segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Memória.

Durante as longas noites de insônia, é na minha memória que desafio o tempo que conta parado ou para trás. Entre as paredes das minhas lembranças difusas e desconexas, busco refúgio e experimento fragmentos que tudo me permitem. Liberto-me. E visito lugares muito além das fronteiras permitidas nos mapas. E vivo tempos passados e futuros como se um e outro fossem o mesmo. E sou tantas pessoas quanto consiga ser nesses tempos e espaços indefinidos. Tenho as idades que quero e brinco com cabelos e roupas. Aprendo e desaprendo  o que me convém. Vivo e revivo amores e esqueço desamores. Reinvento a minha vida, as minhas vidas. Perco-me de mim mesma sem saber onde e encontro-me sem querer na primeira luz do novo dia. Recolho, então, os meus fragmentos até que a minha memória me salve de alguma outra noite em que ser apenas eu não me descanse. 





(Publicado no Grupo Minicontos em 29/11/2015. Palavra tema: MEMÓRIA)




quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dando graças.






DANIEL E MARINA, minha mãe e meu pai e meus irmãos e meus sobrinhos e meus sobrinhos-netos, minhas enormes famílias expandidas, meus amigos tão queridos, e também e inclusive e não necessariamente nessa ordem, minha casa, pizza, vinho, luzinhas de natal, walt whitman, rua general glicério, lagunas coloradas, juquehy, música, banana, manhã de domingo, silêncio, muitas risadas, mar, lua cheia, fluminense, alho poró, caipirinha bem fraquinha, ó minas gerais, mangueira, salada de beterraba com queijo, sparta, dança, empada de palmito, lâmpada amarela, petula clark, pérolas, o rio de janeiro continua lindo, trovão e cookie e mel e nina e vito, água gelada, gengibre, porta dos fundos, praga e paris e new york, pernil, beatles, usp, valter hugo mãe, itaim, pão de queijo da minha mãe, ricardo darin,  wifi, sorvete de manga, alguma coisa acontece no meu coração, suco de laranja, machado de assis, sítio do burle marx, pão e pão e mais pão, novela, ovo de páscoa diamante negro, sala são paulo, flowers by kenzo, coleção de xícaras, cap, álbum de figurinhas, joan baez, vôlei, messi, cherinho de bebê, havaianas, ler na cama, jm wisnik, auto viação 1001, bem casados, flores, trocar a roupa de cama, coleção de casinhas, montar árvore de natal, e tantas coisas mais... Ah! Sim! Claro! E sempre chico buarque!

Y GRACIAS A LA VIDA! MUCHAS GRACIAS A LA VIDA!




segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O peão e a torre.

Era uma vez um pobre peão esquecido num tabuleiro de xadrez. Cansado de andar passo a passo e apenas para a frente, sem nunca ter a opção de voltar atrás, sentou-se para descansar e caiu no sono profundo do tempo que já tinha perdido a conta do seu tempo.

E sonhou. É bem verdade que sonhou preto e branco, pois outras cores não conhecia, mas sonho é sonho. E no seu sonho, o cavalo aparecia para lhe resgatar. Segurou forte na crina para não cair enquanto o cavalo, em disparada, pulava por cima do que via e nenhum obstáculo o impedia de seguir na cavalgada! Quer dizer, nenhum obstáculo que não fosse o bispo. Diante do bispo, até o cavalo se recolhia em respeito e intimidação.

O bispo, no centro do tabuleiro, interrompeu a fuga desatinada exigindo credenciais e roteiro de destino. O pobre peão suou frio, porque destino não tinha, uma vez que sonho não se programa nem controla. Mas o cavalo, mais acostumado com os ares da liberdade, prontamente comunicou que estavam apenas cumprindo ordens do rei para vigiar a torre. Aparentemente, confessou em segredo ao bispo, a torre, rebelde, deu pra ousar andar em diagonal, desequilibrando  todos os movimentos do tabuleiro. O bispo empalideceu, enquanto lhes cedia  passagem imediata. O cavalo saiu em disparada, exibindo toda a sua dentadura, maroto, por ter ludibriado a autoridade religiosa, enquanto o pobre peão só se benzeu, temente que era, acreditando no perdão pela afronta que não era dele, mas do sonho que sonhava.

E já que a torre veio no improviso, deveria ser mesmo desejo desejado, e assim partiram em direção à torre mais afastada do tabuleiro.O peão, mais relaxado, admirou as paisagens onde nunca tinha estado. Não era peão particularmente estrategista e não lembrava de ter chegado tão longe em alguma partida. Até mesmo pela rainha passaram, mas esta, tão absorta estava no seu passeio pelas suas casas, que nem lhe fez caso ou ciência de presença.

Quando finalmente chegaram ao seu destino, o cavalo lhe fez apear e nem lhe deu a chance de agradecer ou se despedir, e já partiu em retirada. O peão estava  só outra vez com o seu sonho, diante daquela construção tão enorme e imponente. Hesitante, passou pelo umbral e subiu, degrau a degrau, em movimentos que conhecia como ninguém, até chegar ao topo da torre. Nunca imaginou tal altura! Sentiu vertigem diante daquela imensidão que a vista alcançava. Nunca imaginara que o tabuleiro, visto do alto, fosse tão grande e tão bonito. Sentiu tanta beleza e tanta grandeza que pensou que a torre era, realmente, a mais feliz de todas as peças! Nada podia ser maior na vida do que ser capaz de ver tão belo, tão grande e tão distante! Mas ainda mais feliz do que a torre era ele, pobre peão, no topo da torre! E desejou, do fundo do seu sonho, nunca mais sair dali.

E tanto sonhou e tão intensamente, que o mundo não entendeu quando, de uma hora para outra, sem aviso ou explicação, uma nova peça apareceu em todos os tabuleiros de xadrez: uma torre com um peão por cima, arraigado que nemao lombo de um cavalo bravo. Estranhamente, não fazia nenhum movimento, não andava nenhum casa e não capturava nenhuma peça.A torre-peão tinha a única função  da contemplação vigilante e guardiã da beleza e grandeza dos tabuleiros do mundo! 





(Publicado no Grupo Minicontos em 20/11/2015. Palavra tema: TORRE)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Tempestade. Sobre sonhos telúricos.

"Somos feitos da matéria dos sonhos." (Próspero. A Tempestade. Ato IV - Cena 1)


Um leve tecido cor-de-mar-caribenho flutuando o movimento do mar revolto e abraçando a réplica perfeita de uma caravela dão o único toque real de água na montagem de A Tempestade de Gabriel Villela. A partir dai, a ilha de Próspero acolhe todo o terra das terras concretas e imaginárias. Realidade e ilusão desfilam em tons de barro - todos os tons de barro - alternando-se em suas funções de vida e arte. Na ilha de Próspero, vida e arte se definem, contradizem, complementam e potencializam.




A última obra de Shakespeare reúne, de forma genial e harmônica, todas as motivações do ser humano - da mais vil a mais nobre - além de destacar o teatro como catalisador dessas motivações. Uma ilha sem latitude ou longitude e que permite brincar com todos os idiomas, todas as teorias teatrais, todos os elementos da tragédia, comédia e romance que respondem pelos movimentos do mundo.

Com todos esses elementos em suas mãos, o diretor Gabriel Villela mais uma vez se supera e cria um universo que arrepia de tão intenso e emociona de tão lindo! Encenado em palco de arena, a ilha de Próspero se mostra inteira e despida.

O que mais impressiona é a delicadeza e suavidade dos elementos de cenário e figurino que amenizam a crueza do barro predominante. madeiras mineiras e cristais aquecem e dão leveza. Que combinação feliz! Os detalhes dos bordados e das rendas nos figurinos já são traços característicos do diretor, mas sempre conseguem surpreender! Destaque para o figurino do espírito Ariel, um verdadeiro sopro de ar na predominância terra. Que artistas talentosos constroem essas obras primas!





Vozes. Sem palavras para o trabalho impecável de vozes. Os jarros de barro remetem ao teatro grego e artificializam as vozes. Sem exagero, com naturalidade.

A música tem sido também personagem constante e de destaque nas montagens de Gabriel Villela. Em A Tempestade, o cancioneiro popular e folclórico é potente na sua coadjuvância. Outro recurso extremamente eficiente para suavizar o terra predominante. A alternância dos instrumentos musicais ao fundo cria uma sonoridade muito delicada! O violino aparece com um presente aos ouvidos! E quem não se arrepia com a abertura com Peixinhos do Mar e encerramento com Suite do Pescador?

O elenco está magistral! Celso Frateschi brilha com o um dos personagens mais densos da dramaturgia mundial e nos conduz generosamente pelas nuances do ódio e perdão, intuição e ponderação, magia e conhecimento. A caracterização de Caliban, um dos maiores monstros e aberrações do imaginário, está perfeita! Ariel é um presente! Que maravilha espiritual! E a dupla Trínculo/Estéfano responde por grandes momentos de comicidade! Miranda e Ferdinando trazem o lado romântico com toques de muita originalidade não gratuita ou casual: a encenação equilibrista nas pontas dos pés traz Romeu e Julieta, outra inesquecível montagem do diretor,  também para essa ilha!





O resultado? Uma obra lindíssima e um grande tributo ao Bardo com a assinatura inconfundível de Gabriel Villela.

O impacto? Potente em todos os sentidos. Uma inesquecível experiência sensorial!

A Tempestade nos oferece um novo conceito de ilha. Passa a ser ilha qualquer pedaço de qualquer coisa cercada por outros pedaços de outras coisas - ou da mesma - por todos os lados. Ilhas se sobrepõem. Vão se complementando e desvendando mundos. Ilha é fora e é dentro. A ilha de Próspero  é aqui e lá, em Minas, e no nordeste, e em todo o mundo. A ilha de Próspero é dentro de cada um e como cada um percebe e se relaciona com traição e lealdade, ignorância e sabedoria, perdão e ressentimento, amor e ódio, trágico e cômico, ilusão e realidade.

Mais além, a ilha apresentada por Gabriel Villela é palco de e para atores. E ao colocá-los na arena, construindo cada cena com a mudança sutil de cenário e de função, convida o público a construir conjuntamente sua experiência de emoção e fantasia. Desconstruir sentidos. Embarcar nessa viagem úmida. Sonhar telúrico.





domingo, 15 de novembro de 2015

República.

República (do latim "res publica" = coisa pública): forma de governo que emana do povo, fundamentada numa constituição que promove, protege e garante os direitoS fundamentais e as liberdades civis de todos os cidadãos de igual forma.

126 anos depois...








Cadê a república que estava aqui?

O poder comeu.

Cadê o poder?

Tá nos bolsos do governo.

Cadê o governo?

Tá afundado na lama.

Cadê a lama?

Tá contaminando águas.

Cadê as águas?

O Alckmin secou.

Cadê a seca?

Tá encarquilhando a ética.

Cadê a ética?

Virou corrupção.

Cadê a corrupção?

Foi por aqui... ACHOU!!! Foi por aqui... ACHOU!!! E por aqui... ACHOU!!! E por aqui... ACHOU!!

E cadê o povo??? SE LASCOU!!! SE LASCOU!!! SE LASCOU!!!!

E cadê a tal república??? HAHAHAHAHA

sábado, 14 de novembro de 2015

O rio e o mar.

Tinha o sonho de um dia ver o mar. Rio conhecia bem. Nascera e crescera ali nas beiras, de roupa sempre gotejada e sede matada a goles de água doce. mas quem conhecia jurava que o mar era muito mais. Ela tentava imaginar como seria mais água do que a que avistava do seu rio, lá longe, fazendo a curva adiante. Sonhava sentir a água salgada que não tinha fim, que nem se via onde curvava, e que vinha em ondas que formavam espuma brancas pra morrer aos pés da areia. Não entendia como água que morria podia infindar. Só podia ser o sal, pensava. E sonhava. E sonhava.

E foi assim, na distração do pensamento, que não viu o mar chegar. Chegou sem aviso nem sobreaviso. Chegou chegando, sem cerimônia e fazendo alarde. Chegou ávido e insaciável. Chegou arrastando e invadindo. Poucos viram. Poucos escaparam.

Ela mesma, sentada na beira do seu rio, foi tomada pela força daquelas águas inesperadas que não conhecia. Mas logo entendeu que era o mar! Seu sonho finalmente se realizava!Fechou os olhos e entregou-se à corrente das águas imaginadas. Antecipava a leveza da liquidez infinita. Antecipava a poesia o diálogo entre ondas cristalinas. Antecipava o salgado curador.

Mas logo estranhou. Não entendeu a cor de barro sujo e nojento. Não entendeu o peso das águas pastosas. Não entendeu os gritos e sussurros de morte. Não, não podia ser! Aquele mar era impostor! Saia, saia já do meu sonho! Volte pra sua imensidão! Mar não invade rio! Você não sabe que é rio que corre pro mar? Alguém? Alguém me salva do meu sonho? Alguém leva esse mar embora? Juro que não sabia que mar era lama! Pensei outro mar! Alguém? Alguém volta o meu mundo? Alguém?

Fechou os olhos bem fechados e rezou. Sentiu o gosto amago e indigesto que nem de longe lembrava o sal. Antes de perder a consciência, chorou o doce do seu rio.





(Publicado no Grupo Minicontos em 14/11/2015: palavra-tema: LAMA)



quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A menina, as chupetas y los gatitos.

Em um pacato bairro residencial de Buenos Aires, lá pelos idos de 1991...

A menina de três aninhos abre los ojitos e se espreguiça na cama. Com a chupeta na boca, procura as outras duas que se perderam durante a noche. Uma em cada mãozinha. Cheirando as bochechinhas. Delícia...

Descalça, cabelos arrepiados e ojitos ainda sonolentos, vai à procura da mãe. Chupeta na boca e chupetas na mão. Ganha um colinho apertado e um besito estalado de buen dia.

Senta para desayunar. Muito a contragosto, coloca as 3 chupetas ao lado do plato. Mas ali, juntinho dela. Olhar atento para não perder de vista.

Hora de se vestir e ir para la escuelita. Caminha devagar, quase estanca. Chupeta na boca e chupetas na mão. Sucção compassada e tão fuerte que nem se sabe como a chupeta resiste. 

A menina olha pra mãe e olha pra gavetinha da mesita ao lado de sua cama. Olhar quase de súplica. Um não querer sincero. Sofrido.

Mas trato é trato. E o trato é deixar as chupetas na gavetinha quando sai para a escola. 

Acontece que no jardin del vecino mora uma  mamãe gata. E coitada! Não tem chupeta para dar para sus gatitos... Y ellos lloran y lloran...   A gata, então, procura chupetas em gavetinhas de meninas de três aninhos e, quando acha,   pega emprestado para sus gatitos.

A menina gosta da mamãe gata y de sus gatitos. Ela empresta suas chupetas durante o dia.  Coitadinhos dos gatitos que lloran y lloran!

Mas a menina sente muita falta de suas chupetas. Passa o dia pro dia logo passar. Juega, juega, juega. Sem parar. Pro dia logo passar.

Olha pro jardin, pero nada da mamãe gata. De vez em quando, abre a gavetinha ao lado da sua cama, pero nada de chupetas. Estão com a mamãe gata e com los gatitos. E o dia passa que não passa.

No fim da tarde, quando o sol vai embora e o jardin del vecino escurece, a menina  corre que corre para o seu quarto. Abre a gavetinha e... Viva!!! Lá estão as amadas chupetas!!

Rostinho iluminado!!  Pura felicidade!! Chupeta na boca e chupetas  na mão. Uma em cada mãozinha. Cheirando as bochechinhas. Delicia...

Y asi passam los dias. Muchos dias.  E as chupetas passam los dias com a mamãe gata y sus gatitos. Que ya non lloran y lloran...

Y asi  passam las noches. Muchas noches. E as chupetas passam las noches  com a menina de três aninhos. Na boca e nas mãos. Uma em cada mãozinha. Cheirando as bochechinhas. Delícia...