domingo, 27 de novembro de 2016

Sobre legados.

Rachel já era casada, tinha 2 filhos e trabalhado como secretária executiva durante anos, antes de realizar o sonho de  ingressar na universidade.

Silvia tinha acabado de se casar e já era formada em Economia.

Eu era recém chegada a São Paulo, tinha abandonado a Engenharia Química e assumido a minha vocação na área de língua e literatura.

Vocês tinham que conhecer a Rachel pra entendê-la. Vegetariana. Super perfeccionista. Super detalhista. Super preocupada.  Super exigente. Super dedicada. Super generosa. Super amorosa. Super solidária.  Super atenta. Super filha. Super mãe. Super avó. Ganhou o apelido de Mrs. Morel, em referência à personagem-mãe do clássico  inglês Sons and Lovers de D.H. Lawrence.

Vocês tinham que conhecer a Silvia pra entendê-la. Não há pessoa mais atrapalhada. Nem mais engraçada. E engraçada simplesmente porque é, sem qualquer intenção de ser.  E não há quem tenha histórias iguais. Sério. Nenhuma ficção chega aos pés das coisas que acontecem com a Silvia! São enredos fantásticos, cheios de tramas, subtramas, melodramas, tragédias, comédias. Mas também não há pessoa mais prática e mais objetiva. Problemas com ela não se criam e são logo colocados dentro da sua ordem de grandeza  e zonas de solução.

Eu? Bem, vocês me conhecem bem pra me entender. Sou algo no meio das duas e bem fora das duas.

Portanto,  só a casualidade - ou fatalidade - explica esse encontro  improvável na Faculdade de Letras da USP em 1978. Improvável não o encontro em si, pois, como em qualquer curso, a diversidade  é esperada, previsível e saudável. Digo improvável por ter enraizado, sobrevivido e frutificado fora daquelas salas de aula improvisadas na colmeia, onde o curso de Letras funcionava precariamente naquele tempo.  Trinta e oito anos depois, nossas diferenças fazem toda a diferença nessa amizade sólida e que  já atravessa a 3ª geração!

Não pensem que foi fácil. Rachel sofreu um pouco.  Fazíamos os trabalhos juntas, planejávamos todos os detalhes e, na hora H, eu, que não me preparava como ela, no despreparo  trocava tudo  e fazia no improviso. E ela ficava sem chão, sem saber como seguir, com aquele monte de folhas que ela tinha estudado e decorado por dias.  Ela quis me matar muitas vezes. Sou uma sobrevivente! Mas lembro com carinho das tardes e tardes na sua casa  alternando os trabalhos com as  minhas epopeias  amorosas. Ela ouvia sempre atenta, preocupada e nem sempre de acordo! Foi um alivio quando me estabilizei e casei!

Silvia estava sempre correndo! Ia de casa pra faculdade, da faculdade pra casa da mãe  e nunca tinha tempo pra nada! Uma vez tiramos zero - ZERO!! - num trabalho de francês.  Tínhamos que ler e resumir La Symphonie Pastorale de André Gide.  Inteligentes que somos,  dividimos o livro no meio e uma fez uma parte e a outra fez a outra parte. Trocamos, copiamos e entregamos. O trabalho era individual e não em grupo e a professora deu zero pras duas quando identificou as partes absolutamente iguais! Rimos de nos acabar! Duas marmanjas sendo pegas colando. Tivemos que fazer um trabalho de substituição. Bem longe uma da outra!

Formamo-nos em  1981, numa cerimônia coletiva com outros cursos em uma sala na reitoria, sem qualquer pompa ou destaque. Mera formalidade. Mas os legados desses 4 anos em que nossa amizade foi construída não cabem em nenhum diploma!

Vocês tinham que conhecer a Rachel para entender o seu legado! Ela vem de um núcleo familiar pequeno dentro de outro núcleo familiar enorme! Sua mãe, a queridíssima D. Branca, já falecida e com quem tivemos a sorte de conviver por muitos e muitos anos, ficou viúva muito jovem e com dois filhos pequenos. Mas a família maior, de avós, tios e primos tornou-se a família de referência e de lindos exemplos de união e doação. Não conheço ninguém mais dedicada e com maior senso de família do que a Rachel! Seus cuidados realmente emocionam! Além disso, tornou-se a fornecedora oficial das burekas que os meus filhos tanto amam! E é a minha consultora para dúvidas de português, tradução ou qualquer assunto correlacionado. |E a voz da consciência e sensatez!

Vocês tinham que conhecer a Silvia pra entender o seu legado! Ela dá aulas particulares  de absolutamente tudo! De corte e costura a Física Quântica! E diz pérolas aos seus alunos do tipo : Não pensem que aqui é um templo  ou tenda de milagres!! A gente chora de rir! Silvia tem uma irmã gêmea, Sandra, casada com Arnaldo, o melhor obstetra do mundo e quem me ajudou a trazer Daniel e Marina ao mundo! Só isso já seria legado pra legado suficiente! Mas ela ainda   tem 4  cunhadas que também herdamos como se fossem nossas!! Além do mais, é um guia ambulante! Conhece todas as lojas, sabe onde se compra qualquer coisa e faz os melhores roteiros de viagem!


Rachel é casada com Mauricio, que tem um coração maior que esse  mundo! Seu filho Adriano é casado com a Fernanda e têm 2 meninos: Gabriel e Ian. Adriano, professor da USP,  é o nosso olhar crítico  e cético sobre a educação universitária. Sua filha Carolina é casada com Rich, tem um filho, Joshua,  e mora nos Estados Unidos. Carolina é grande companheira e que faz enorme falta no nosso convívio diário. A Carolina é uma história à parte nessa nessa história!

Silvia é casada com Luiz Antonio, na minha opinião e  na da Rachel, um santo! Sua filha Renata, que hoje é a médica da minha filha, é a  doçura em pessoa,  casada com Fabiano e têm o Antonio, de 1 aninho e meio. Seu filho Luiz Felipe é o nosso xodó e namora a Cibelis, já adotada com torcida organizada!A caçula, Marina como a minha, mora em Londres e é a nossa Lady absoluta! Realeza da cabeça aos pés!

Nosso maior orgulho é sermos capazes de reunir, todos os anos, nossas 3 famílias e comemorarmos todas as coisas boas que vivemos naquele ano. E, por sorte, sempre temos muito pra comemorar! Principalmente o fato dos nossos filhos, e agora netos, fazerem parte desse legado e, espontaneamente (ou assim queremos acreditar!) acomodarem suas agendas para estarem juntos, interagirem, construírem afinidades e participarem desses encontros que têm tamanha importância pra nós!

Tem sido meu privilégio - e enorme prazer - receber esses encontros na minha  casa! E a cada ano, meu prazer é maior e mais emotivo! Olho pras minhas amigas, para as nossas famílias juntas, e meu coração transborda de carinho e orgulho!

Costumo brincar  dizendo que quando tudo parece fora do prumo, sem sentido e caótico, volto ao meu centro e me reconheço no mundo quando acordo e vejo que a Rainha Elizabeth continua aqui. De alguma forma, a certeza da permanência dela é a minha certeza de que o mundo ainda é  o mundo.

Mas tenho outra certeza. Quando tudo parece mesmo fora do prumo, sem sentido e caótico, esse encontro anual é a minha garantia  de que tudo continua certo no meu mundo!

Ontem fizemos o nosso encontro 2016. E hoje acordei com o meu mundo mais florido, mais esperançoso e muito mais promissor!






domingo, 20 de novembro de 2016

Pós-verdade.


O elevador de serviço está parado há dois dias. A conta de luz aumentou. Já é Natal? A unha do meu dedinho do pé está doendo, acho que encravou. Será que te amei mesmo algum dia? Mandioquinha virou artigo de luxo, Garotinho foi preso. Garotinho foi pro hospital. Garotinho foi preso. Garotinho foi pro hospital. Em que sonho te perdi? Lei do Amor fere todas as leis. Meu vestido preto com brilho não cabe mais. Viva o Uber. E os drones. E viva quem eu era com você. Empoderamento é ideologia de quem não tem qualquer ideologia. Desidratar alguém é prova de amor. A boca do inferno de Gregório de Matos foi pro céu. Mickey Mouse completa 88 anos. E eu não sei ser sem você. Dilma não vale nada. Lula não vale nada. Temer não vale nada. Renan não vale nada. Aécio não vale nada. Alckmin não vale nada. Mas quanto vale quem vale? Carboidrato não engorda. E dormir é overrated. Ai, que saudades de nós. E saudades da Darlene. Vidas Secas afogaram. Queria ir pra Mongólia. Ou pra Arcádia. Ou ficar mesmo no Itaim. O Brexit acabou com o verão no Brasil. Tudo culpa do Bob Dylan. O que nos fizemos? O que nos causamos? Não me vejo no Retrato de Cecilia Meireles. Nem no retrato de Dorian Gray. Mas me vejo no Retrato em Branco e Preto do Chico. Sempre me vejo no Chico. Queria mesmo era ser a Capitu. Só que recatada e do lar. Nosso lar. E nossas contas, contas, contas. Nossas contas desacertadas. Je suis. I am. Ai, bendito. Sonhei com o Papa Francisco e acordei de burka. O Japão é comunista. É, sim! Tá escrito na bandeira. Trump é o novo dono do mundo. Mas há ainda algum mundo no mundo?A Superlua minguou em redondilhas menores. E eu só sei que nada sei. Nem saberei. Só vou saber quando souber trazer você de volta pra mim. Sobreviverei a todas as verdades. A verdade salva? A ignorância salva. E quem me salvará do teu vazio? God save the Queen.


terça-feira, 15 de novembro de 2016

Coroas e Caras.

"Liberdade! Liberdade!... Abre as asas sobre nós..." 

Os versos acima são do Hino da Proclamação da República, mas ficaram mais conhecidos  100 anos depois, como refrão do samba enredo na vitória da Imperatriz Leopoldinense  em 1989.

Do latim "res publica" (coisa pública), o conceito de república é amplo, pois abrange outros conceitos como democracia, bem comum e liberalismo. Hoje, entendemos como república a forma de poder que emana do povo, fundamentada numa constituição  que promove, protege e garante os direitos fundamentais e as liberdades civis de todos os cidadãos de igual forma.

Em 15 de novembro de 1889,  proclamou-se a República no Brasil, pondo-se fim à Monarquia.  Teoricamente, isso significaria a migração do "império da coroa" para o  "império da lei".

127 anos depois, no entanto, ainda vivemos num autêntico sistema imperial, onde cora e lei ainda se confundem. Privilégios de poder seguem transmitidos hereditariamente. Igualdade aplica-se apenas às minorias beneficiadas. E a justiça regulamenta, predominantemente, justificativas para a impunidade.

A partir do escândalo do mensalão, em 2005, temos vivido a tímida esperança da descoroação desses impérios anacrônicos. Esperança frustrada por tão poucas punições e pelo rápido rearranjo dos podres poderes.

A operação Lava-Jato reacendeu essa esperança, ao mesmo tempo em que testemunha, atônita, as manobras mais do que  escabrosas para transformar denúncias em  vitimizações e vitimizações em denúncias.  O salve-se-quem-puder começa a abalar os pilares que , historicamente,  perpetuam coroas: lealdades, fidelidades e cumplicidades. Mas, ainda assim, ainda que com já alguns condenados, a mobilização para salvação dos podres poderes preocupa e decepciona.

A consolidação da  nossa república parece , ainda , um futuro distante e utópico e   conceito mais simbólico do que real.  As moedas de troca continuam manipuladas. É muita coroa pra pouca cara!


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Porque saber ler é preciso.

Maria foi nossa empregada por muitos  muitos e muitos anos. Já nem me lembro quantos. Ela já trabalhava conosco quando morávamos em Belo Horizonte e nos acompanhou na mudança pro Rio. Era negra, gorducha e aguentava, estoicamente, uma casa com 5 crianças com horários variados e, a partir da nossa adolescência,  as refeições com a mesa cada vez mais cheia de amigos.  Maria tinha uma melhor amiga, d. Alice, costureira, e um namorado, Bruce,  motorista de ônibus de turismo e que a esperava na rua de trás para namorarem. E era analfabeta.

Maria foi a minha primeira cobaia como professora. Fiz dela um projeto pessoal e adorava passar tempo no quarto ela, ensinando-a a escrever as primeiras letras. Falava sobre vogais e consoantes, cantava as musiquinhas que aprendia na escola e ela ia aprendendo. Quer dizer, aprendendo apenas o que tinha se proposto a aprender: escrever o seu nome. Maria Alves. Copiava, copiava, copiava. Um esforço enorme para reproduzir  as letras que compunham o seu nome sem olhar para o modelo. Maria Alves. Um nome tão comum quanto o analfabetismo que  ainda marca as tantas outras Marias Alves no Brasil.

Não tinha a dimensão, na época, do que significava viver num mundo em que letras não fazem sentido. Ou em que o itinerário do ônibus é definido pelas suas cores. Ser cega, surda e muda sem ser. E precisar se relacionar com o mundo que impõe o mistério implacável e intransponível da alfabetização.

Fui entender esse abismo muito tempo depois. E a consciência da indignidade do analfabetismo marginal me faz sempre lembrar da Maria com  admiração ampliada e orgulhosa por, por questão de honra determinada, ter aprendido  a desenhar o seu nome!

Ainda que tenhamos evoluído nas últimas décadas, o Brasil ainda ocupa a vergonhosa  8ª posição, segundo a UNESCO,  de pais com maior número de analfabetos no mundo. 8,7% dos brasileiros acima de 15 anos ainda  são analfabetos absolutos e 27% são analfabetos funcionais. Mais além, apenas 8% da nossa população são considerados "proficientes" ou seja, capazes de compreender e elaborar textos de motivações diversas, além de gráficos e tabelas, e  conseguir opinar, argumentar e se posicionar com clareza e consistência.

Tendo nas palavras a  minha formação e trajetória profissional,  tenho dificuldade em imaginar o mundo desprovido da mágica do ler e escrever. Porque aprender letras é, sim, um processo mágico. Entendê-las na sua primitividade e, a partir daí, experimentá-las em ordenações múltiplas para significados infinitos é  agigantar, alargar, libertar, transformar, romper, desafiar, ultrapassar. É multiplicar e desvendar mundos, universos. É mergulhar em realidades sonhadas ou em sonhos reais.

Precisamos intensificar  as políticas e ações  - possíveis e disponíveis - para erradicar o analfabetismo em nosso país. E acreditar que a primeira e maior das riquezas e grandezas de uma verdadeira nação  é ter nas letras, em cada uma, como em cada letra que compõe o nome Maria Alves, diamantes reluzentes!



quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Trump e muros.


Em 9 de novembro de 1989 Daniel tinha 2 anos e 4 meses e Marina quase 10 meses. E eu testemunhava, incrédula, as imagens do Muro de Berlim sendo derrubado por marretas e picaretas. Marretas e picaretas mais simbólicas do que reais e que mal tiraram lascas da solidez separatista que o tinha erguido 28 anos antes. A imagem daqueles milhares de pessoas ocupando o topo do muro me impactam até hoje. Para a minha geração, juntamente com a chegada do homem à lua, uma das maiores transformações da humanidade.

Em 2012 fui a Berlim com a Marina e emocionei-me muito diante do que restou do muro. Por tudo o que representou antes e depois da sua queda. Foram minutos de recolhimento e absorção solitários e necessários. Os grafites desordenados e de cores e imagens intensas - a maioria de teor pessimista e fatalista - carregam um simbolismo que minha filha, de outra geração, não sentiu.

Ao longo desses 27 anos,  a queda do muro tem nos assombrado com sua herança contraditória.  É  bem verdade que algumas liberdades incontestáveis ganharam espaço e o mundo desordenou-se em pontes importantes. No entanto, muitos outros muros -  visíveis e invisíveis -  foram sendo erguidos diariamente, impondo distâncias absolutas e intransponíveis. Os muros das inconciliações e intolerâncias alastram-se em proporção ainda maior do que as  pontes de conexão disponibilizadas  pelo nosso  mundo globalizado.

Hoje, num mesmo coincidente 9 de novembro, a eleição de Donald Trump re-ergue  o que talvez  seja o  muro mais simbólico da história da humanidade. O país guardião da democracia sucumbe ao autoritarismo separatista, discriminatório, preconceituoso, machista e xenofóbico. Em nome do resgate da grandeza épica -  ainda mais potente do que o Sebastianismo português - retira-se do mundo escolhendo que valores guardar e que valores rejeitar, além de escolher quem comporá a identidade idealizada e renegar, a qualquer preço, quem  ameaça a sua pureza.

A promessa do muro divisório com o México é apenas um dos muros que a partir de hoje passam a delinear  a geografia estadunidense. A proximidade com ideologias nacionalistas até então opositoras assusta. Não se imaginaria, em qualquer tempo, sob qualquer condição ou configuração, um discurso de um presidente americano alinhado com líderes antidemocráticos.

Temeroso perceber recuos tão determinantes quanto mais o mundo se mostra frágil e desamparado. Desalentador reconhecer que os movimentos para entendimento e conciliação serão paralisados. Incerto prever os desdobramentos e impactos no equilíbrio entre ordens e desordens no mundo. Essas ordenações e desordenações são mutáveis e são elas que promovem as transformações. Progressos e retrocessos igualmente.

MAKE AMERICA GREAT AGAIN. Pergunto-me em que grandeza os americanos votaram.