Guilherme Bueno como Menino completam o elenco e harmonicamente se encaixam na precisão da engrenagem que marca o tempo que apenas espera. Suas aparições - e a única folha que surge na árvore -  são a linha de transformação que efetivamente denuncia a passagem, as passagens. E o único motor de impulsão da espera!

Não se passa incólume por Esperando Godot, não importa quantas vezes se leia ou se encene essa obra -prima!

Na montagem de Elias Andreato e Claudio Fontana, as respostas, desconexas, equilibram-se nas pontas de seus belos ponteiros!




terça-feira, 6 de setembro de 2016

Aquarius. Cancioneiro de memórias.

"Hoje... Trago em meu corpo as marcas do meu tempo... Meu desespero, a vida num momento... A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo..." (Hoje - Taiguara)





Aquarius  surpreende pela   densidade, intensidade e surpreendente suavidade! Incomoda tanto quanto emociona.  E prolonga as sensações conflitantes horas após o término da sessão.

Kleber Mendonça Filho, como seu segundo longa-metragem, confirma sua posição de destaque no cinema nacional. Apesar de abordar  questões, olhares e valores inequivocamente regionalistas, o diretor consegue imprimir temáticas universais e atuais, costurando seus fotogramas com sonoridades inovadoras.

Se em O Som ao Redor essa costura se deu través dos ruídos diversos e tantas vezes imperceptíveis do cotidiano de uma cidade, em Aquarius a música é a grande condutora. E que condutora! Uma trilha sonora grandiosa, impecável, irretocável! Da abertura na voz  inconfundível de Taiguara a Queen. De Gil e Bethania a  Ave Sangria. Nada casual. Tudo intencional e altamente pertinente e eficiente.

Livros, vinis, MP3, Cds, rádios e referências pontuam e constroem as memórias de Clara, a protagonista vivida por Sonia Braga. Todas as formas de música convivem. Nenhuma exclui. Todas agregam.



Destaco a importância da música porque ela é mesmo fundamental na narrativa de Aquarius. Os mais jovens talvez não percebam a ideologia intencional na escolha de Hoje para abertura e créditos finais. Taiguara, brasileiro nascido por mero acaso no Uruguai, fez estrondoso sucesso nos anos 70 com Hoje e Universo do Teu Corpo. Mas abandonou a trilha da Bossa Nova transformando-se num verdadeiro guerrilheiro musical contra a ditadura. Na proposta  do filme em  discutir Resistência como conceito multifacetado,  Taiguara, há exatos 20 anos de sua morte, talvez seja a melhor tradução da militância musical.



Igual referência merece a escolha da belíssima Dois Navegantes de Ave Sangria. O grupo de rock psicodélico  pernambucano surgiu no início dos anos 70 e contemporâneo ao Secos e Molhados e Bixo da Seda. Perseguido pela ditadura, lançou apenas um disco, mas um disco primoroso, cuja polêmica capa apresentava um papagaio drag queen.

São, portanto, as músicas - até quando recitadas -  que fazem as pontes do tempo e passeiam por Recife e constroem os espaços de Clara.




Clara é só espaços. Físicos, emocionais, memoriais. Públicos e privados.Clara é um corpo dentro de uma mulher, por sua vez dentro de um edifício alegórico, por sua vez dentro de uma cidade. Clara é um personagem raro: uma mulher que empresta o seu corpo mutilado como espaço de resistência. Resistência pessoal, de valores, de crenças e de memórias que lhe pertencem por direito e das quais não abre mão. Mas é também a resistência coletiva, aquela que enfrenta as violências urbanas e as forças mais perversas do poder com coragem e determinação.

Sem ignorar ou minimizar o que faz parte do imaginário feminino - maternidade, casamento, sexualidade, carreira, fragilidade, elemento agregador e sustentador da família, empatia, vaidade, etc - Clara transmite a força obstinada pela sobrevivência, independência e auto suficiência numa sociedade machista, preconceituosa, oportunista, ambiciosa e cruel.




Sonia Braga emociona com sua interpretação maravilhosa! Além de toda a sua beleza madura   - e como está linda! - alterna rispidez e doçura, desapego e posse, empatia e desprezo com muita verdade!

Aquarius é um filme bem concebido e bem executado! Micro-narrativas costuradas pelo cancioneiro cuidadoso que produzem uma macro-narrativa universal e potente. Perturbadora. E tão delicada!






domingo, 4 de setembro de 2016

Porque são eles, porque somos nós.

"A amizade é uma epifania lenta."(Leandro Karnal)

Leandro Karnal, de quem sou fã confessa, escreveu na semana passada um belíssimo ensaio sobre a amizade intitulado "Porque era ele, porque era eu", em referência à  estreita reação ente os filósofos Montaigne e Étienne de la Boétie. Vale a leitura em qualquer tempo e, em especial, nos tempos atuais de altas temperaturas nos confrontamentos ideológicos!





Mas não é sobre  confrontamentos que quero falar. Muito menos sobre  ideologias. Quero falar sobre amizade. Em especial, sobre a amizade ensinada e repassada que justifica  a  foto e o encontro dessa última sexta-feira.

Já contei, repetidas vezes, sobre a nossa experiência de  morar em Porto Rico. Já contei também ,repetidas vezes,  que, além de todos os ganhos pessoais, profissionais e familiares, o maior legado foi a amizade formada entre o grupo de brasileiros que, num feliz alinhamento dos planetas, se encontrou naquela pequena ilha nos mares caribenhos há 24 anos.

Quem me conhece, sabe que sou de longas amizades. Longas. Muito longas. Todas especias, cuidadas, cultivadas, valorizadas, repaginadas e resgatadas. Cada uma, a seu tempo, possível por afinidades, identificação, interesses, curiosidade, as vezes até por desafio. Porque morávamos na mesma rua, ou estudávamos no mesmo colégio/faculdade, ou fazíamos as mesmas atividades, ou trabalhamos juntos/as, ou conhecíamos as mesmas pessoas, ou, ou... Simplesmente porque eram eles/elas, porque era eu.

Essa amizade construída em Porto Rico difere das demais porque precisou se fazer possível. Contrariando a naturalidade que aproxima afinidades, se sustentou nas diferenças. Ou melhor, na afinidade buscada com lupa, por insistência, pelo esforço que só quem se exilou do seu ambiente natural e familiar entende. Morar em outro pais sob outra cultura e outros códigos cria uma necessidade social que alarga o acolhimento e abraça os estranhamentos.

Sermos do mesmo país ajudou. Termos filhos da mesma idade, na época entre 4 e 10 anos, também ajudou. Mas ajudou fundamentalmente a vontade de descobrir em pessoas de origens e valores e experiências de vida  tão diversas - e que talvez em circunstâncias normais jamais tivéssemos nos aproximado -  o que unia e se reconhecia.

Vinte quatro anos depois, com a maioria de volta ao Brasil e outras ainda por ai a ali, somos um grupo singular. Amiguitas. Assim nos autodenominamos. No feminino. Empoderadas. Ainda que maridos e filhos/filhas e agregados/as também façam parte.

Nesses 24 anos vivemos perdas, separações, formaturas, casamentos, nascimentos, mudanças físicas e emocionais. Turbilhões de tirar o chão e alegrias esfuziantes. Preocupações e comemorações. Choramos e rimos. Mas sempre perto. Mais do que perto. Próximas. Próximas até no distanciamento às vezes necessário e respeitosamente concedido. Elásticos com aquela folga calculada e sempre pronta pra resgate.

Nesses 24 anos, nossos pequenos se transformaram em adultos. Hoje estão todos formados, alguns casados e já com filhos. Alguns também ai pelo mundo. Cada um no seu caminho, com seus próprios valores, com suas próprias ideologias.  Mas que, ainda assim, encontram no conforto das memórias infantis o caminho para o convívio prazeroso e respeitoso.

Como foi o de sexta-feira. Ainda que desfalcado, pois muitos não estavam em São Paulo, conseguimos reunir um pequeno grupo do grupo maior aqui em casa. Com a presença de alguns agregados, a generosidade de tomar parte, fazer-se parte. Sem cerimônia, sem formalismos. Estar à vontade. Saber que parte faz aquela parte.

Para nós, amiguitas originais, uma imensa alegria e um orgulho desmedido. Talvez por saber que essa amizade da segunda geração seja também resultado de um esforço aprendido. Esforço porque sabem o quanto é importante para nós. Esforço porque também precisam buscar nas suas diferenças as afinidades que apenas as memórias da infância não sustentam.

Porque são eles, porque somos nós. E  porque é tanto amor...













domingo, 28 de agosto de 2016

Café Society. Ilusões e desilusões banhadas em luz.

"A vida é uma comédia escrita por um comediante sádico." (Café Society)





Há algo de extremamente confortador em recostar-se  na poltrona do cinema e ouvir o familiar som de jazz na introdução sem malabarismos visuais de um filme de Woody Allen.

É ainda mais confortador ouvir a sua inconfundível voz narradora ao fundo, com a entonação  típica dos grandes contadores de histórias, enquanto romances e comédias e tragédias e sátiras e críticas costuram um enredo improvável.

Café Society reúne de forma harmônica o que há de mais característico na extensa obra do diretor ainda tão produtivo aos 80 anos: amor pelo cinema, amor pelo amor, crítica social ácida, herança judaica e angústias existenciais.

A ambientação no glamour dos anos 30 é perfeita para homenagear a época de ouro de Hollywood! E não faltam referências como Barbara Stanwick,  Gloria Swanson, Um Lugar ao Sol, Casablanca, para citar apenas algumas. Figurino e cenários que encantam e primam pela estética cuidadosa e elegante!

O romance é a linha condutora do filme, através do triângulo amoroso que alterna as ilusões e desilusões do amor. Escolhas. Boas e más. E como essas mesmas ilusões e desilusões sustentam as consequências dessas boas ou más escolhas.

As críticas sociais, cínicas e ácidas, denunciam, no melhor estilo F.Scott Fitzgerald em The Great Gatsby, o vazio e superficialidade da sociedade que vive de aparências. Há muito de Gatsby  em Café Society! Principalmente a forte impulsão solar!

A herança judaica responde pela comicidade do filme!  A disfuncional família judia de Nova York e pontuada de caricaturas e exageros. As passagens são hilárias e plenamente reconhecíveis! Pérolas de mães judias, como a máxima: "Viva cada momento como se fosse o último, porque um dia será."

As angústias existenciais são diluídas nos personagens secundários que complementam, brilhantemente, os personagens principais.

O ingênuo e sonhador Bobby Dorfman é uma das melhores personas de Woddy Allen, com sua aparência e comportamento contidos e oratória longa e elaborada. Jesse Eisenberg convence e sustenta.

Vonnie, interpretada por Kristen Stewart, é pura luz! Sua primeira aparição lembra a cena inicial de Daisy em  The Great Gatsby: uma aurea de sol que ofusca! Kristen está líndíssima e confere à Vonnie mais estética do que conteúdo. A interpretação não impressiona, mas não compromete.

Steve Carell como Phil está absolutamente perfeito! Que sorte a substituição de Bruce Willis! Phil tem dramaticidade, coerência e convencimento!

A bela Blake Lively como Veronica  tem pequena participação, mas ilumina por sua beleza e doçura!

Mas os maiores méritos do filme são a sua impecável trilha sonora e a maestria da fotografia de Vittorio Storaro!  Ao som de "That Lady is a Tramp", "Manhattan", "My Romance", "I Only Have Eyes for You", "This Can't Be Love", as cores quentes de Hollywood e as sombrias de Nova York compõem nuances e crepúsculos absolutamente espetaculares! Um das cenas mais lindas do filme , o jantar romântico de Bobby e Vonnie, é  distorcida por velas e sombras. O efeito é incrível!

Café Society ilumina a comicidade sádica da vida em  nuances sutis das memórias de ilusões e desilusões.








sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Dindastia.

dindastia: s.f. 1. processo de sucessão de madrinhas dentro de uma mesma família  2. sequência hierárquica (hereditária ou não) de madrinhas que estabelecem linhagens reais dentro da  mesma função. 





A minha dindastia, a mais real das reais, criou-se a partir de 19 de agosto de 1976, com o nascimento da Flavia, minha  primeira afilhada. Nasceu linda e iluminada!

Aprendi a fazer tricô só pra fazer, eu mesma, o presente especial do seu primeiro aniversário. Fiz um colete horroroso, num degradê  horroroso  de marrons e caramelos que minha irmã, bravamente, chegou a usar. Muita sorte ser  calor no Rio de Janeiro e bebês perderem a roupa muito rapidamente!




A minha afilhada cresceu mais linda e mais iluminada! São muitas as memórias ... Falava só por sílabas tônicas. Isso incluía o seu próprio nome, que de Flavinha passou a Vim. Meu pai a chamava de trem doido. E nós, de Flavinha-Quero-Quero. Sua irmã mais velha ganhou de presente a boneca "Bebê Coração" que ela tanto queria, e ela,  inconformada,  repetia sem parar "bebê ção é minha!". Virou sua marca registrada.



A minha afilhada foi crescendo ainda mais linda e mais iluminada! Até que, não sabemos bem ao certo quando, ela instituiu o  tal  caderninho preto.Caderninho temido!  Ser incluído naquelas páginas era o pior dos pesadelos de toda a família! Os critérios não eram muito claros e ao menor deslize... Pá! Nome no caderno! E pra sair do caderninho? Muitos tentaram, mas não se sabe ao certo se tiveram sucesso. Uso os verbos no passado porque ela jura de pé junto que aposentou o famigerado. Mas os traumas ainda não foram superados.




A minha afilhada continuou crescendo. Linda e Iluminada. Há 18 anos, resolveu me tornar tia-avó. Seria até desaforo, não fosse o Mateus (loiro de deixar qualquer norueguês encabulado),   logo seguido pelo Tiago, esses meninos lindos que inauguraram em altíssimo estilo a terceira geração da família!

A minha afilhada tornou-se uma mulher realmente linda e iluminada! Sensível,  preocupada,  amorosa, atenciosa, presente, solidária. Companheira pra qualquer programa! De shopping a Rock in Rio! Parceirona de projetos! E tão talentosa... Faz scrap como ninguém, bonecas de pano como as de antigamente, borda com perfeição e é a melhor maquiadora do mundo! Além do inconfundível "É meiiixmo, Ticinha?" que eu adoro ouvir!

Dizem que as dindastias são formadas a partir das características que  afilhadas herdam de suas madrinhas. Deve ser mesmo verdade, porque dividimos, entre outras coisas, a falta de lábio superior, os vômitos e enjoos emocionais, o forte apego familiar, a curiosidade insaciável e o choro fácil.

Mas a  recíproca deveria ser verdadeira e madrinhas deveriam adquirir também características de suas afilhadas. Dela, queria um pouquinho só da beleza, um respingo do talento e a raspa da doçura tão cativante.  Seria a mais feliz das madrinhas!



É bem verdade que,  numa hierarquia invertida, ela ser princesa fez de mim rainha! E só assim consigo conhecer, ainda que tangencialmente, toda a grandeza dessa realeza criada a partir dela! E com a certeza que todas as suas qualidades serão passadas para a próxima da nossa linhagem sucessória! A afilhada da minha filhada, Laura, com apenas 5 aninhos, já é princesinha das sapatilhas à coroa!

Minha dindastia hoje completa 40 anos! Quatro décadas de amor imensurável e de orgulho que não cabem dentro de mim!

Hoje tem festa na corte! LONG LIVE MY PRINCESS!!





domingo, 14 de agosto de 2016

Porque mãe é tudo igual. Mas cada pai é único.

O meu pai:





- Chamava-se Edgard e era o terceiro entre os dez filhos de Alberto e Ottilia.

- Nasceu no Rio de Janeiro em 1922  e morreu em São Paulo em 1983.

- Veio de uma família onde irmão cuida de irmão, sobrinho de tio, tio de sobrinho, primo de primo, todos um pouco de cada e cada um pouco de todos. Todos juntos e todos misturados. E assim nos ensinou a viver em famílias.

- Era engenheiro agrônomo formado no km 47 (UFRRJ) e sempre acreditou no estudo como a única forma de se construir a vida. Crescemos num ambiente onde estudar sempre foi prioridade.

- Também insistia na nossa realização profissional e independência financeira. Começamos a trabalhar muito cedo, sempre com o seu incentivo e apoio.

- Jogou basquete quando jovem e foi até técnico.

- Jogou vôlei de praia até quase o fim da vida. Praia do Leme, todos os domingos. Após as partidas, o tradicional chopp na Taberna Atlântica. Uma verdadeira religião. E de tal devoção, que a a Taberna Atlântica, em reconhecimento por décadas de fidelidade, numa cerimônia festiva e inesquecível, inaugurou uma placa comemorativa na mesa onde sempre se sentavam: Veteranos do Vôlei.

- Acreditava na amizade e manteve os seus amigos por toda a vida. Praticava verdadeiramente a amizade. Crescemos em casas cheias e convivemos com todos esses amigos - de diversas nacionalidades, religiões, origens e idades - a quem chamávamos/chamamos de tios. E essas amizades passaram  gerações e herdamos esses "primos"  de vida. Laços estreitos. Laços eternos.

- Só conheceu cinco dos onze netos. Babava pela Marcela, chamava a Flavia de "trem doido", provocava a Adriana com "quase 8:00", levava o Dudu ao Ibirapuera até a exaustão e mal podia esperar o Xande "ficar de pé".

- Chamava minha mãe de Rosinha.

- Dizia que a Andréa, a minha irmã caçula, era a combinação perfeita entre ele e minha mãe.

- Desenhava nossas bonecas de papel quando éramos pequenas.

- Nos levava para conhecer Brasilia quando completávamos 10 anos.

- No mandava pro programa de intercâmbio nos EUA quando completávamos 15 anos.

- Só nos deixava fumar em casa depois dos 18 anos.

- Levava e nos buscava nos bailes de carnaval.

- Confundia as minhas fotos com as da minha mãe quando jovem.

- Implicava com todos os namorados e amigos cabeludos.

- Não gostava de barba e bigode.

- Dizia que hóspede  é que nem peixe: depois de 3 dias começa a feder.

- Jogava buraco e adorava provocar a dupla adversária. E não cansava de repetir que "o major dizia que não se dá carta do meio".

- Dormia depois do almoço todo sábado e domingo.

- Não acertava o tamanho das roupas que nos trazia de suas viagens. Mas nos trazia Barbies.

- Era magérrimo quando jovem. Mas engordou, engordou, engordou.

- Era mais severo que o Detran! Quando tirávamos a nossa carteira de motorista, tínhamos que passar pela sua prova pessoal: um dia de sol, um dia de chuva e uma noite.

- Era muito alegre e adorava festas. Gostava de comer. Muito. Gostava de beber. Muito.

- Fumava charuto depois do almoço aos domingos.

- Era muito respeitado e querido profissionalmente. E mais ainda pessoalmente.

- Tinha um senso de humor fantástico! Sempre com muito deboche e ironia.

- Mas quando bravo...

- Era justo. E moderno pra muitas coisas.

- Tinha muito orgulho da família que construiu com a minha mãe.

- Nos deixou cedo demais.








segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sobre a grandeza no esporte.

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

(Ricardo Reis - 1933) 


 Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, escreveu o poema acima em 1933. Entre tantos e tantos e mais tantos e outros tantos poemas absolutamente geniais de FP, escolhi esse como o meu preferido. Desde a primeira vez que o li. Leio, releio, me encanto. Repetidas vezes. Nunca o esgoto. Nunca chego perto do seu sentido final, revelado, decifrado. E surpreendo-me com a abrangência densa e profunda que apenas seis versos provocam.

Ontem, ao acompanhar as várias competições do segundo dia da Rio 2016, e em particular o pífio desempenho da seleção masculina de futebol, esse poema me veio imediatamente à cabeça. Assim como me veio o conceito de  grandeza no esporte.

A história  está repleta de bons atletas que nos têm presentado com momentos e emoções inesquecíveis com suas conquistas e feitos quase inacreditáveis!

Mas há uma  diferença brutal  entre ser bom - ou até ótimo - e ser grande. Porque ser grande é  atitude, determinação e apreciação que independem de resultados refletidos em medalhas ou títulos.Ser grande é natural, vem de dentro, é espontâneo.  Existe em estado bruto e latente, podendo ser lapidado à quase perfeição, mas jamais forjado na sua ausência.

E o ser grande é o que verdadeiramente emociona e impulsiona. A paixão que o esporte provoca só frutifica pela grandeza compreendida e espelhada. Só a grandeza ecoa. Só a grandeza transforma.

Os exemplos são inúmeros! E cada um de nós tem o seu próprio repertório. Ontem mesmo,  entre tantas disputas duras, cito a derrota do tenista Novak Djokovic - primeiro no ranking mundial e favorito ao ouro olímpico -  diante do argentino Del Potro logo na primeira rodada. No choro incontido e decepcionado, o agradecimento à torcida, o abraço reconhecido no oponente e a certeza de ter feito o seu melhor. Ainda que o seu melhor não tenha sido suficiente. Isso é grandeza.

Em contrapartida, nosso time de futebol masculino em outro baixíssimo desempenho,  apático e entregue, com ares de superioridade enfrentada, recolheu-se na sua arrogância intocável, demonstrando despreparo, imaturidade, desrespeito e soberba. Valores contrários e estranhos à grandeza. Desvalores da pequeneza anti-esportiva. A questão não é ganhar, perder ou empatar. A questão é a atitude diante de cada uma das condições. A questão é fazer o melhor possível e prestar contas desse melhor com tranquilidade e humildade. Triste ver o que já foi nosso orgulho nacional se afastar, em passadas largas, desse ideal nobre e exemplar e se ancorar na marra enfrentadora.

Volto a Ricardo Reis. E à sua descrição tão precisa de grandeza e do que efetivamente reflete brilhos de luas!