Este ano não montei a minha árvore de Natal.
Quem me conhece, sabe bem o que - e quanto! - a árvore de Natal significa pra mim. Ela conta a minha história, exibe meus momentos, minhas emoções. Montar a árvore, a cada ano, é o ritual do qual não abro mão. O momento em que paro tudo, e dedico algumas horas, ao som de músicas natalinas, a enfeitar cada galho com minhas lembranças e desejos futuros. Cada enfeite tem uma história. Nenhum está ali por acaso ou sem uma referência. Tenho os enfeites, já capengas e desbotados, desde a primeira árvore que montei a partir do nascimento do Daniel e da Marina. Os de isopor e de tecido quando eles eram pequenos para não quebrarem; os que fizeram, eles mesmos, nas diversas escolas pelas quais passaram; os que compramos com todo o deslumbramento em Porto Rico para montar a nossa primeira árvore "de verdade"; os que foram presentes de amigos; os que foram trazidos de viagens. Temos a tradição de, a cada ano, pendurar um enfeite novo. E, de enfeite em enfeite, a árvore foi crescendo enquanto as memórias afetivas se multiplicavam.
Vejo amigas que, todos os anos, enfeitem a sua árvore de maneira diferente! Mudam cores, enfeites, temas. Acho lindo!! Mas não consigo mudar a minha. Ela é, todos os anos, a mesma, apenas acrescida de um novo enfeite, enquanto os mais antigos vão sendo remendados para sobreviverem. As luzes são brancas. As contas que rodeiam os galhos são vermelhas. Os laços são todos vermelhos. Os sinos são vermelhos e dourados. Os enfeites são, predominantemente vermelhos, com alguns toques de dourado e coloridos. Tenho vários papais-noéis. Tenho maçãs. Tenho bolas de formas, tamanhos e materiais diferentes. Tenho duas bolas de vidro cor de rosa que foram da árvore de Natal da família americana que me hospedou no intercâmbio em 1974! Tenho muitos bonecos. Tenho bailarinas. Tenho brinquedos, notas e instrumentos musicais, doces, caixinhas de presentes e de música, figuras lendárias. Tenho Shakespeare. Tenho Beatles. Tenho m&m. Tenho pontos turísticos do mundo. Tenho duas pombas, uma branca e uma vermelha, que mal se aguentam de pé, mas que ficam quase no topo da árvore para guardar a paz. Tenho um anjo ruivo de camisola branca e asas vermelhas feitas pela minha sobrinha que fica bem no topo da árvore, sustentado pelas pombas. Cada um desses enfeites tem um enorme valor sentimental. Ano após ano, seguem pendurados na minha árvore e são, no dia 6 de janeiro, guardados com o maior carinho e o maior cuidado. São meus tesouros.
Não montar a árvore este ano - entre outras coisas, porque ela não cabia no novo apartamento - foi o ato de maior desapego ente tantos outros atos de desapego que tenho, por razões diversas, exercitado nos últimos anos. Não sem sofrimento. Não montar a árvore custou choro inconsolável. Vômito. Pressão baixa. Mal estar quase irrecuperável. Um dia de cama. E, então, por fim, a lição libertadora que o desapego ensina.
Há algo no desapego - quando verdadeiramente aprendido e apreendido - extremamente libertador. Ainda que simbólicos, nossos apegos, de alguma forma, nos aprisionam em repetições inconscientes e que, muitas vezes, nos impedem de ver além. Não que não tenha o seu valor. O apego emocional - esse, sim, o de maior valor - dá chão, referencia, reverencia. Mas o apego pesa. E leveza é tão bom... Tão renovador... Tão curador...
Poderia ter optado por uma árvore menor? Sim, mas não quis. O processo de desapego, pelo menos enquanto ainda não totalmente incorporado, rejeita substituições. Soa quase como traição. Pode ser que no próximo ano, outra linda árvore surja. Surgirá. Não me concebo sem um típico Natal com todos os seus símbolos.
Mas o mais legal desse processo sofrido foi montar a árvore que nem me dava conta que foi se armando internamente durante esse ano de tantas transformações. E que árvore reluzente eu ostento dentro de mim!!! Foram tantos e tantos os ganhos com tantos e tantos desapegos!!! Aprender as felicidades pequenas é aprender a essência da felicidade. Um "mã, vou almoçar" do meu filho, um "hello", da minha filha à noite, um dia tranquilo da minha mãe, uma nova receita que dá certo. Um almoço com amigas, um sem fim de telefonemas, risadas sobre nada, um bom filme, um bom livro, programas bizarros na tv. A feira da esquina, o supermercado em frente, a loja de quinquilharias irresistíveis. Vibrar junto, chorar junto. Provas incontáveis de amizades que me emocionam e dão chão. Meus amigos, amigas, tantos, de lá e de cá, de then, now and forever: que sorte eu tenho!! Meus irmãos, meus sobrinhos, meus sobrinhos-netos. Meus filhos - e incluo o genro! E os cães-netos! - conquistas e dificuldades. Por sorte, mais conquistas do que dificuldades. Meu ex-marido, parceiro e generoso. Minhas famílias expandidas enormes! E meus alunos... Meus queridos alunos que injetam vitalidade e atualidade. E se assombram e me assombram com novos olhares, reconhecimentos, aprendizados tão além do aprender! Dezenas de piscas-piscas que me obrigam, todos os dias, a ser a mesma sendo outra. Que sorte a minha!
E é nesse espírito de desapego que termino 2108.
Que 2019 seja uma enorme, gigantesca árvore de Natal novinha em folha! Galhos verdinhos, folhas orvalhadas! E que, ao final do ano, a gente se maravilhe com os enfeites que penduramos!!
FELIZ ANO NOVO!!!!
Ali ali só ali se se alice ali se visse quanto alice viu e não disse se ali ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da alice só alice com alice ali se parece (Paulo Leminski)
segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
sábado, 29 de dezembro de 2018
Bohemian Rhapsody. A voz do dono e o dono da voz.
"O que é bom para o dono é bom para a voz...O que é bom para o dono é bom para vós... O que é bom para o dono é bom para nós..." (A Voz do Dono e o Dono da Voz - Chico Buarque)
Uma porta - apenas uma porta - separa uma das maiores vozes de todos os tempos de um Wembley Stadium tomado por mais de 80.000 pessoas. Do lado de cá da porta, o dono da voz caminha tenso, se alonga, tenta relaxar o corpo. Concentra-se. Não dá para imaginar o que passa na cabeça do dono da voz. Não dá para simular a sensação de ser a voz de tantos. Dos 80.000 ali. E de mais 1.5 bilhões conectados pelas tvs ligadas em todo o mundo.
Quem, como eu, viveu o dia 13 de julho de 1985 já se emociona e se arrepia na cena de abertura do Bohemian Rhapsody. Naquele dia inesquecível, o mundo - o do rock e todos os outros - se uniu em uma campanha jamais repetida de combate à fome na África. Foram 16 horas de shows simultâneos em Londres e na Filadélfia e os maiores nomes do rock mundial participaram gratuitamente. Estima-se que a arrecadação tenha chegado a 150 milhões de libras.
A escolha dessa cena como abertura não poderia ter sido mais acertada. Ainda que a apresentação propriamente dita só ocorra no final do filme, o lado de cá da porta já estabelece, de imediato, a importância da voz do dono e do dono da voz. Porque, talvez, não haja voz nem dono da voz tão simbólicos das últimas décadas do séc XX !
A construção da trajetória de Freddie Mercury - profissional e pessoal - apoia-se na construção da sua obra-prima Bohemian Rhapsody. A música de 1975, parte do álbum 'A Night at the Opera" foi, contrariando o rock tradicional dominante, um estrondoso sucesso! Diferente de qualquer referência anterior e longa demais para os padrões musicais (6 minutos!), levou três semanas para ser gravada em quatro estúdios diferentes e desafiou a tecnologia disponível na época. A brincadeira com a ópera resultou numa verdadeira obra-prima de complexidade comparável a músicos como Liszt e Brahms, que também compuseram famosas rapsódias.
Na Grécia Antiga, a rapsódia era um fragmento de um poema épico declamado, pelo rapsodista, de maneira independente da obra principal. Costurar os fragmentos da vida de Freddie Mercury e da banda Queen aos fragmentos da composição da Bohemian Rhapsody fazem o filme coeso, coerente e emocionante. Ainda que ela não seja cantada, na íntegra, em nenhuma cena, é ela que conduz a narrativa e apresenta os conflitos, angústias, humanidades e genialidades do dono da voz.
Aliás, o caráter dramático do típico herói grego pontua a trajetória do Freddie Mercury. Há algo heroico nos que, como ele, incapazes de transitarem dentro do senso comum, cedem à força criativa de suas inspirações quase divinas e, sem controlá-las, sucumbem os seus corpos a favor dos seus legados. A pulsão incompreendida é tão criadora quanto destrutiva. Não raro, como no caso dele, o fim é trágico.
O conflito amoroso também entra na composição do perfil heroico. O amor idealizado impossibilitado de realização plena é objeto da literatura desde que o mundo é mundo. "Love of my life", hino da minha geração e cantado várias vezes no filme, é um lindíssimo tributo a Mary, seu amor de vida de alma. É melancólico ver esse amor tão puro de essência ser fragmentado - rapsodiado - do desejo do corpo. Que linda história de amor!
Aos que criticam as "livres adaptações" diante da história real ou a forma "rasa" como alguns temas - como a sexualidade ou a homofobia - foram tratados, lembro que o filme não tem a intenção de documentário e, portanto, permite licenças poéticas. A abordagem conservadora e previsível, em pleno 2018, das polêmicas hoje ultrapassadas não comprometem a beleza e emoção do filme.
Bohemian Rhapsody é um tributo a uma das mais belas vozes de todos os tempos. Um tributo a um gênio transgressor e angustiado por ser o que deveria ser em universos pessoais claustrofóbicos e incompatíveis. Uma revisita a momentos musicais únicos, emocionantes e de talentos incomparáveis. Uma revisita a uma época de grandes transformações, grandes mudanças e grandes novos olhares.
Rami Malek cede-se a Freddie Mercury de forma impressionante! Jeitos, trejeitos, olhos e dentes. Que atuação!
No mais, é apenas deixar-se levar pela trilha sonora arrebatadora e emocionar-se às lágrimas com as cenas que fazem parte da nossa história. Pelo menos, da minha. Que privilégio o meu!
Vivi a época do dono da voz! E a voz do dono embalou minhas pequenas rapsódias de vida! Que sorte a minha!!
Espero que as gerações futuras nunca deixem de conhecer essa voz e o seu dono!
sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
Silence of the lamb.
"Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, misere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, misere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem."
Em O Silêncio dos Inocentes, filme de 1991 e ganhador do Oscar das cinco principais categorias, o absolutamente maravilhoso Anthony Hopkins, apenas nos primeiros 15 minutos do filme, transformou o seu vilão Hannibal Lecter num dos mais aterrorizantes vilões da história do cinema. Enclausurado em uma prisão de segurança máxima, seus olhos, frios e psicóticos, propagam terror devagar e calculado. Hannibal percorre, com destreza aflitiva, a linha tênue entre a genialidade e a insanidade.
Não gosto da tradução em português. O Silêncio dos Inocentes retira o significado essencial de Silence of the Lamb. Afinal, cordeiro é uma fortíssima simbologia dentro do Cristianismo. Os hebreus sacrificavam os seus melhores cordeiros a Deus para remissão dos pecados. Jesus Cristo, o "Cordeiro de Deus", morreu em sacrifício supremo como maior prova do amor de Deus pela humanidade.
Enquanto acompanho, incrédula, as denúncias contra João de Deus, alterno ondas de profunda tristeza e incontrolável náusea. Abadiânia, contaminada, mistura toda a energia curativa e redentora à energia abusiva e destrutiva. O Templo da Esperança convertido em Circo de Horrores.
Ainda que muitos ainda duvidem - coisas que só a fé cega e burra, perdoem o pleonasmo, explica - não há como ignorar, desvalorizar e muito menos desqualificar as mais de 300 denúncias já recebidas. E muitas outras certamente ainda virão. O número já é o triplo dos quase 100 estupros e/ou tentativas de estupro do monstro Roger Abdelmassih, condenado a mais de 250 anos de prisão.
A orfandade espiritual é cruel. As fragilidades extremas que buscam acolhimento e proteção demoram a realizar a ruptura da confiança que prometia cura. De qualquer natureza. Qualquer uma. Todas. Coletivas. Individuais. As mais sofridas. As mais finais. Terminais.
Impossível não pensar nesse pesadelo sem associá-lo a Silence of the Lamb. João de Deus Hannibal, complexo, calculista, profundo conhecedor das fraquezas. Manipulador de energias voluntárias e inocentes. Doente. Demoníaco. Anjo negro. Curandeiro dos paradoxos. Charlatão de almas.
Impossível não pensar nessas mulheres abusadas, humilhadas e marcadas. Cordeiros. Sacrificadas. Cordeiros do deus invertido. Silenciadas pelo medo, pela vergonha, pela dúvida. Cordeiros. Solitárias, assombradas, angustiadas. Vozes inaudíveis diante do deus ruidoso. Submissas diante do opressor disfarçado em doação ao próximo.
Julgar o Silence of the Lamb é um ato de violência contra quem já foi tão violentado. Colocar em dúvida sua veracidade é validar atos de amoralidade. Minimizar a gravidade das ações é permitir futuras repetições.
Silence of the Lamb. Que salvador é quando esses silêncios se encontram nos tortuosos caminhos da voz... E gritam. E revelam. E desnudam. E colocam deus na sua real pequeneza e baixeza.
Quando cordeiros, por fim, quebram seu silêncio, deuses de barro ruem. E o mundo respira mais aliviado. Mais empático. Mais transformador. Mais energético. E a energia canalizada para o bem tudo pode!
domingo, 2 de dezembro de 2018
Festas das Luzes.
A comunidade judaica celebra, a partir de hoje e por oito dias, o Hanuká, conhecido como a Festa das Luzes. A celebração lembra a expulsão dos gregos de Jerusalém em 160 a.C. Após a retomada do Templo, totalmente destruído, era necessário reacender a Menorá, o tradicional candelabro de oito braços. No entanto, só havia azeite para mantê-lo aceso por um dia. Milagrosamente, a chama manteve-se por oito dias, tempo suficiente para produção de novo azeite. Por isso, Hanuká é celebrado durante oito dias, sendo que, a cada noite, uma vela é acesa.
Coincidentemente, a comunidade católica também inicia hoje o período litúrgico do Advento. Observado durante as quatro semanas que antecedem o Natal, o Advento é caracterizado pela purificação e preparação para o nascimento de Jesus. Seu símbolo é uma coroa de ramos, cuja forma circular representa a eternidade e cuja cor verde remete para a esperança e a vida. Há também na coroa quatro velas, chamadas de círios, que são acesas uma após a outra nos quatro domingos do período.
Religiões à parte, há simbolismo mais lindo do que as luzes de dezembro? Todas as formas de luzes? Metafóricas ou reais?
Luzes reluzem cintilantes. Muti-colorem. Ou prateiam. Piscam-piscam. Brilham incansáveis. Ou apenas flamejam. Céu-estrelam, como mágica, ruas, janelas, jardins, vitrines chamativas, casas decoradas, árvores enfeitadas, mesas convidativas e candelabros de nove braços. Luzes criam sonhos e fantasias. Renovam fé e esperança. Resgatam inocência e ingenuidade. Promovem generosidade e solidariedade. Luzes encurtam distâncias. Aproximam no coração. Fazem as pazes. Esquecem diferenças. Cultivam afetos. Acalantam saudades. Cuidam, presenteiam, agradam, lembram. Luzes iluminam. Apontam caminhos. Guiam. Revelam mistérios. Desvendam o desconhecido. E, sob a luz do conhecimento, temores se dissipam e angústias se acalmam.
Em tempos de luzes, mergulhamos na nossa própria escuridão. E encontramos aquela chama tênue que jamais se apaga. A chama que nos faz especiais e únicos. Que nos torna fortes. Que lembra a nossa história. Que cura feridas. Que reconhece nossas conquistas. Que nomeia quem trazemos no coração. Que embala amores. Que impulsiona oportunidades. Que desconhece limites. E inunda-nos de sol incandescente.
As velas de Hanuká e do Advento flamejam suas primeiras chamas.... As luzinhas do Natal começam a cintilar... Que elas se reflitam em nós! Em todos nós! E que seus brilhos nos sejam emprestados para que todos brilhemos! Para que, numa corrente única e cada vez maior, cresçamos no conhecimento e na consciência! E vivamos na paz e no amor!
Felizes Luzes!
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