domingo, 15 de julho de 2018

Vestiários.






Seu Artur era quem cuidava do vestiário feminino  quando eu jogava vôlei no Botafogo, na década de 70, no Rio de Janeiro. Era um velhinho baixinho, bem baixinho, encolhido. Tinha as pernas arqueadas, usava sempre o mesmo sapato de amarrar marrom e andava engraçado, desequilibrado. A boca  murcha era preenchida pela dentadura com a qual brincava de tirar e colocar  a maior parte do tempo. Era quase careca, e tinha uma boina-boné que era a sua marca registrada. E o sorriso mais doce de que tenho lembranças.

A entrada para o vestiário era pelas escadas que saiam por baixo da arquibancada. Era pequeno e escuro. Um banco grande, onde nos trocávamos, e um pequeno corredor com os chuveiros e sanitários. O Seu Artur ficava bem na entrada, fechado atrás do balcão que guardava os nossos  uniformes.

Tínhamos uniformes de treino e uniformes de jogo: calção preto, camiseta listrada preta e branca com o emblema do botafogo no lado esquerdo, meias brancas, tênis e joelheiras. Ele mantinha todos separados e arrumados com o maior cuidado! À medida que chegávamos, ele nos entregava a pilha individual e, no final do treino ou do jogo, devolvíamos o uniforme e ele nos entregava o "vale sanduíche - suco" a que tínhamos direito na lanchonete.  Ele mesmo lavava e passava os nossos uniformes e estavam sempre impecáveis! Havia também um código secreto para quando precisávamos de absorvente: biscoito. Sim, ele também nos provia com "biscoitos" para aqueles" dias.

Seu Artur era também responsável por levar as bolas de treino para a quadra. Ele as colocava dentro de um saco de couro enorme que arrastava com dificuldade, pois era quase o seu tamanho. O mesmo saco era levado quando tínhamos jogos fora, pois as usávamos para o aquecimento.

Parece pouco, mas era de grandiosidade indescritível! Porque há algo de sagrado no ritual do vestiário. Naquele espaço, entramos em outra sintonia. Não somos quem somos fora dele ou fora da quadra e convertemo-nos numa equipe, em números e funções. Vestir o uniforme é estabelecer comunhão, união. É incorporar, a cada peça, algo de dentro, fundo e único. Focar num objetivo, fazer mais e melhor, superar, ultrapassar. Despir o uniforme , por outro lado, é vibrar com vitórias ou amargar derrotas. E, a cada peça, voltar a ser quem se é fora dali.

Nessa visão, ser o guardião desse santuário tem uma importância enorme! O guardião mantém o mistério, a referência, a deferência. Ele, ao cuidar de cada pequeno detalhe, impõe respeito, ordem, concentração. Mais ainda, lembra o respeito àquele manto sagrado, ao legado, à herança,à história. Não consigo pensar em guardião mais fiel e eficiente o que o Seu Artur! Não há como descrever o seu orgulho e alegria a cada vitória nossa! Era como se fossem a energia e amor infiltrados, impregnados em cada uniforme os verdadeiros responsáveis pelo resultado. O segredo está ali: no vestiário.

Lembrei-me do seu Artur ao pensar nos vestiários de cada jogo dessa Copa do Mundo. E pensei em cada um dos guardiões daqueles santuários antes de cada jogo. No cuidado obstinado por cada uniforme de cada jogador. Na atenção para que tudo estivesse perfeito. Na ordenação para as melhores energias. Porque cada jogo começou ali.

Imaginei, sobretudo, a sensação esfuziante de quem preparou o vestiário para a seleção da França hoje. Cada uniforme pendurado, cada chuteira arrumada, cada garrafa de água. Esperança, torcida, orgulho, respeito. Perguntei-me se têm a noção de sua imensurável importância. E se sabem que são, também, em parte, donos daquela taça erguida.

E emocionei-me pensando em cada um deles. Em cada um de cada vestiário de cada jogo dessa Copa.

E tomei-me de  carinho transbordante e de saudades docemente doloridas do Seu Artur!








terça-feira, 10 de julho de 2018

As lições da caverna.








"Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos."  (Platão -  A República - Livro VII - O Mito da Caverna)



O Mito da Caverna, presente na obra "A República" de Platão, talvez seja um dos textos mais conhecidos e debatidos da humanidade.

Platão imaginava um grupo de pessoas  presas numa caverna, desde o nascimento, com braços, pernas e pescoços acorrentados  e forçadas a olhar unicamente para a parede ao fundo da caverna. Atrás dessas pessoas, e sem que elas pudessem ver, havia uma fogueira que projetava sombras e sons de objetos e seres  fora da caverna. Para os prisioneiros, obviamente, essas projeções constituíam a sua construção de realidade. Em dado momento, uma dessas pessoas conseguiu se libertar das correntes e sair da caverna. No início, ofuscado pela luz do sol e por  cores e formas desconhecidas, teve o ímpeto de voltar para a caverna. No entanto, com o passar do tempo, encantou-se com todas as descobertas e aprendizados. E quis, imediatamente, compartilhá-los com os seus companheiros de confinamento. Esses, no entanto, expostos apenas às sombras projetadas, não acreditaram nos relatos e sentiram-se profundamente  ameaçados pela "insanidade" do indivíduo que tinha conseguido sair e "inventar" outras realidades.

A caverna de Platão talvez nunca tenha sido tão bem representada como pela caverna da Tailândia, onde os 12 meninos e seu instrutor ficaram presos por dezoito longos dias. E as alegorias para sensação x razão, ignorância x conhecimento , pré-conceito x senso crítico ou qualquer outra dicotomia aplicável ao mito  nunca foram tão atuais.

A caverna da Tailândia trouxe lições e legados valiosos e necessários. Cada adversidade enfrentada - e superada - abriu caminhos  pelos nossos coletivos tortuosos e engessados.

Em primeiro lugar, destaco a empatia. Se há um sentimento que pode mudar  - e efetivamente muda! - as endurecidas relações humanas é a empatia. A mudança de solidariedade para empatia é pela dor. E isso faz toda  diferença! A solidariedade aproxima, mas mantém-se fora da linha divisória. É uma relação desigual entre quem tem e quem precisa. A empatia derruba essa linha e estabelece a igualdade que gera a dor, e, pela dor, a capacidade de verdadeiramente colocar-se no lugar do outro. Pensar naquelas crianças presas por tantos dias comoveu até os limites empáticos. Pelos pais - quem é pai/mãe sofreu imensamente; pelos jovens - crianças que se imaginavam na mesma situação; pelos professores/instrutores/educadores/técnicos/etc - quem está/esteve na situação de comando/orientação e se  reconheceu na imensa responsabilidade envolvida;  e pelos socorristas - que sabem as dificuldades e riscos  que toda a equipe de resgaste corria.

Em segundo lugar, destaco a prontidão generosa de todos os que, de alguma forma, podiam contribuir com seu conhecimento e experiência pelo sucesso do resgate. A disponibilidade espontânea que derruba barreiras geográficas, religiosas e políticas a serviço de vidas. Mergulhadores de tantas nacionalidades e técnicos de tantas especialidades unidos pelo mesmo objetivo. A morte de um dos mergulhadores  ganha uma simbologia gigante por abarcar todas as outras que puderam - felizmente - ser evitadas.

Em terceiro lugar, destaco a organização impecável, precisa e responsável. Que orquestração perfeita! Que planejamento minucioso! Cada passo, cada risco, cada detalhe que pudesse comprometer o sucesso! Desde a localização do grupo, passando pelos contatos, pela orientação básica de mergulhos, pela avaliação do clima, do horário, das idas e vindas até o percurso ser melhor conhecido e os obstáculos removidos, a administração emocional fora e dentro, e, principalmente, não exceder o limite físico e emocional que pusesse meninos e socorristas em risco, tudo calculado, revisado, ajustado. E centralizado por quem detinha conhecimentos, e não por captação pessoal, mediática ou política.

Aliás, a discrição e controle da mídia chamou a atenção. Em tempos tão imagéticos e de enorme visibilidade digital, não ceder à tentação da exposição é louvável! E indica o respeito às vidas muito maior do que a  vaidade virtual. Comparado ao resgate dos mineiros chilenos, por exemplo, a diferença é gritante! A exposição demasiada, a exploração da mídia e a interferência de tantos setores alheios à operação em si conturbam e perturbam e, de algum forma, contaminam as reais motivações. Tragédias são notícias, mas vidas não são produtos. Devem ser protegidas, respeitadas e preservadas. No sentido mais amplo e abrangente!

Por fim, destaco o treinador Ake, de quem já nos sentimos íntimos e admiradores. Se houve ou não imprudência de sua parte, esclarecimentos e averiguações oportunas dirão. Mas é fato que, dentro da situação de EXTREMA adversidade e complexidade, ele soube manter o grupo são, unido, sereno, funcional e apto a vencer limitações, medos e ajudar no seu próprio resgate. Esse será um elo eterno, jamais esquecido pelos meninos e inspirador para tudo o que venham a enfrentar no futuro.

Volto à caverna de Platão. E penso no quanto o conhecimento efetivamente ilumina, fortalece, amplia e desloca. E o quanto a ignorância obscurece, enfraquece, encolhe e engessa. E penso no quanto o conhecimento é capaz de dosar a razão sensitiva e a sensação racional. E penso no quanto o senso crítico transforma e provoca mudanças. E penso que o sucesso dessa operação deveu-se, sobretudo,  à troca de conhecimentos e aprendizados entre os que  estavam  dentro e os que estavam fora da caverna.

Penso, sobretudo, no quanto o BEM sobrevive, latente e pungente, em nossas cavernas submersas em lodo e estreitos atingíveis!

Salve, Tham Luang!