segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

A árvore de Natal. E o desapego.

Este ano não montei a minha árvore de Natal.

Quem me conhece, sabe bem o que - e quanto! -  a árvore de Natal significa pra mim.  Ela conta a minha história, exibe meus momentos, minhas emoções. Montar a árvore, a cada ano, é o ritual do qual não abro mão. O momento em que paro tudo, e dedico algumas horas, ao som de músicas natalinas, a enfeitar cada galho com minhas lembranças e desejos futuros. Cada enfeite tem uma história. Nenhum está ali por acaso ou sem uma referência. Tenho os enfeites, já capengas e desbotados, desde a primeira árvore que montei a partir do nascimento do Daniel e da Marina. Os de isopor e de tecido quando eles eram pequenos para não quebrarem; os que fizeram, eles mesmos, nas diversas escolas pelas quais passaram; os que compramos com todo o deslumbramento em Porto Rico para montar a nossa primeira árvore "de verdade"; os que foram presentes de amigos; os que foram trazidos de viagens. Temos a tradição de, a cada ano, pendurar um enfeite novo. E, de enfeite em enfeite, a árvore foi crescendo enquanto as memórias afetivas se multiplicavam.

Vejo amigas que, todos os anos, enfeitem a sua árvore de maneira diferente! Mudam cores, enfeites, temas. Acho lindo!! Mas não consigo mudar a minha. Ela é, todos os anos, a mesma, apenas acrescida de um novo enfeite, enquanto os mais antigos vão sendo remendados para sobreviverem. As luzes são brancas. As contas que rodeiam os galhos são vermelhas. Os laços são todos vermelhos. Os sinos são vermelhos e dourados. Os enfeites são, predominantemente vermelhos, com alguns toques de dourado e coloridos. Tenho vários papais-noéis. Tenho maçãs. Tenho bolas de formas, tamanhos e materiais diferentes. Tenho duas bolas de vidro cor de rosa que foram da árvore de Natal da família americana que me hospedou no intercâmbio em 1974!  Tenho muitos bonecos. Tenho bailarinas. Tenho brinquedos, notas e instrumentos musicais, doces, caixinhas de presentes e de música, figuras lendárias. Tenho Shakespeare. Tenho Beatles. Tenho m&m. Tenho pontos turísticos do mundo. Tenho duas pombas, uma branca e uma vermelha, que mal se aguentam de pé, mas que ficam quase no topo da árvore para guardar a paz. Tenho um anjo ruivo de camisola branca e asas vermelhas feitas pela minha sobrinha que fica  bem no topo da árvore, sustentado pelas pombas. Cada um desses enfeites tem um enorme valor sentimental. Ano após ano, seguem pendurados  na minha árvore e são, no dia 6 de janeiro, guardados com o maior carinho e o maior cuidado. São meus tesouros.

Não montar a árvore este ano - entre outras coisas,  porque ela não cabia no novo apartamento -  foi o ato de maior desapego ente tantos outros atos de desapego que tenho, por razões diversas, exercitado nos últimos anos. Não sem sofrimento. Não montar a árvore custou choro inconsolável. Vômito. Pressão baixa. Mal estar quase irrecuperável. Um dia de cama. E, então, por fim, a lição libertadora que o desapego ensina.

Há algo no desapego - quando verdadeiramente aprendido e apreendido - extremamente libertador. Ainda que simbólicos, nossos apegos, de alguma forma, nos aprisionam em repetições inconscientes e que, muitas vezes, nos impedem de ver além. Não que não tenha o seu valor. O apego emocional - esse, sim, o de maior valor -  dá chão, referencia, reverencia. Mas o apego pesa. E leveza é tão bom... Tão renovador... Tão curador...

Poderia ter optado por uma árvore menor? Sim, mas não quis. O processo de desapego, pelo menos enquanto ainda não totalmente incorporado, rejeita substituições. Soa quase como traição.  Pode ser que no próximo ano, outra linda árvore surja. Surgirá. Não me concebo sem um típico Natal com todos os seus símbolos.

Mas o mais legal desse processo sofrido foi montar a árvore que nem me dava conta que foi se armando internamente durante esse ano de tantas transformações. E que árvore reluzente eu ostento dentro de mim!!! Foram tantos e tantos os ganhos com tantos e tantos desapegos!!! Aprender as felicidades pequenas é aprender a essência da felicidade. Um "mã, vou almoçar" do meu filho, um "hello", da minha filha à noite, um dia tranquilo da minha mãe, uma nova receita que dá certo. Um almoço com amigas, um sem fim de telefonemas, risadas sobre nada, um bom filme, um bom livro, programas bizarros na tv. A feira da esquina, o supermercado em frente, a loja de quinquilharias irresistíveis. Vibrar junto, chorar junto. Provas incontáveis de amizades que me emocionam e dão chão. Meus amigos, amigas, tantos, de lá e de cá, de then, now and forever: que sorte eu tenho!! Meus irmãos, meus sobrinhos, meus sobrinhos-netos. Meus filhos - e incluo o genro! E os cães-netos! - conquistas e  dificuldades. Por sorte, mais conquistas do que dificuldades.  Meu ex-marido, parceiro e generoso. Minhas famílias expandidas enormes! E meus alunos... Meus queridos alunos que injetam vitalidade e atualidade. E se assombram e me assombram com novos olhares, reconhecimentos, aprendizados tão além do aprender! Dezenas de piscas-piscas que me obrigam, todos os dias, a ser a mesma sendo outra. Que sorte a minha!

E é nesse espírito de desapego que termino 2108.

Que 2019 seja uma enorme, gigantesca árvore de Natal novinha em folha! Galhos verdinhos, folhas orvalhadas! E que, ao final do ano, a gente  se maravilhe com os enfeites que penduramos!!

FELIZ ANO NOVO!!!!





sábado, 29 de dezembro de 2018

Bohemian Rhapsody. A voz do dono e o dono da voz.


"O que é bom para o dono é bom para a voz...O que é bom para o dono é bom para vós... O que é bom para o dono é bom para nós..." (A Voz do Dono e o Dono da Voz - Chico Buarque)



Uma porta - apenas uma porta -   separa uma das maiores vozes de todos os tempos  de um Wembley Stadium tomado por  mais de 80.000 pessoas. Do lado de cá da porta,  o dono da voz caminha tenso, se alonga, tenta relaxar o corpo. Concentra-se. Não dá para imaginar o que passa na cabeça do dono da  voz. Não dá para simular a sensação de ser a voz de tantos. Dos 80.000 ali. E de mais 1.5  bilhões conectados pelas tvs ligadas em todo o mundo.

Quem, como eu,  viveu o dia 13 de julho de 1985 já se emociona e se arrepia na cena de abertura do Bohemian Rhapsody. Naquele dia inesquecível, o mundo - o do rock e todos os outros  - se uniu em uma campanha jamais repetida de combate à fome na África. Foram 16 horas de shows simultâneos em Londres e na Filadélfia e os maiores nomes do rock mundial participaram gratuitamente. Estima-se que a arrecadação tenha chegado a 150 milhões de libras.

A escolha dessa cena como abertura não poderia ter sido mais acertada. Ainda que a apresentação propriamente dita só ocorra no final do filme, o lado de cá da porta já estabelece, de imediato, a importância da voz do dono e do dono da voz. Porque, talvez, não haja voz nem dono da voz tão simbólicos das últimas décadas do séc  XX !

A construção da trajetória de Freddie Mercury - profissional e pessoal - apoia-se na construção da sua obra-prima Bohemian Rhapsody. A música de 1975, parte do álbum 'A Night at the Opera" foi, contrariando o rock tradicional dominante, um estrondoso sucesso! Diferente de qualquer referência anterior e longa demais para os padrões musicais (6 minutos!), levou três semanas para ser gravada em quatro estúdios diferentes e desafiou a tecnologia disponível na época.  A brincadeira com a ópera resultou numa verdadeira obra-prima de complexidade comparável a músicos como Liszt e  Brahms, que também compuseram famosas rapsódias.

Na Grécia Antiga, a rapsódia era um fragmento de um poema épico declamado, pelo rapsodista, de maneira independente da obra principal. Costurar os fragmentos da vida de Freddie Mercury e da banda Queen aos fragmentos da composição da Bohemian Rhapsody fazem o filme coeso, coerente e emocionante. Ainda que ela não seja cantada, na íntegra, em nenhuma cena, é ela que conduz a narrativa e apresenta os conflitos, angústias, humanidades e genialidades do dono da voz.

Aliás, o caráter dramático do típico herói grego pontua a trajetória do Freddie Mercury. Há algo heroico nos que, como ele, incapazes de transitarem dentro do senso comum, cedem à força criativa de suas inspirações quase divinas e, sem controlá-las, sucumbem os seus corpos a favor dos seus legados. A pulsão incompreendida é tão criadora quanto destrutiva. Não raro, como no caso dele, o fim é trágico.

O conflito amoroso também entra  na composição do perfil heroico. O amor idealizado impossibilitado de  realização plena é objeto da literatura desde que o mundo é mundo. "Love of my life", hino da minha geração e cantado várias vezes no filme, é um lindíssimo tributo a Mary, seu amor de vida de alma. É melancólico ver esse amor tão puro de essência ser fragmentado - rapsodiado - do desejo do corpo. Que linda história de amor!

Aos que criticam as "livres adaptações" diante da história real ou a forma "rasa" como alguns temas - como a sexualidade ou a homofobia - foram tratados, lembro que o filme não tem a intenção de documentário e, portanto, permite licenças poéticas. A abordagem conservadora e previsível, em pleno 2018, das polêmicas hoje ultrapassadas não comprometem a beleza e emoção do filme.

Bohemian Rhapsody é um tributo a uma das mais belas vozes de todos os tempos. Um tributo a um gênio transgressor e angustiado por ser o que deveria ser em universos pessoais claustrofóbicos e incompatíveis. Uma revisita a momentos musicais únicos, emocionantes e de talentos incomparáveis. Uma revisita  a uma época de grandes transformações, grandes mudanças e grandes novos olhares.

Rami Malek cede-se a Freddie Mercury de forma impressionante! Jeitos, trejeitos, olhos e dentes. Que atuação!

No mais, é apenas deixar-se levar pela trilha sonora arrebatadora e emocionar-se às lágrimas com as cenas que fazem parte da nossa história. Pelo menos, da minha. Que privilégio o meu!

Vivi a época do dono da voz!  E a voz do dono embalou minhas pequenas rapsódias de vida! Que sorte a minha!!

Espero que as gerações futuras nunca deixem de conhecer essa voz e o seu dono!









sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Silence of the lamb.








"Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, misere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, misere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem."


Em O Silêncio dos Inocentes, filme de 1991 e ganhador do Oscar das cinco principais categorias,  o absolutamente maravilhoso Anthony Hopkins, apenas nos primeiros 15 minutos do filme, transformou o seu vilão Hannibal Lecter num  dos mais aterrorizantes vilões da história do cinema. Enclausurado em uma prisão de segurança máxima, seus olhos, frios e psicóticos, propagam terror devagar e calculado. Hannibal percorre, com destreza aflitiva,  a linha tênue entre a genialidade e a insanidade. 

Não gosto da tradução em português. O Silêncio dos Inocentes retira o significado essencial de Silence of the Lamb.  Afinal, cordeiro é uma fortíssima simbologia dentro do Cristianismo. Os hebreus sacrificavam os seus melhores cordeiros a Deus para remissão dos pecados. Jesus Cristo,  o "Cordeiro de Deus", morreu em sacrifício supremo como maior prova do amor de Deus pela humanidade.

Enquanto acompanho, incrédula, as denúncias contra João de Deus, alterno  ondas de profunda tristeza e incontrolável náusea.  Abadiânia, contaminada, mistura  toda a  energia curativa e redentora à energia abusiva e destrutiva.  O Templo da Esperança convertido em Circo de Horrores.

Ainda que muitos ainda duvidem - coisas que só a fé cega e burra, perdoem o pleonasmo, explica - não há como ignorar, desvalorizar e muito menos desqualificar as mais de 300  denúncias já recebidas. E muitas outras certamente ainda virão. O número já é o triplo dos quase 100 estupros e/ou tentativas de estupro do monstro Roger Abdelmassih,  condenado a mais de 250 anos de prisão.

A orfandade espiritual é cruel. As fragilidades extremas que buscam acolhimento e proteção demoram a realizar a ruptura da confiança que prometia cura. De qualquer natureza.  Qualquer uma. Todas. Coletivas. Individuais. As mais sofridas. As mais finais. Terminais.

Impossível não pensar nesse pesadelo sem associá-lo a Silence of the Lamb. João de Deus Hannibal, complexo, calculista,  profundo conhecedor das fraquezas. Manipulador de energias voluntárias e inocentes. Doente. Demoníaco. Anjo negro. Curandeiro dos paradoxos. Charlatão de almas.

Impossível não pensar nessas mulheres abusadas, humilhadas e marcadas. Cordeiros. Sacrificadas. Cordeiros do deus  invertido. Silenciadas pelo medo, pela vergonha, pela dúvida. Cordeiros.  Solitárias, assombradas, angustiadas. Vozes inaudíveis diante do deus ruidoso. Submissas diante do opressor disfarçado em doação ao próximo.

Julgar o Silence of the Lamb é  um ato de violência contra quem já foi tão violentado. Colocar em dúvida sua veracidade é validar atos de amoralidade. Minimizar a gravidade das ações é permitir futuras repetições.

Silence of the Lamb. Que salvador é quando esses silêncios se encontram nos tortuosos caminhos da voz... E gritam. E revelam. E desnudam. E colocam deus na sua real pequeneza e baixeza.

Quando cordeiros, por fim, quebram seu silêncio, deuses de barro ruem. E o mundo respira  mais aliviado. Mais empático. Mais transformador. Mais energético. E a energia canalizada para o bem tudo pode!











domingo, 2 de dezembro de 2018

Festas das Luzes.









A comunidade judaica celebra, a partir de hoje e por oito dias, o Hanuká, conhecido como a Festa das Luzes. A celebração lembra a expulsão dos gregos de Jerusalém em 160 a.C. Após a retomada do Templo, totalmente destruído, era necessário reacender a Menorá, o tradicional candelabro de oito braços. No entanto, só havia azeite para mantê-lo aceso por um dia. Milagrosamente, a chama manteve-se por oito dias, tempo suficiente para produção de novo azeite. Por isso, Hanuká é celebrado durante oito dias, sendo que, a cada noite, uma vela é acesa.

Coincidentemente, a comunidade católica também inicia  hoje o período litúrgico do Advento. Observado durante as quatro semanas que antecedem o Natal, o Advento é caracterizado pela purificação e preparação para o nascimento de Jesus. Seu símbolo é uma coroa de ramos, cuja forma circular representa a eternidade e cuja cor verde remete para a esperança e a vida.  Há também na coroa quatro velas, chamadas de círios,  que são  acesas uma após a outra nos quatro domingos do período.

Religiões à parte, há simbolismo mais lindo do que as luzes de dezembro? Todas as formas de luzes? Metafóricas ou reais?

Luzes reluzem cintilantes. Muti-colorem. Ou prateiam. Piscam-piscam. Brilham incansáveis. Ou apenas flamejam. Céu-estrelam, como mágica, ruas, janelas, jardins, vitrines chamativas, casas decoradas, árvores enfeitadas, mesas convidativas e candelabros de nove braços. Luzes criam sonhos e fantasias. Renovam fé e esperança. Resgatam inocência e ingenuidade. Promovem generosidade e solidariedade. Luzes encurtam distâncias. Aproximam no coração. Fazem as pazes. Esquecem diferenças. Cultivam afetos. Acalantam saudades. Cuidam, presenteiam, agradam, lembram. Luzes iluminam. Apontam caminhos. Guiam. Revelam mistérios. Desvendam o desconhecido. E, sob a luz do conhecimento, temores se dissipam e angústias se acalmam.

Em tempos de luzes, mergulhamos na nossa própria escuridão. E encontramos aquela chama tênue que jamais se apaga. A chama que nos faz especiais e únicos. Que nos torna fortes. Que lembra a nossa história. Que cura feridas. Que reconhece nossas conquistas. Que nomeia quem trazemos no coração. Que embala amores. Que impulsiona oportunidades. Que desconhece limites. E inunda-nos de sol incandescente.

As velas de Hanuká e do Advento flamejam suas primeiras chamas.... As luzinhas do Natal começam a cintilar... Que elas se reflitam em nós! Em todos nós! E que seus brilhos nos sejam emprestados para que todos brilhemos! Para que, numa corrente única e cada vez maior, cresçamos no conhecimento e na consciência! E vivamos na paz e no amor!

Felizes Luzes!





segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Estado de Sítio. Um cometa passava...


"Um cometa passava... Na luz, na penedia... Na erva, no inseto, em tudo uma alma rebrilhava... Entregava-se ao sol a terra, escrava... Ferviam sangue  seiva... E o cometa fugia... Assolavam a terra o terremoto, a lava,... A água, o ciclone, a guerra, a fome, a epidemia;...Mas renascia o amor, o orgulho revivia, ... Passavam religiões... E o cometa passava... E fugia, riçando a ígnea cauda flava... Fenecia uma raça; a solidão bravia... Povoava-se outra vez... E o cometa voltava... Escoava-se o tropel das eras, dia a dia:... E tudo, desde a pedra ao homem, proclamava... A sua eternidade!... E o cometa sorria..."  (O Cometa - Olavo Bilac)






Os cometas, desde as civilizações mais antigas, fascinam e assustam a humanidade. Seu súbito aparecimento foi, durante muitos séculos,  considerado um sinal dos deuses e associado a maus presságios.

Não poderia haver, portanto, imagem mais profética do que a de um cometa branco e brilhante de pó de estrelas para anunciar o caos negro e devastador  com que Estado de Sitio nos oprime.

Albert Camus, um dos maiores escritores do século XX, publicou Estado de Sítio em 1948, em referência   à turbulência espanhola  que culminou com a ditadura de Franco. O medo instaurado sob governos totalitários é o condutor da narrativa forte e altamente alegórica, trazendo a Peste e a Morte como protagonistas da opressão e sitiamentos políticos. Temática  atual e em perfeita consonância com as guinadas políticas observadas, não sem  preocupação, no mundo e, em particular, no Brasil.

A montagem de  Gabriel Villela, mais uma vez,  surpreende pela  ousadia criativa  e simbólica! A sua complexa simplicidade barroca tece a densidade do texto  e reforça a sensação de agonia e impotência diante do medo que paralisa e engessa.  O resultado é perturbador. Lindamente perturbador! Tão lindamente perturbador!




Os cenários de Gabriel Villela costumam trazer inconfundíveis elementos mineiros com coloridos em combinações inesperadas. Em A Tempestade (2015), o inesperado deu-se pelo monocromatismo telúrico, barroso. O mesmo monocromatismo aparece em Estado de Sítio, mas, desta vez, em cores cenográficas descoloridas em pátinas suaves que sugerem o desfazer, o esfumaçar, o borrar das liberdades em risco. Bancos e madeiras maravilhosos com multifunções que pontuam a assumida procedência do diretor. Três outros elementos muito potentes constroem o cenário de José Carlos Serroni: (1) a cortina com uma enorme estrela negra, remetendo à estrela de Davi utilizada para marcar os "inimigos" judeus, com vários dizeres em todo o seu contorno; (2) a nuvem nega que cobre e se entranha e; (3) um carrinho de madeira artesanal em homenagem a vários parceiros e apoiadores. Lindíssimos elementos!




Os figurinos, outro elemento que diferencia a obra do Gabriel, são, como sempre, profundamente elaborados. E belos. Tão belos. Diferentemente dos seus outros figurinos exuberantes em cores e texturas,  os figurinos são negros, com capas, pesados. A  maquiagem é grotesca, indecifrável, irreconhecível. O resultado é a personificação das Pinturas Negras de Goya, figuras inacabadas, desnorteadas, obscuras, corrosivas, abismais. As cores aparecem em tímidos toques e no vermelho intenso por baixo da capa preta da Peste e do verde esmeralda por baixo da capa preta da Morte. A suavidade que acalma um pouco nossa repulsão a essas figuras vem do figurino de Vitória, leve, cálido e aquecido pela belíssima mantilha!




A genialidade do diretor explode também na composição do elenco. Não há como dissociar A Peste de Elias Andreato e toda a sua bagagem dramática! Claudio Fontana empresta à sua Morte qualidades corporais que realmente impressionam, principalmente nos seus "agachamentos". Aliás, desde Lady Macbeth (2012) e seu belíssimo "deslizar", Claudio tem apresentado incríveis assinaturas corporais. Mariana Elizabetski (que voz!) e Pedro Inoue emocionam como Vitória e Diego! Chico Carvalho, mais uma vez, brilha como Nada. Desde a sua interpretação como Ariel em A Tempestade (2015), com suas asas e violino, Chico me tem cativa com a sua versatilidade e enorme talento! O elenco ainda conta com Arthur Faustino, Cacá Toledo, Kauê Persona, Marco França, Nathan Milléo Gualda, Rogério Romera, Rosana Stavis, Zé Gui Bueno e, SIM!, meu filho Daniel Mazzarolo!!



Ainda que Camus já tenha previsto elementos teatrais clássicos, como o Coro, esses elementos ganham maior pertinência sob a orquestração do Gabriel. Assim, a unidade, harmonia e intercalação entre o elenco garantem a interlocução típica das grandes tragédias. Da mesma forma, Nada faz as vezes do narrador que nos explica e conduz ao longo da trama, estabelecendo o distanciamento que separa público e narrativa. Nessa relação se estabelece o teatro que se diz teatro, se faz teatro, se assume teatro. E é mágico!

A música, outro grande elemento que diferencia as montagens do Gabriel, aparece solene, grave, e confere à obra caráter sacro. Músicas ciganas e até em ladino colaboram para compor os templos em que o medo habita sitiado.

O tema é denso. A composição cênica é marcante.. Cores e sons são graves. O resultado é incômodo, perturbador. Lindamente incômodo. Lindamente perturbador.

Volto ao cometa. Que se anuncia catastrófico e inevitável. Branco que se destaca diante do obscurantismo do medo. E que cede espaço, vencido o medo, para o azul quente e acolhedor do mar que embala, poeticamente,  a noite de lua cheia... 


















quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O artesão de Cinderelas.



O primeiro calçado de que se tem registro data de 2000 a 3000 a.C. Foi no Egito e era uma sandália, cuja base era formada por tranças e cordas e raízes e uma alça presa nas laterais, passando pelo peito do pé.

De lá pra cá, os sapatos ganharam formas, texturas e utilidades variadas, tornando-se o maior objeto de desejo do imaginário feminino. Sapatos, não maçãs, são a verdadeira tentação das Evas, e por quem qualquer paraíso é facilmente abandonado!

O Bata Shoe Museum em Toronto - na minha opinião, entre os dez museus imperdíveis do mundo - conta a história dos sapatos ao longo de 4.500 anos da história da humanidade. Começa pelos primeiros exemplares, basicamente utilizados para proteção e aquecimento; mostra características étnicas, regionais e culturais; passa pela  sofisticação da França renascentista, pelo mistério chinês até chegar aos dias atuais. São mais de 12.000 artefatos com histórias curiosas e interessantes. Lá, por exemplo, está o sapato que a Rainha usou em seu casamento. Pode-se ver, também, a coleção de sapatinhos de Cinderelas ao redor do mundo em suas versões indianas, africanas e asiáticas.

Seja como for, e independentemente da mecanização na fabricação de sapatos, o sapateiro ainda é o artista que cria e dá forma à identidade feminina. E deles depende a perpetuação dos sonhos reluzentes de Cinderelas!



A imagem pode conter: sapatos

domingo, 15 de julho de 2018

Vestiários.






Seu Artur era quem cuidava do vestiário feminino  quando eu jogava vôlei no Botafogo, na década de 70, no Rio de Janeiro. Era um velhinho baixinho, bem baixinho, encolhido. Tinha as pernas arqueadas, usava sempre o mesmo sapato de amarrar marrom e andava engraçado, desequilibrado. A boca  murcha era preenchida pela dentadura com a qual brincava de tirar e colocar  a maior parte do tempo. Era quase careca, e tinha uma boina-boné que era a sua marca registrada. E o sorriso mais doce de que tenho lembranças.

A entrada para o vestiário era pelas escadas que saiam por baixo da arquibancada. Era pequeno e escuro. Um banco grande, onde nos trocávamos, e um pequeno corredor com os chuveiros e sanitários. O Seu Artur ficava bem na entrada, fechado atrás do balcão que guardava os nossos  uniformes.

Tínhamos uniformes de treino e uniformes de jogo: calção preto, camiseta listrada preta e branca com o emblema do botafogo no lado esquerdo, meias brancas, tênis e joelheiras. Ele mantinha todos separados e arrumados com o maior cuidado! À medida que chegávamos, ele nos entregava a pilha individual e, no final do treino ou do jogo, devolvíamos o uniforme e ele nos entregava o "vale sanduíche - suco" a que tínhamos direito na lanchonete.  Ele mesmo lavava e passava os nossos uniformes e estavam sempre impecáveis! Havia também um código secreto para quando precisávamos de absorvente: biscoito. Sim, ele também nos provia com "biscoitos" para aqueles" dias.

Seu Artur era também responsável por levar as bolas de treino para a quadra. Ele as colocava dentro de um saco de couro enorme que arrastava com dificuldade, pois era quase o seu tamanho. O mesmo saco era levado quando tínhamos jogos fora, pois as usávamos para o aquecimento.

Parece pouco, mas era de grandiosidade indescritível! Porque há algo de sagrado no ritual do vestiário. Naquele espaço, entramos em outra sintonia. Não somos quem somos fora dele ou fora da quadra e convertemo-nos numa equipe, em números e funções. Vestir o uniforme é estabelecer comunhão, união. É incorporar, a cada peça, algo de dentro, fundo e único. Focar num objetivo, fazer mais e melhor, superar, ultrapassar. Despir o uniforme , por outro lado, é vibrar com vitórias ou amargar derrotas. E, a cada peça, voltar a ser quem se é fora dali.

Nessa visão, ser o guardião desse santuário tem uma importância enorme! O guardião mantém o mistério, a referência, a deferência. Ele, ao cuidar de cada pequeno detalhe, impõe respeito, ordem, concentração. Mais ainda, lembra o respeito àquele manto sagrado, ao legado, à herança,à história. Não consigo pensar em guardião mais fiel e eficiente o que o Seu Artur! Não há como descrever o seu orgulho e alegria a cada vitória nossa! Era como se fossem a energia e amor infiltrados, impregnados em cada uniforme os verdadeiros responsáveis pelo resultado. O segredo está ali: no vestiário.

Lembrei-me do seu Artur ao pensar nos vestiários de cada jogo dessa Copa do Mundo. E pensei em cada um dos guardiões daqueles santuários antes de cada jogo. No cuidado obstinado por cada uniforme de cada jogador. Na atenção para que tudo estivesse perfeito. Na ordenação para as melhores energias. Porque cada jogo começou ali.

Imaginei, sobretudo, a sensação esfuziante de quem preparou o vestiário para a seleção da França hoje. Cada uniforme pendurado, cada chuteira arrumada, cada garrafa de água. Esperança, torcida, orgulho, respeito. Perguntei-me se têm a noção de sua imensurável importância. E se sabem que são, também, em parte, donos daquela taça erguida.

E emocionei-me pensando em cada um deles. Em cada um de cada vestiário de cada jogo dessa Copa.

E tomei-me de  carinho transbordante e de saudades docemente doloridas do Seu Artur!








terça-feira, 10 de julho de 2018

As lições da caverna.








"Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos."  (Platão -  A República - Livro VII - O Mito da Caverna)



O Mito da Caverna, presente na obra "A República" de Platão, talvez seja um dos textos mais conhecidos e debatidos da humanidade.

Platão imaginava um grupo de pessoas  presas numa caverna, desde o nascimento, com braços, pernas e pescoços acorrentados  e forçadas a olhar unicamente para a parede ao fundo da caverna. Atrás dessas pessoas, e sem que elas pudessem ver, havia uma fogueira que projetava sombras e sons de objetos e seres  fora da caverna. Para os prisioneiros, obviamente, essas projeções constituíam a sua construção de realidade. Em dado momento, uma dessas pessoas conseguiu se libertar das correntes e sair da caverna. No início, ofuscado pela luz do sol e por  cores e formas desconhecidas, teve o ímpeto de voltar para a caverna. No entanto, com o passar do tempo, encantou-se com todas as descobertas e aprendizados. E quis, imediatamente, compartilhá-los com os seus companheiros de confinamento. Esses, no entanto, expostos apenas às sombras projetadas, não acreditaram nos relatos e sentiram-se profundamente  ameaçados pela "insanidade" do indivíduo que tinha conseguido sair e "inventar" outras realidades.

A caverna de Platão talvez nunca tenha sido tão bem representada como pela caverna da Tailândia, onde os 12 meninos e seu instrutor ficaram presos por dezoito longos dias. E as alegorias para sensação x razão, ignorância x conhecimento , pré-conceito x senso crítico ou qualquer outra dicotomia aplicável ao mito  nunca foram tão atuais.

A caverna da Tailândia trouxe lições e legados valiosos e necessários. Cada adversidade enfrentada - e superada - abriu caminhos  pelos nossos coletivos tortuosos e engessados.

Em primeiro lugar, destaco a empatia. Se há um sentimento que pode mudar  - e efetivamente muda! - as endurecidas relações humanas é a empatia. A mudança de solidariedade para empatia é pela dor. E isso faz toda  diferença! A solidariedade aproxima, mas mantém-se fora da linha divisória. É uma relação desigual entre quem tem e quem precisa. A empatia derruba essa linha e estabelece a igualdade que gera a dor, e, pela dor, a capacidade de verdadeiramente colocar-se no lugar do outro. Pensar naquelas crianças presas por tantos dias comoveu até os limites empáticos. Pelos pais - quem é pai/mãe sofreu imensamente; pelos jovens - crianças que se imaginavam na mesma situação; pelos professores/instrutores/educadores/técnicos/etc - quem está/esteve na situação de comando/orientação e se  reconheceu na imensa responsabilidade envolvida;  e pelos socorristas - que sabem as dificuldades e riscos  que toda a equipe de resgaste corria.

Em segundo lugar, destaco a prontidão generosa de todos os que, de alguma forma, podiam contribuir com seu conhecimento e experiência pelo sucesso do resgate. A disponibilidade espontânea que derruba barreiras geográficas, religiosas e políticas a serviço de vidas. Mergulhadores de tantas nacionalidades e técnicos de tantas especialidades unidos pelo mesmo objetivo. A morte de um dos mergulhadores  ganha uma simbologia gigante por abarcar todas as outras que puderam - felizmente - ser evitadas.

Em terceiro lugar, destaco a organização impecável, precisa e responsável. Que orquestração perfeita! Que planejamento minucioso! Cada passo, cada risco, cada detalhe que pudesse comprometer o sucesso! Desde a localização do grupo, passando pelos contatos, pela orientação básica de mergulhos, pela avaliação do clima, do horário, das idas e vindas até o percurso ser melhor conhecido e os obstáculos removidos, a administração emocional fora e dentro, e, principalmente, não exceder o limite físico e emocional que pusesse meninos e socorristas em risco, tudo calculado, revisado, ajustado. E centralizado por quem detinha conhecimentos, e não por captação pessoal, mediática ou política.

Aliás, a discrição e controle da mídia chamou a atenção. Em tempos tão imagéticos e de enorme visibilidade digital, não ceder à tentação da exposição é louvável! E indica o respeito às vidas muito maior do que a  vaidade virtual. Comparado ao resgate dos mineiros chilenos, por exemplo, a diferença é gritante! A exposição demasiada, a exploração da mídia e a interferência de tantos setores alheios à operação em si conturbam e perturbam e, de algum forma, contaminam as reais motivações. Tragédias são notícias, mas vidas não são produtos. Devem ser protegidas, respeitadas e preservadas. No sentido mais amplo e abrangente!

Por fim, destaco o treinador Ake, de quem já nos sentimos íntimos e admiradores. Se houve ou não imprudência de sua parte, esclarecimentos e averiguações oportunas dirão. Mas é fato que, dentro da situação de EXTREMA adversidade e complexidade, ele soube manter o grupo são, unido, sereno, funcional e apto a vencer limitações, medos e ajudar no seu próprio resgate. Esse será um elo eterno, jamais esquecido pelos meninos e inspirador para tudo o que venham a enfrentar no futuro.

Volto à caverna de Platão. E penso no quanto o conhecimento efetivamente ilumina, fortalece, amplia e desloca. E o quanto a ignorância obscurece, enfraquece, encolhe e engessa. E penso no quanto o conhecimento é capaz de dosar a razão sensitiva e a sensação racional. E penso no quanto o senso crítico transforma e provoca mudanças. E penso que o sucesso dessa operação deveu-se, sobretudo,  à troca de conhecimentos e aprendizados entre os que  estavam  dentro e os que estavam fora da caverna.

Penso, sobretudo, no quanto o BEM sobrevive, latente e pungente, em nossas cavernas submersas em lodo e estreitos atingíveis!

Salve, Tham Luang!




terça-feira, 19 de junho de 2018

Chico. 74 anos. Eternamente...











"Esta canção não é mais que mais uma canção... Quem dera fosse uma declaração de amor..." (Yolanda - Chico Buarque)

Chico Buarque completa hoje 74 anos de idade!!!

 Dos seus 54 anos anos de carreira, acompanho, ativa e apaixonadamente, 52. Chico é, desde a infância, a minha referência absoluta!

Com Chico aprendo música, letra e a voz inconfundível. Aprendo política e o olhar de mundo crítico e preciso. Aprendo o amor em todas as suas formas de amar. Aprendo a poesia, a prosa e a dramaturgia. Tem artista mais completo? Ou tão máximo em tudo?

Chico tem me proporcionado as melhores memórias culturais. Não perdia Pra Ver a Banda Passar, seu programa na TV com Nara Leão. Tive o privilégio de participar dos shows no Teatro Opinião (quantos autógrafos! Sim, quem ia comigo sabia que depois tinha que correr atrás de autógrafos!), shows memoráveis no Canecão (incluindo o inesquecível show com a Maria Bethânia), alguns raríssimos no João Caetano e o show arrebatador  com Pablo Milanes (foi ali que tomei-me caudalosamente de Yolanda! Anseio por uma neta com esse nome!), além dos mais recentes. Vi Gota d'Água om Bibi Ferreira, Os Saltimbancos na montagem original e a Ópera do Malandro (pelo menos 5 vezes!) com Marieta Severo e Elba Ramalho. Li Fazenda Modelo, Chapeuzinho Amarelo, Estorvo, Benjamim, Budapeste, Leite Derramado e o Irmão Alemão. Assisti Quando o Carnaval Chegar, Certas Palavras e Chico - Artista Brasileiro. Tenho alguns livros de coletâneas e resenhas, além de 12 dvds sobre a sua obra. E devo ter quase todos os LPs e Cds. (incluindo um maravilhoso de duetos geniais!) Desses, tenho carinho especial pelos três primeiros, que ganhei omo presente no meu aniversário de 10 anos.

Comemorei os meus 40 anos num show dele no Canecão. No meio de um daqueles silêncios entre uma música e outra, ouviu-se uma voz bem alta na plateia: INSUBSTITUÍVEL!!! Foi uma gargalhada geral! Dele, inclusive! Mas, no íntimo, era o que todos pensávamos. Para mim, pelo menos, é e sempre será! Chico. O meu Chico. Sempre. Desde sempre. Para sempre. Insubstituível.

Com ele vivencio a indescritível relação de fã. Fã  vem do latim "fanaticus", com significado original "aquele que se diz inspirado pelos deuses" e, posteriormente, "aquele que tem admiração excessiva por alguém". Desse último sentido, o inglês adotou "fanatic" e o diminutivo "fan". E assim, emprestamos do inglês a nossa adaptação para fã. Particularmente, prefiro o significado original. Ser inspirado pelos deuses remete à manifestação artística e criativa na sua essência mais cristalina e pura. Como o Chico. Inspirado e inspirador. Valter Hugo Mãe, um dos meus escritores  preferidos da atualidade, já disse que "o Chico Buarque está perto do super-humano. É alguém que está um pouco para lá do que é expectável do simples humano. Caetano Veloso, no aniversário de 70 anos do Chico, escreveu: "Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico."

Ser fã do Chico tem sido me reconhecer na sua obra. Ecoar nos seus pensamentos. Encantar-me com o seu poder quase mágico de combinar palavras incombináveis. Surpreender-me com poesias onde poesia não cabe. Decifrar o mundo na beleza até onde ela falta. Fazer o cotidiano especial. E desafiar tantas e tantas expressões e linguagens.

E por todos esses momentos, essas memórias, essas emoções, esses diálogos com a sua obra, essas letras, essas músicas, esses livros, essas peças, essa voz, essa presença e, claro, esses olhos de luz, celebro a data e as  inspirações!

Viva Chico!!!



sexta-feira, 1 de junho de 2018

Quero Morrer Com Meu Próprio Veneno.






"Não pode ter sido de outro modo, que o ponto principal é o seguinte: se eu me afogar voluntariamente, pratico um ato; um ato é composto de três partes: agir, fazer e realizar. Logo afogou-se porque quis. " (Shakespeare - Hamlet - Ato V -Cena 1)


As mulheres de Shakespeare são complexas, multifacetadas  e,  por vozes emprestadas, transcenderam os limites de sua condição de submissão dentro de uma estrutura patriarcal extremamente estratificada.


A doce Julieta (Romeu e Julieta), a obediente Desdêmona (Otelo), a casta Miranda (A Tempestade), a independente Catarina (A Megera Domada), a poderosa Cleópatra (Antonio e Cleópatra) e a ambiciosa Lady Macbeth são algumas das heroínas que ainda permitem leituras contemporâneas do papel social da mulher.


Mas nenhuma outra personagem de Shakespeare tem sido mais inspiradora do que a frágil Ofélia de Hamlet!  A  bela jovem que foge de sua loucura entregando-se ao sono plácido rodeada  por flores no berço de águas foi/tem sido musa inesgotável  na pintura, poesia, cinema, moda, ensaios fotográficos - e teatro.

Ophelia (1852) de Sir John Everett Millais.



Elena , filme de Petra Costa.


A jovem Ana Carolina, integrante do Núcleo de Dramaturgia SESI - British Council que há 10 anos estimula a escrita como processo de renovação, apresenta um texto estimulante que multiplica Ofélia em 3 para negar a sua história determinada pelo universo masculino.


A diretora Mika Lins  - e seu mega competente assistente de direção Daniel Mazzarolo, não por acaso, meu filho - levam ao palco essa verdadeira revolução Ofeliana! Que resultado incrível!




Luisa Micheletti é o presente, a visão sobre si mesma. Luiza Curvo é o pensamento, a interpretação  sobre a realidade dos acontecimentos e Luna Matinelli é os olhares dos outros, pelo seu ponto de vista.Uma Ofélia que fala, uma Ofélia que pensa e uma Ofélia que escuta. É na interação e alternância  entre as 3 Ofélias que refletimos sobre resistir ou sucumbir num mundo ainda hostil a Ofélias.

Mika nos presenteia com um trabalho lindíssimo, sensível, poético e muito alegórico.

A unidade e independência das 3 atrizes é impressionante!Que sintonia em palco! Que expressividade dramática! Que belíssimo trabalho corporal!





Gosto muito dos cenários e figurinos da Mika, quase sempre minimalistas, mas muito  eficientes! Desta vez, o palco  é, na verdade, um corredor ocupado por  vários vestidos de tule preto pendurados como fantasmas. O efeito é lindíssimo! As Ofélias igualmente se vestem de preto com transparências em tule.



A potência do cenário e figurinos é complementada pela  iluminação nada sutil que corre e corta o corredor e as personagens em feixes luminosos de cores fortes. As sequências do verde e do vermelho impressionam pela  beleza e dramaticidade.




A maior qualidade da montagem é libertar-se do enredo de Hamlet. A  referência necessária - mas apenas a necessária -  é, acertadamente, por gravação em off.  Desta forma, o protagonismo é, definitivamente, retirado das mãos de Hamlet, Polônio e Laertes -  respectivamente o noivo, o pai e o irmão -  para ser,   finalmente,  conquistado por Ofélia  para a escolha de seu próprio destino.

A composição da(s) Ofélia(s) contemporânea(s) trazem mais uma voz  - em altíssimo tom - para as questões cada vez  mais urgentes sobre a sociedade ainda pautada pelo homem. E que precisam conceder a liberdade para que cada Ofélia morra com  seu próprio veneno!















domingo, 20 de maio de 2018

Casamentos reais.








Canterbury, cidade ao sudeste da Inglaterra, é o principal centro religioso do Reino Unido e sua catedral, Patrimônio da Humanidade, abriga o líder espiritual da Igreja Anglicana, o arcebispo de Canterbury.

Sua relevância histórica e cultural foi imortalizada por Geoffrey Chaucer nos famosos  The Canterbury Tales, escritos entre 1380 e 1400. A coletânea de contos descreve a viagem de peregrinos de todas as classes sociais de Londres a Canterbury para visitar o túmulo de St. Thomas Becket, arcebispo decapitado em 1170. A importância dessa obra é enorme, pois foi a partir dela que o inglês foi consolidado como língua literária em substituição ao francês e ao latim, idiomas predominantes naquela época.

Assim, não há como pensar em qualquer evento religioso dentro da Família Real sem a condução do arcebispo de Canterbury.

Costumo brincar - seriamente - que a Rainha Elizabeth é o meu reconhecimento de mundo. Em meio ao caos ou sucessão de preocupações pessoais e/ou coletivas, saber que ela ainda existe me dá chão e norte. Após a cerimônia de casamento do príncipe Harry, vou um pouco mais além: reconheço-me no mundo  sob a presença da Rainha e a benção do arcebispo de Canterbury!

Anacronismos à parte, ideologias à parte, feminismos à parte e demais "às partes" cabíveis, a realeza inglesa exerce inegável fascínio! E casamentos reais ingleses reativam todos os mitos e arquétipos de príncipes, princesas e finais felizes. O mundo para. Assiste. Emociona-se. Torce, ainda que torça o nariz. Quem não?

Assisti, arrebatada, aos três casamentos mais importantes das últimas décadas! Cada um com suas particularidades. Em seu contexto.  Com seu apelo. Em seu alcance.






O mundo apaixonou-se por Lady Di em 1981! Um casamento dos sonhos na belíssima Catedral de St.Paul's! ! A princesa de todos! Suave e linda  no vestido que entrou para a história criado por David e Isabel Emanuel,  com a tiara da família Spencer em ouro e diamantes colocados em prata,  e um buquê enorme que nem imagino quanto pesava.






Príncipe William e Kate Middleton casaram-se na Abadia de Westminster em 2011. Como não se emocionar com o futuro rei tão parecido com sua mãe? Como não desejar que ele construísse a sua própria família e perpetuasse o legado? Kate já era amada e aprovada para preencher o vazio que sua sogra havia deixado! Segura e delicada, usou um lindíssimo vestido de renda desenhado por Sarah Burton (Alexander McQueen), tiara Cartier que havia sido dada a Elizabeth II pela Rainha Mãe, e buquê  mais modesto, composto por  várias flores típicas da Inglaterra e muguet, símbolo de boa sorte.






O casamento do príncipe Harry com Meghan Markle na maravilhosa St.George's Chapel não carregou o peso da hereditariedade da coroa dos dois anteriores, mas estabeleceu, certamente, um divisor de águas. Em tantos sentidos. Em tantos pequenos detalhes. A elegância do vestido minimalista criado por Clare Waight Keller (Givenchy) dividiu protagonismo com o  véu absolutamente espetacular com suas 53 flores bordadas à mão representando os 53 países do Commonwealth. Grande simbolismo para uma noiva nascida em um país que foi colônia da Inglaterra! A tiara de 100 diamantes foi da Rainha Mary, avó da Rainha Elizabeth. O buquê, também discreto e simples, foi confeccionado a partir de flores colhidas pelo próprio príncipe Harry.





A espontaneidade, ainda que dentro do rígido protocolo, marcou a cerimônia. A caminhada dos dois irmãos até a entrada da Capela trouxe à memória os mesmos dois meninos caminhando ao lado do pai no funeral de sua mãe. Quem não se lembrou daquele momento? Quem não desejou que a insubstituível Princesa Diana  pudesse ver os seus meninos homens feitos? Meghan percorreu sozinha, poderosa, a primeira parte da nave central, sendo só então conduzida por seu sogro. Sua mãe cativou pela emoção incontida durante toda a cerimônia! Os olhos marejados eram os olhos de todas as mães que torcem pela felicidade de seus filhos. Lady! E a inesperada resposta "I hope" a invés de "I will" arrancou risadas.

A música foi, sem dúvida, a marca do casamento!  Sublimes solos de vozes e solos de violoncelo (aqui vale uma pequena explicação do Ronaldo Miranda, compositor brasileiro que tenho o privilégio de conhecer há muitos anos: a escolha do violoncelo não foi por acaso. Além do talento inquestionável do jovem músico de apenas 19 anos e de quem o casal se tornou admirador, o violoncelo é o instrumento que guarda maior similitude com  voz humana)!   O tradicional coral de crianças ao lado do inusitado coral Gospel entoando Stand By Me deu vontade de cantar junto e sair dançando! E, para encerrar, o hino britânico God Save the Queen. It was a royal wedding, after all! Magistral!





Volto à Rainha. Elegante e moderna com um vestido estampado em verde-limão e roxo. 92 anos. Nos seus 66 anos de reinado, tem presenciado mudanças sociais que confrontam a rigidez  da pesada coroa que ostenta. Questionamentos sobre a sobrevivência da realeza no mundo contemporâneo, popularidades em gangorras, escândalos e divórcios no núcleo mais central. Humanidades que não podem mais se esconder atrás de palácios impenetráveis. Fragilidades reconhecidas que aproximam mais do que distanciam. E a sabedoria de tentar acompanhar as escolhas pessoais que lhe foram negadas, mas que ela, aparentemente, permite à sua sucessão. Concessões impensáveis há apenas algumas décadas. Mas que apontam para relações construídas em bases mais reais - literais e metafóricas - e que apontam a possibilidade de convivência entre a  tradição que define o Reino Unido e a modernidade que não pede permissão e nem precisa se curvar diante de sua monarca.

E volto aos arcebispos de Canterbury. Robert Runcle celebrou o casamento de Charles,  recepcionando o primeiro cardeal católico a participar de uma cerimônia religiosa desde o rompimento de Henrique VIII com Roma. Rowan Williams celebrou o de William, num evento festivo e promissor de superação ao funeral de Lady Di na mesma abadia.  E Justin Welby celebrou o de Harry, cedendo espaço para o bispo americano Michael Curry. Sem duvida, um momento importante de protagonismos compartilhados. Enquanto um manteve-se fiel aos rituais tradicionais, o outro trouxe irreverência, coloquialismo e um quê de Broadway que destoou, num certo sentido, da natureza de seus anfitriões.

Contos de fadas jamais deixarão de fazer parte da construção do nosso imaginário. Reis, rainhas, príncipes e princesas serão sempre arquétipos necessários. Mudarão belezas, sonhos, ambições, atitudes. Terão escolhas. Serão iguais. Terão vozes. Mudarão vozes. Terão novos papéis, novas missões. Serão modelos de outras ideologias. Ainda bem.

Mas a monarquia inglesa sempre será referência. Sempre inspirará finais felizes. God save the Queen. Com a benção dos arcebispos de Canterbury. Amém.





quarta-feira, 18 de abril de 2018

Dia do" Era uma vez" verde e amarelo.








É no  encontro com qualquer forma de literatura que ampliamos, transformamos e enriquecemos nossas experiências de vida. A literatura infantil, como primeiro contato da criança com a infinitude do universo literário, tem importância vital no seu desenvolvimento!  É através do prazer, da entrega, da curiosidade,  da identificação e da imaginação que ela aprende  a coordenar palavras, ideias e emoções e, a partir daí, formular suas visões individuais de mundo.

Uma vez estabelecida - com sucesso - essa relação, as possibilidades são ilimitadas! E a criança mergulha em descobertas e explorações de labirintos reveladores e surpreendentes! Dela e do mundo que acerca.

Fábulas, Contos de Fadas e Lendas. A literatura infantil constituiu-se, desde os seus primórdios, no fantasioso e maravilhoso. E essa linguagem metafórica comunica-se facilmente com o pensamento mágico e natural da criança.Os significados simbólicos dos contos maravilhosos estão ligados aos eternos dilemas que enfrentamos ao longo do nosso amadurecimento emocional. E as dicotomias apresentadas na literatura infantil - bela/feia, boa/má, poderoso/fraco, etc - lidam com valores perenes. O que muda, através das gerações, é o que se define como certo/errado.

Tive a sorte de vir de uma família que valorizava e incentivava a leitura desde a mais tenra idade! E também a sorte de frequentar ambientes escolares que ensinaram e exploraram o gostar de ler!

A estante sempre teve lugar de destaque na minha casa. E nela, perfilavam-se coleções encadernadas dos clássicos da literatura: Reino Infantil, Croni, Machado de Assis, José de Alencar, Malba Tahan, Sherlock Holmes, Coleção Menina e Moça (mais do que apropriado para uma casa com quatro mulheres!etc, etc, etc... E, claro, Monteiro Lobato!

Monteiro Lobato... Determinante na minha relação com a leitura. Sem dúvida alguma, a maior influência! Inestimável. Incomparável. Inigualável. Desbravador e libertador da minha emoção literária. Li-o, reli-o. Avidamente. Repetidamente. Apaixonadamente. Deslumbrada. Maravilhada. Tocada. Transformada. Sonhei e vivi aventuras. Com e sem o pó de pirlimpimpim. Estive em todos os reinos, de Águas Claras à Grécia de Hércules. Mas fui sempre brasileira. De saci-pererê e onça pintada. Fui vários. Todos. Narizinho faceira, Pedrinho valente, Visconde sábio. E, embora não me lembre sob que circunstâncias, certamente fui também Rabicó alguma vez. E fui Emília espevitada quase sempre. Ou, pelo menos, na vontade de ser. Minha grande heroína! E senti pontadas por Dona Benta. E salivei as quitutes da preta negra Tia Nastácia. E nem por isso cresci racista!

Monteiro Lobato disse: "Ainda acabo fazendo livros onde as crianças possam morar." Já pensaram? Megalópolis de livros - de Monteiro Lobato e de todos os outros talentosos autores- com infinitas portas para mundos múltiplos, mágicos, viáveis, inviáveis, possíveis, impossíveis, temidos e desejados?

Acreditar que SEMPRE era uma vez... Afinal, sem uma vez que era, nenhuma outra vez será!

domingo, 1 de abril de 2018

Mentira.





Envolveu cada verdade em uma lágrima e chorou uma a uma sentida e profundamente. Restaram apenas as mentiras. Secas. Curadoras. E única possibilidade de felicidade.

terça-feira, 27 de março de 2018

Circo.





Aquele era o seu mundo. Não conhecia qualquer outro. Por quantas cidades passavam, pra ela dava no mesmo. Não arriscava nem uma olhadinha pra fora. Mas dentro, ah...Só ali dentro era ela. Conhecia cada palmo do picadeiro, cada luzinha da ribalta, cada remendo da lona. E após cada espetáculo, com a vassoura na mão, limpava as terras de chãos após chãos e ousava ser além dela mesma. Varria. E tornava-se corajosa como o domador, engraçada como o palhaço e graciosa como a trapezista. Varria. Imaginava-se nas roupas coloridas e repetia cada fala e cada gesto que sabia como ninguém. Varria. E ouvia as crianças gargalharem e o público aplaudir de pé. Era a estrela. E varria. E esquecia que nem tinha nome, nem idade, nem passado. Tinha apenas as roupas velhas doadas aqui e ali. E um colchão no chão perto da jaula de elefante. E uma caneca e prato só dela, com uma rosa entalhada que um antigo malabarista tinha feito especialmente pra ela. E tinha a vassoura na mão todas as noites. E as terras de chãos que ela varria junto com o futuro que ela nem sonhava que existia.

(Publicado no Grupo Minicontos em 25.05.2014. Palavra-chave: PALHAÇO)

sexta-feira, 23 de março de 2018

Cunhado não é parente.








Quando moramos em Belo Horizonte, íamos à Ouro Preto toda Semana Santa. Uma das simpatias locais  era entrar em sete igrejas e, na última, ao sair, dar esmola a um dos inúmeros meninos pedintes que rondavam os visitantes e perguntar-lhe o nome: aquele seria o nome do seu futuro marido! Em uma dessas visitas, minha irmã mais velha, já adolescente, cumpriu o ritual e o nome do menino era Homero de Jesus. Ela não se casou com um Homero de Jesus, mas com um Darc Antônio, o que, para efeitos práticos, é quase a mesma coisa!

A Beth conheceu o Darc num ônibus quando já estávamos de volta ao Rio. Ele, estudante da PUC e morador do Cosme Velho. Ela, estudante do CAp-UFRJ e moradora da Rua General Glicério em Laranjeiras. 

O Darc morava numa casa dessas coloniais na Rua Cosme Velho. Seu pai, OBVIO, também se chama Darc. Darc Francisco. Um senhor alto, com cara de bravo, mas de grande coração. O tratamento carinhoso era "macaca" e brincava sempre que tinha acabado de passar pela banca do Seu Mario, figura mais do que conhecida na General Glicério, para ver a última revista  que falasse do Chico (ele mesmo, o Buarque), só pra implicar comigo ( eu já era chiquete assumida naquela época!). Sua mãe era Nair, o que nos rendeu trotes sem fim, em gargalhadas que não conseguíamos conter, inspiradas no personagem do Jô Soares que ligava sempre para "Nair, sua vaca, capivarona",etc."Ele tinha 2 irmãos, Paulinho e Ivan, e uma irmã, Monica. 

Eu tinha 12  e a Andréa 10 anos na época do namoro. Íamos sempre pra fazenda do pai dele, no Vale das Videiras, na época, uma aventura com direito a atoleiros, lamaçais e luz de lampião. A diversão favorita era o famoso jogo do copo, com espíritos que vinham nos visitar e revelar segredos. Uma vez, o Paulinho e seu amigo Jorginho fizeram várias gravações de correntes se arrastando, redes rangendo, portas batendo e puseram no nosso quarto. Quando fomos dormir, ouvimos os barulhos e, muito impressionadas com o jogo, saímos gritando e chorando pela casa! Fizemos também um filme épico, a feiticeira do Salém, em que a Andréa aparecia em vários pontos da fazendo com os seus feitiços. A Andréa, uma vez, ganhou um pintinho. Polegarina. O desgraçado piava sem parar e quando cresceu o suficiente para um apartamento, foi levado para a fazenda. Toda vez que chegávamos, a Andréa corria para ver a Polegarina! Dna. Nair sempre apontava uma das galinhas e a Andréa acreditava piamente que ela viveu anos e anos, quando, provavelmente, já tinha virado canja há tempos! Tenho ótimas lembranças dessa época!

Darc e Beth  casaram em 1972. Em 1974 nasceu, segundo suas próprias palavras, a decepção Marcela. Em 1976, ainda segundo suas próprias palavras, a grande decepção Flavia. Apenas em 1979 ele foi devidamente presenteado com o sonhado varão Eduardo. 

Vocês tinham que conhecer o Darc pra entender minimamente a figuraça que ele é. Impulsivo, intempestivo e reativo. Levantar da mesa contrariado é lugar comum. Desconfiômetro zero! Visões políticas muito particulares e controversas. Apaixonado por causas, dedicado a projetos até às últimas consequências. Agregador e articulador. Nacionalista. Leitor voraz e dono de uma das bibliotecas mais completas e diversas que conheço, com cada livro cuidadosamente catalogado.  Fluminense, claro. E vaidoso como poucos. Gosta de ternos, de casacos, de chapéus. Folião nos áureos tempos, adorava ir ao centro durante o carnaval. Consta nos autos da família que era figura frequente no Bola Preta... Provedor, cuidador, preocupado. Cheio de recursos, não se aperta nem se intimida. Uma das melhores foi quando a sogra norueguesa da Flavia veio ao Brasil e ele soube que ela estava gripada. Não titubeou: "do you have the grips?" E são tantas e tantas pérolas ao longo dessas quase 5 décadas de convivência!!

Mas o Darc é, sobretudo, generoso. Como poucos. Acolhedor. Como poucos. Adora a casa cheia, a mesa cheia, a família reunida. A fazenda do pai, agora dele, tem portas e coração abertos para quem quiser. Tem sido o local preferido das celebrações de Ano Novo e foi crescendo, crescendo, crescendo para acomodar a família que também não pára de crescer. Não há limites para o que ele proporciona para essas temporadas. 

Tornou-se um avô incrível! São 4 netos e 1 neta. Os netos noruegueses, loirinhos, são a cara dele, claro! O filho do filho é o TRONCO! E com  os gêmeos, de urros e choros como se vissem o bicho papão à convivência amorosa que ele sempre constrói. Ele não dá o braço a torcer, não! Visita os netos, leva aos jogos de futebol, ajuda com os estudos, conversa, se emociona. 

Mas o mais fantástico dessa figura que é o meu cunhado é o universo paralelo em que ele vive. Quem o conhece sabe o que estou dizendo. Costumo brincar dizendo quem na minha próxima encarnação, quero nascer nesse mundo. Que mundo fantástico! Lá, ele não é o amigo do rei. Ele é o próprio rei! Príncipe das Astúrias Negras. Tudo é sobre ele, para ele, com ele, dele. Lá, ele está sempre certo. Sempre é ovacionado, reconhecido, admirado.  E é sempre assediado. Dos tempos de adolescência no Cosme Velho aos dias atuais, a mulherada não dá trégua. Minha irmã não imagina o que ele passa! Aliás, minha irmã é a mulher mais feliz do mundo e não tem ideia da sorte que tem  pela vida fácil que ele luta para proporcionar. ! A dele é que é dura, difícil. E, acreditem, os suspiros profundos geram empatia!

Essa figura está completando 70 anos! 70 anos que lhe rendem um considerável legado. Uma família unida e estruturada. Uma carreira consolidada. Amizades duradouras. Interesses e projetos diversos que lhe garantem ocupação, diversão e conhecimentos renovados.

Mas a maior sorte da sua vida foi, sem dúvida, pegar aquele ônibus voltando da PUC. Não só conheceu a mulher mais incrível do mundo, como ganhou, de quebra, as melhores cunhadas!!

É certo que  cunhado não é parente. Mas após quase 5 décadas de convivência, o Darc chega bem perto do parentesco.  Muito bom tê-lo em nossas vidas! Aliás, não há nem como imaginar as nossas vidas sem ele!

Pelos 70 bem  vividos e todos os anos ainda por vir: SAÚDE, ALEGRIAS E QUE O SEU MUNDO PARTICULAR SEMPRE CRESÇA E FLORESÇA!




segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Tia Guanahyra.


Aniversário de 75 anos - Fraga, Beth, Ieda, Cristina, Guana e Maria Alice


Tia Guanahyra era a 7ª dos 10 filhos dos meus avós maternos e a caçula das meninas. Não me perguntem de onde tiraram esse nome! Nunca conheci ou ouvi falar de outra Guanahyra no mundo!

Tia Guana tinha apenas 14 anos quando os meus pais se casaram e, junto com mais 2 irmãos menores, veio morar com eles para aliviar um pouco a minha avó, já viúva e com dificuldades para criar tantos filhos. Nada mais natural do que tornar-se madrinha da minha irmã mais velha! Foi a  tia de maior referência na nossa infância!

Mudamos para Belo Horizonte assim que eu nasci. Como ela já namorava o tio Abelardo, voltou para a casa da minha avó até o casamento. Meu pai entrou com ela na igreja como se fosse uma filha. E acho, mesmo, que ela sempre foi mais filha do que irmã da minha mãe.

Casamento com tio Abelardo


Tio Abelardo foi um presente nas nossas vidas! Não havia tio mais amoroso e engraçado! E eu tive o privilégio de tê-lo para padrinho de batismo! Entre tantos sobrinhos que disputavam sua atenção, sentia-me especial. Com o tio Abelardo, ganhamos mais uma família. Seu Astor, o seu pai, era o avô que já não tínhamos. Gordo, bonachão e tão carinhoso! D.Ida, sua mãe, era a pessoa mais magra que eu conheci. E ele tinha um monte de irmãs, que tornaram-se amigas e tias emprestadas. A gente adorava ficar na casa da tia quando íamos de férias ao Rio! Sentíamos verdadeiramente em casa!

Tio Abelardo e tia Guana iam sempre a Belo Horizonte nos visitar. Morávamos na Rua Ramalhete, no bairro da Serra, imortalizada na canção de Tavito. Uma rua e seus ramalhetes. Era uma rua de apenas um quarteirão, mas com um monte de crianças! Quando eles chegavam, era uma festa! Tio Abelardo sempre inventava alguma coisa e a gente aproveitava! A maior das aventuras foi um dia que ele combinou um passeio até o pé das montanhas no final do bairro. Éramos 15 crianças ao todo, entre os meus irmãos e os nossos amigos da rua. Eu não me lembro ao certo quantos anos eu tinha, mas sei que era bem pequena, talvez cinco ou seis anos. Andamos, andamos, andamos e andamos mais e o dia foi passando, passando, e acabamos chegando, já à noite, em Nova Lima, um outro município!! Lembro vagamente desse dia... Mas lembro de estar exausta e o tio coordenar com os meninos a confecção de uma padiola para me transportarem. Lembro desse nome até hoje. Padiola. Fato é que fui carregada como uma princesa por quase todo o trajeto! Quando chegamos em Nova Lima, o tio ligou  da delegacia para a casa dos meus pais. A rua estava em polvorosa, as mães desesperadas, rezando novenas, os pais se organizando para  irem atrás de nós. Um rebuliço!  Achavam que algo muito sério tinha acontecido. Foram nos buscar tarde da noite em comitiva. O tio levou a maior espinafração da face da terra!! Dos pais, das mães e, principalmente, da tia!  Mas nós, as crianças, nunca fomos tão felizes! Essa aventura marcou tanto a nossa infância que era lembrada sistematicamente e citada, inclusive, em livro escrito sobre o bairro da Serra.

Tio Abelardo virou estrela quando eu tinha apenas 10 anos. Foi uma enorme comoção entre os nossos amigos da Rua Ramalhete. Uma perda que sinto até hoje...

Estávamos de mudança de volta para o Rio e a tia Guana viveu o seu luto conosco. Passava temporadas na nossa casa e minha mãe e meu pai davam-lhe o colo que ela precisava.

Tia Guana e tio Abelardo, após algumas tentativas frustradas, tiveram a sua única filha: Márcia. Meu irmão era o seu padrinho. Marcinha era um ano mais nova que a Andréa e tinha a maior coleção de bonecas que se possa imaginar! Eu amava passar os dias na casa da tia brincando com as bonecas da Marcinha! Marcinha era gordinha, bem gordinha, e a obesidade aumentava conforme ela crescia. Uma pena... Ela tinha o rosto lindo e era uma menina alegre e extremamente carinhosa!

Alguns anos depois, tia Guana conheceu um português: Fraga. Casaram-se. Tínhamos o pé atrás, uma certa desconfiança com aquele que veio ocupar o lugar do nosso tio querido. Essa resistência foi rapidamente desfeita, pois o Fraga nos adotou com o coração aberto! E ele fez a minha tia tão feliz! Um grande companheiro e um pai dedicado pra Marcinha! Um homem suave, inteligente, adaptável. Braços sempre abertos! E a tia Guana retomou a vida plena que ela tanto merecia.


Guana, Fraga e Marcinha


Tia Guana era alegre, alto astral, vaidosa, muito sociável,  intrometida, comprava brigas com o que acreditava. Sempre foi uma tia presente, amorosa e interessada. Adorava receber e cozinhava muito bem! Mas teve uma vida difícil e de muitas perdas.

Marcinha virou estrela em 2012,  por complicações que a obesidade lhe causou ao longo dos anos. Foi muito chocante, para todos nós, absorver a perda da nossa prima.

Fraga virou estrela em seguida. E a tia se viu sem o seu companheiro e sem a sua única filha. Muito difícil.

Sua saúde deteriorou. Passou a viver no seu mundinho e com poucas conexões com a realidade. Mas continuava alegre e leve! Adotou um cachorrinho de pelúcia como verdadeiro e o levava para todos os lugares. Quando descia no playground do prédio, a  criançada todo vinha ver o "cachorro".  E ela ficava feliz quando tratavam bem o seu cachorrinho...

Minha irmã mais velha ia vê-la  todos os dias. Chegava depois do trabalho e assistiam juntas a novela das 6. A tia ria, brigava com os vilões, se metia nos diálogos. No seu mundinho à parte... Meu primo William também ia sempre visitá-la e minha prima Dunga almoçava com ela toda semana.

Ontem à noite, em pleno domingo de carnaval, tia Guanahyra virou estrela. Quando minhas irmãs chegaram, ela já tinha partido.

Sensação estranha... Tristeza por perder a nossa tia tão querida... Alívio por ela ter partido sem dor. E uma felicidade doce por ela ir ao encontro dos amores de sua vida.

Que Marcinha, tio Abelardo e Fraga a recebam com amor e conforto.

E que o céu se prepare pois, com esse nome e essa personalidade, vai causar!!