domingo, 19 de novembro de 2017

Benditas terceiras margens!





"e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio."


Comecei Guimarães Rosa ainda no colégio, com Sagarana como leitura obrigatória. Não gostei. Ou não entendi. Ou ambos. Não é fácil ler Sagarana. Não é nada fácil começar Guimarães Rosa. 

A Terceira Margem do Rio foi o conto que rompeu as minhas comportas hídricas  com a linguagem rosiana e jorra, desde então, caudaloso e irreversível, como uma das minhas mais sagradas referências literárias! 

A imagem de uma terceira margem de um rio é de uma genialidade insuperável! Quantas e quantas vezes apenas essa invisível e intangível terceira margem revela soluções? Ou explicações? Ou conforto? Desconhecer a terceira margem é limitar o mundo de forma quase sufocante. Insuportável. A terceira margem é libertadora. A terceira margem une o impossível, o indizível. E é única, pessoal e intransferível. E inconfessável!

Acredito que só se consiga entrar, efetivamente, em Guimarães Rosa, através dessa terceira margem. Apenas cruzando essa linha imaginária e despidos de qualquer hermetismo linguístico anterior, mergulhamos na iluminação dos mistérios quase de fé que ele criou. Que gênio!!!

Guimarães Rosa é gênio!!! Gênio pela retórica inovadora e incomparável! Gênio pela oralidade traduzida em prosa! Gênio pela simplicidade da maior complexidade! Gênio pela globalização visionária e vanguardista: o sertão é o mundo e o mundo é o sertão!

Grande Sertão: Veredas, sua maior obra, universaliza o "viver é perigoso". A aridez do sertão ecoa na aridez de todos os heroísmos pela sobrevivência. E eleva a saga de Riobaldo aos  patamares da Ilíada de Homero, de Fausto de Goethe, de Dom Quixote de Cervantes e da Divina Comédia de Dante. Não por acaso, é o único livro brasileiro incluído na lista dos 100 melhores livros de todos os tempos! E em 27º lugar!

Reler Sagarana, anos depois, foi fazer as pazes com o começo "avessado" do colégio.  Hoje, Sagarana é um dos meus livros favoritos e, a cada releitura, surpreendo-me com as infinitas revelações e inspirações! E encanto-me com essa coletânea de fábulas que explicam, com tanta poesia e sensibilidade, todos os sentimentos do mundo!

Viva João Guimarães Rosa!! E muitos vivas ao seu maior legado:  nossas terceiras margens. E quartas, e quintas, e... 










sábado, 18 de novembro de 2017

A Tartaruga de Darwin. A História por debaixo.








                                                                        "Viver é adaptar-se."


Charles Darwin publicou  A Origem das Espécies em 1859. A obra-prima que apresentou a Teoria da Evolução foi resultado de estudos e observações registrados  durante a viagem de 5 anos do então jovem biólogo, de apenas 26 anos,  a bordo do HMS Beagle. As Ilhas Galápagos, em especial, foram o grande laboratório natural de inspiração e determinantes para a fundamentação de sua Teoria.

Darwin impressionou-se particularmente pelas gigantes tartarugas  e levou 3 delas de volta à Inglaterra. Por serem muito jovens, as tartarugas não forneceram evidências tão consistentes quanto os pássaros de Galápagos e, em função disso, e para viverem em um habitat mais parecido com o original, foram transportadas para a Austrália.

Harriet foi a mais longeva e famosa dessas tartarugas. Na verdade, foi tratada como Harry até 1960, quando só  então foi identificada como fêmea! Harriet morreu em 23 de junho de 2006, aos 175 anos, no Jardim Zoológico de Beerwah em Queensland, na Austrália.

O dramaturgo espanhol Juan Mayorga inspirou-se na história de Harriet para escrever, em 2008, A Tartaruga de Darwin. Para ele, a vida da tartaruga coincide com as maiores transformações da humanidade. Harriet foi testemunha da Revolução Russa, das 2 Guerras Mundiais e da Queda do Muro de Berlim. Harriet sobreviveu a onze papas e a trinta e cinco presidentes norte-americanos. E há visão mais  inovadora do que a imaginar a História por debaixo, apenas ao  alcance dos olhos de  uma tartaruga?

Mayorca constrói Harriet, evoluída exponencialmente como previa a Teoria de Darwin, como uma senhora de 200 anos, que pensa, fala e se comporta como um ser humano. Cansada, deseja voltar às Ilhas  Galápagos para morrer em casa. Para isso, procura um renomado historiador e, em troca de suas memórias históricas, pede a sua ajuda para a viagem de volta.

E são nessas memórias tão particulares que revivemos a história e os bastidores de alguns dos grandes acontecimentos. Sempre na altura que permite a sua visão. E é assim que ela conseguiu ler, em primeiríssima mão, o esboço do Manifesto Comunista que Marx deixou cair, acidentalmente, na rua por onde ela passava. E participou dos primeiros discursos de Hitler quando vivia como bicho de estimação de uma senhora alemã. E deu a cabeçada inicial que derrubou o Muro de Berlim. Ao mesmo tempo, Harriet se emocionou com pequenos gestos que presenciou, como o olhar apaixonado de um soldado.

Ao mesmo tempo, a "evolução" de Harriet  é proporcional à decadência dos valores humanos. Ficou de pé pela primeira vez para não ser pisoteada. Aprendeu a ler com a revista Times, de cujas "cruzadinhas" Darwin era fã. "Não" foi a sua primeira palavra, tentando salvar uma menina. E viu o pior do ser humano, resistindo graças à sua natureza cascuda. "De todos os animais, o homem é o mais terrível", afirma Harriet. O "debaixo" de Harriet, nesse sentido, é o simbólico "debaixo" da nossa civilização.

A diretora Mika Lins apresenta uma montagem muito original! Henriqueta é a versão brasileira de Hariet e desafia o protótipo de uma respeitável senhora de quase 200 anos! Mika é imbatível na concepção minimalista de cenários e figurinos. Esse é o 3º trabalho do meu filho  com a Mika  e sempre me surpreendo com a sua precisão e concisão  espacial,  com sua  contemporaneidade cênica e com sua habilidade em misturar linguagens.

O cenário é muito bem concebido e apoiado na iluminação muito eficiente! Chão e móveis reluzentes e painéis de "radiografias" históricas pontuam os espaços e os tempos. Menos é realmente mais!

Mas é no figurino de Henriqueta que Mika se supera! O mosaico de estilos, texturas e cores sintetizam 200 anos de moda! E evidenciam a modernidade e atitude transgressora de quem, ao longo de 200 anos, incorporou hábitos e estilos. Henriqueta adotou itens de vestuário conforme viveu suas experiências. Do penteado conservador do início do século ao par de tênis cor-de-rosa do séc XXI, acessórios desconexos compõem o figurino que traduzem o tempo que passa. O resultado é impressionante!!

Ana Cecília Costa é Henriqueta, Marcos Suchara é o historiador, Tuna Dwek  é a sua esposa e Diego Machado é o médico que tenta desvendar as transformações do ponto de vista biológico. Elenco afinado, harmônico e que trazem de seus personagens o tom necessário para a dramaticidade e também para a comicidade.

Pois é nas oportunidades para a  comicidade que Mika Lins consegue quebrar a "seriedade" histórica e brincar com o teatro e com o palco. Divertir. O público e o palco. No palco. Fazer do exercício dramático  um espaço para auto crítica e experimentação. E impor leveza irônica e descompromissada.

 Um belo trabalho de crítica à nossa involução!

Se Darwin  pudesse imaginar...