O domingo choveu chuva fina, intensa, invisível. Chuva de partículas imperceptíveis que dividiam ininterruptamente o indivisível. E o indivisível era maior do que o mundo. E tinha gosto de farelo de chocolate e cheiro de coelho arisco e som de risada de criança e cor de esperança e toque de muito amor. O domingo choveu Páscoa.
(Publicado no grupo Minicontos em 08.04.2012. Palavra tema: MIGALHAS)
Ali ali só ali se se alice ali se visse quanto alice viu e não disse se ali ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da alice só alice com alice ali se parece (Paulo Leminski)
domingo, 27 de março de 2016
sexta-feira, 25 de março de 2016
Memórias de Páscoa. Memórias barrocas.
De todas as festas religiosas, a Páscoa é a que tem mais gosto da minha infância.Morar em Belo Horizonte e ter uma mãe devota a Santo Antonio produziu uma tradição de Semana Santa muito particular.
Congonhas do Campo e Ouro Preto. Duas cidades que marcaram a comemoração de Páscoa na minha família. Íamos na Kombi do meu pai, na época, único carro capaz de acomodar cinco filhos e uma enorme cesta de piquenique.
Congonhas do Campo, hoje patrimônio cultural da humanidade, é um dos maiores acervos da riqueza barroca do Aleijadinho. Lá está o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, com os famosos doze apóstolos esculpidos em pedra-sabão e em tamanho real. Subir e descer as escadarias do Santuário era a nossa grande diversão. Mas o que nos fascinava mesmo, como crianças, era visitar as seis capelas - Capelas dos Passos - em frente à Basílica, que representavam a Via Sacra em imagens, também em tamanho real , esculpidas em madeira. As imagens, de uma realidade impressionante, retratam as sete estações: a Santa Ceia, o Horto das Oliveiras, a Prisão de Cristo, a Flagelação, a Coroação de Espinhos, a Subida ao Calvário e a Crucificação. Fizemos tantas vezes esse caminho, que éramos capazes de descrever, com precisão de detalhes, cada uma das sessenta e seis imagens reproduzidas nas capelas. E foi assim, percorrendo o barroco mineiro, que aprendi o significado da Páscoa na minha religião.
Não sei dizer quantas vezes fomos a Outro Preto nos dez anos em que moramos em Belo Horizonte! Lá fazíamos os nossos piqueniques, nas muretas no ponto mais alto e de onde avistávamos toda a cidade! Mas o que diferenciava Outro Preto na Semana Santa era a tradição - que sempre acreditei ser da região , mas que hoje atribuo totalmente à devoção de minha mãe à Santo Antônio - das sete igrejas. O ritual era percorrer sete igrejas. Na sétima, segundo a minha mãe, precisávamos dar esmola a um dos muitos mendigos que sempre se colocavam à espera dos turistas e perguntar o seu nome. Aquele seria o nome de seu futuro marido. Claro que, na inocência da infância, nem percebíamos que cada ano era um nome diferente! Isso, na verdade, não tinha a menor importância. A expectativa de saber o nome - daquele ano - motivava o sobe e desce das ladeiras visitando tantas igrejas. Lembro-me especialmente do ano em que a minha irmã mais velha estava com o seu primeiro namorado: Luiz Pompeu. Minha mãe chamou um dos meninos que pediam esmola na saída da igreja e combinou com ele que "aquela mocinha vai te dar uma moeda. Quando ela perguntar o seu nome, responda que é Luiz Pompeu". E assim foi. E minha irmã empalideceu! Desfeita a brincadeira, o menino disse o seu nome verdadeiro. Homero de Jesus. Minha irmã se casou com Darc Antonio, nome tão peculiar e incomum quanto. Coincidência?
José Miguel Wisnik, em um dos seus ensaios, refere-se aos primeiros anos da infância como o período "quando a gente não sabe de nada e aprende tudo o que a gente mais profundamente sabe".
Acho que ele tem razão. Esse acervo inconsciente de memórias infantis construiu simbolismos determinantes na celebração das minhas Páscoas. Páscoas que independem de religião. Todas as Páscoas que ressuscitem a minha alma renovada. A compreensão de que os tortuosos caminhos da dor são inevitáveis para revelar novos caminhos. E acreditar que todo fim é outro começo. Tantos recomeços quanto necessários. E viver a fé inquestionável na minha capacidade de superação. E a humanidade de sentir todos os sentimentos. Da renovação que se apresenta, como mágica, na descoberta de um ovinho escondido. Ou da beleza arrebatadora da arte. Sob qualquer forma. Que imortaliza a fluidez e transitoriedade das nossas emoções.
Congonhas do Campo e Ouro Preto. Duas cidades que marcaram a comemoração de Páscoa na minha família. Íamos na Kombi do meu pai, na época, único carro capaz de acomodar cinco filhos e uma enorme cesta de piquenique.
Congonhas do Campo, hoje patrimônio cultural da humanidade, é um dos maiores acervos da riqueza barroca do Aleijadinho. Lá está o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, com os famosos doze apóstolos esculpidos em pedra-sabão e em tamanho real. Subir e descer as escadarias do Santuário era a nossa grande diversão. Mas o que nos fascinava mesmo, como crianças, era visitar as seis capelas - Capelas dos Passos - em frente à Basílica, que representavam a Via Sacra em imagens, também em tamanho real , esculpidas em madeira. As imagens, de uma realidade impressionante, retratam as sete estações: a Santa Ceia, o Horto das Oliveiras, a Prisão de Cristo, a Flagelação, a Coroação de Espinhos, a Subida ao Calvário e a Crucificação. Fizemos tantas vezes esse caminho, que éramos capazes de descrever, com precisão de detalhes, cada uma das sessenta e seis imagens reproduzidas nas capelas. E foi assim, percorrendo o barroco mineiro, que aprendi o significado da Páscoa na minha religião.
Não sei dizer quantas vezes fomos a Outro Preto nos dez anos em que moramos em Belo Horizonte! Lá fazíamos os nossos piqueniques, nas muretas no ponto mais alto e de onde avistávamos toda a cidade! Mas o que diferenciava Outro Preto na Semana Santa era a tradição - que sempre acreditei ser da região , mas que hoje atribuo totalmente à devoção de minha mãe à Santo Antônio - das sete igrejas. O ritual era percorrer sete igrejas. Na sétima, segundo a minha mãe, precisávamos dar esmola a um dos muitos mendigos que sempre se colocavam à espera dos turistas e perguntar o seu nome. Aquele seria o nome de seu futuro marido. Claro que, na inocência da infância, nem percebíamos que cada ano era um nome diferente! Isso, na verdade, não tinha a menor importância. A expectativa de saber o nome - daquele ano - motivava o sobe e desce das ladeiras visitando tantas igrejas. Lembro-me especialmente do ano em que a minha irmã mais velha estava com o seu primeiro namorado: Luiz Pompeu. Minha mãe chamou um dos meninos que pediam esmola na saída da igreja e combinou com ele que "aquela mocinha vai te dar uma moeda. Quando ela perguntar o seu nome, responda que é Luiz Pompeu". E assim foi. E minha irmã empalideceu! Desfeita a brincadeira, o menino disse o seu nome verdadeiro. Homero de Jesus. Minha irmã se casou com Darc Antonio, nome tão peculiar e incomum quanto. Coincidência?
José Miguel Wisnik, em um dos seus ensaios, refere-se aos primeiros anos da infância como o período "quando a gente não sabe de nada e aprende tudo o que a gente mais profundamente sabe".
Acho que ele tem razão. Esse acervo inconsciente de memórias infantis construiu simbolismos determinantes na celebração das minhas Páscoas. Páscoas que independem de religião. Todas as Páscoas que ressuscitem a minha alma renovada. A compreensão de que os tortuosos caminhos da dor são inevitáveis para revelar novos caminhos. E acreditar que todo fim é outro começo. Tantos recomeços quanto necessários. E viver a fé inquestionável na minha capacidade de superação. E a humanidade de sentir todos os sentimentos. Da renovação que se apresenta, como mágica, na descoberta de um ovinho escondido. Ou da beleza arrebatadora da arte. Sob qualquer forma. Que imortaliza a fluidez e transitoriedade das nossas emoções.
terça-feira, 22 de março de 2016
Pato aqui. Pato acolá.
Vestiu-se de belíssimas plumas de pato. Dessas, por onde a água só escorre. E assim, impermeável, aprendeu a gargalhar. Por dentro.
(Publicado no grupo Minicontos em 11.04.2012. Palavra tema: ÁGUA)
domingo, 20 de março de 2016
Outonação.
Desfolhando-se do sol, o verão se põe. O tempo recolhe-se em casulos amarelos, laranjas, vermelhos e castanhos. À espreita. À espera. Outros tons virão. Mas hoje não. Outro dia.
sábado, 19 de março de 2016
2 ,5 milhões x 500 mil. Noves fora? Um Brasil.
A comparação entre os números absolutos das manifestações contra e pró governo ocorridas nessa semana tem pouca relevância. São números expressivos. Realmente expressivos! E as imagens da Avenida Paulista tomada em toda a sua extensão nos dois dias impressionam. Realmente impressionam!
As generalizações que pontuam as discussões nas redes sociais, equivocadamente, inspiram-se nas minorias e, consequentemente, ignoram as verdadeiras mensagens.
Dos 2/3 da população que reprovam o governo e apoiam a saída da atual presidente, menos de 5% pedem a volta da ditadura. Da mesma forma, do 1/3 que defende a permanência da presidente, menos de 5% propõem um governo autoritário de esquerda. Usar eventuais cartazes sob essa motivação de um ou outro lado como temática predominante de uma e outra manifestação é generalizar o insignificante com clara - e burra! - intenção de desqualificar a legitimidade dos protestos.
Tirando esses noves fora, não parece haver dúvidas de que é vontade dos dois lados uma solução que não comprometa a democracia! Também parece unânime o repúdio à classe política e às práticas obscuras e escusas herdadas da nossa história. A condenação das complexas redes de corrupção e favorecimentos também aponta pauta convergente.
Se o que aproxima parece ser o mais relevante e construtivo da nossa cidadania, como explicar o confronto separatista e inconciliável?
Primeiramente, pelo que se entende como golpe e risco à democracia. Esse entendimento parece dividir também a opinião de juristas e autoridades no assunto. Particularmente, não consigo ver a democracia em risco ou afrontada caso - e apenas se - condutas comprovadamente reprováveis da presidente justifiquem o instrumento que, SIM, é legal e constitucional. A legitimidade da presidente eleita pela maioria do votos não está em discussão. O seu afastamento, CLARO, não pode ser motivado apenas pela ineficiência de sua administração ou pela queda vertiginosa de sua popularidade. Mas (quase) todos acreditamos - quero crer - haver suficiente indícios - ou, pelo menos dúvidas consistentes - que mereçam investigação cuidadosa. Nessa visão, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor foi, afinal, golpe? Foram também tentativas de golpe os quatro pedidos de impeachment do ex-presidente FHC em 1999? Não foram ambos também eleitos democraticamente? Apenas lembrando que, no caso Collor, houve também expressiva mobilização popular e o ex-presidente optou pela renúncia. No caso FHC, não houve adesão popular significativa.
Em segundo lugar, pelo receio de que, na eventual deposição da presidente, a oposição desqualificada assuma a condução o país. A teoria do "pior sem" não pode e não deveria, sob qualquer hipótese, ser aplicada numa sociedade que busca sua grandeza. Esse risco se desenha já nas negociações do apoio que garanta governabilidade. Alianças... Podem ajudar tanto quanto atrapalhar e, por isso mesmo, deveriam ser melhor avaliadas. Poupar transgressões e crimes pelo fato do outro ser igualmente suspeito - ainda que fortemente - de similares transgressões e crimes é inadmissível. Que cada um seja exemplarmente punido pelo que lhe cabe. E que o risco do "pior sem" sempre se sobreponha ao comprovadamente condenável. Apenas com ações firmes e inegociáveis conseguiremos, aos poucos, descontaminar a nossa política. O "rouba, mas faz" do malufismo parece ter ganhado nova roupagem na gestão petista: corrompe-se, mas promove-se inclusão social. Fins NUNCA justificam meios. E enquanto não entendermos e praticarmos meios lícitos, transparentes e dignos, os fins serão sempre inconsistentes, frágeis e insustentáveis.
Por último, e talvez o que mais oponha os dois lados, a base econômica. Os que hoje opõem-se frontalmente ao governo, ressentem os rumos econômicos que penalizam a produção, causando desemprego, inflação, falta de investimento e desconfiança comercial. Não reconhecem nos avanços sociais promovidos a sustentação que equilibre as perdas de atividade econômica pela recessão tão cruel. Os defensores do governo, no entanto, acreditam na politica econômica mais pautada nos programas sociais e com prioridade absoluta na melhor distribuição de renda, ainda que penalizando as atividades que justamente devem financiar a maior igualdade social. O mais irônico, nessa defesa, é que as gestões petistas foram as gestões que mais se aproximaram do "capital" que tanto demonizavam. Também paradoxalmente, os simpatizantes do governo - e o próprio governo - pouco comemoram a punição dos empresários "exploradores e cujos lucros insaciáveis são responsáveis pela miséria de tantos". Ao contrário, parecem condenar o rigor da justiça.
O discurso do ex-presidente Lula durante a manifestação na Avenida Paulista ontem repetiu a retórica dos anos 80, colocando a elite como opositora ao trabalhador. Retomou a doutrina do medo da interrupção de benefícios sociais. Cobrou mais saúde mais educação. Pareceu esquecer que o seu partido já está na quarta gestão e, portanto, críticas por mais saúde, mais educação, mais moradia e mais emprego são críticas a si mesmo.
Mais o que mais chamou atenção nessa retórica ultrapassada é a miopia na leitura dos tempo atuais. Não estamos nos anos 80. Muita coisa mudou no mundo e no Brasil. Nossa democracia amadureceu. Nossa cidadania ganhou novas consciências. Já somos outra geração, com filhos que já nasceram e cresceram com suas liberdades garantidas. A virtualidade traz conhecimentos e informações instantâneas. Promovem transformações e criam necessidades. As linguagens são outras e mutantes. As relações de trabalho mudaram. Oportunidades diversificaram.
Ainda assim, a miséria ainda é maior, MUITO maior do que a admissível em qualquer país digno. E impede o desenvolvimento e nos distancia do país que sonhamos ser. E deve ser, SEMPRE, prioridade alerta e incansável.
A última década nos ensinou que (1) é possível promover inclusão social (2) para que essa inclusão seja ascendente e contínua, o pais precisa continuar crescendo (3) a corrupção permitida sob a ilusão da alimentação econômica tem custo impagável (4) não é possível fazer politica sem concessões e a coerência de um governo define-se nas concessões cedidas.
Não tenho dúvidas de que todos os manifestantes que foram apoiar suas causas nas duas manifestações querem quase o mesmo: um pais democrático, próspero e justo. Esse país só será possível se: (1) retomarmos as atividades econômicas (2) estabelecermos programas sociais consistentes, mas possíveis (3) priorizarmos igualmente programas ambientais e sustentáveis (4) respeitarmos as instituições democráticas (5) promovermos a reforma política ampla, geral e irrestrita, entre tantas outras coisas.
A verdadeira mensagem das manifestações, turvadas pela superficialidade das discordâncias emocionais, é que nenhum dos lados se considera representado nas suas necessidades e aspirações.E não há cidadania sem sentimento de representatividade.
2,5 milhões de pessoas é exatamente igual a 500 mil pessoas e é exatamente igual aos outros 197 milhões ali igualmente reclamando representatividade. E expõem, com preocupação, a fragilidade dos alicerces do nosso crescimento social, econômico e democrático.
Noves fora os corruptos e criminosos que usurpam nossas riquezas; noves fora a intransigência e polarização; noves fora a irresponsabilidade e leviandade de muitos; noves fora o que nos afasta da dignidade. Sobra o Brasil. De todos e para todos.
O momento pede reflexão e contenção. Diálogo mais do que agressão. Empatia mais do que acusação. Humildade mais o que arrogância. Ponderação. Coerência. E alguns passos para conciliação.
segunda-feira, 14 de março de 2016
Um outro Chico.
"O meu caminho eu escolho... Tirando o cisco do olho... Enxergo longe, me arrisco... Sou como o Rio São Francisco."
(São Francisco - Moraes Moreira)
Passei a minha infância em Belo Horizonte. Minhas primeiras lições de geografia, foram, portanto, dentro das linhas que formam aquela mapa com nariz esquisito!
Não me lembro de muita coisa. Mas não havia como passar incólume pelo Rio São Francisco!
"O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais, e desemboca no Oceano Atlântico na divisa entre Sergipe e Alagoas. É o maior rio totalmente brasileiro e banha cinco estados: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. É navegável entre Pirapora em Minas Gerais e Juazeiro na Bahia.. Foi descoberto por Américo Vespúcio em 1501."
E acho que é tudo o que consegui guardar. Seja como for, fica uma referência, uma reverência à entidade mítica que é patrimônio histórico, geográfico, econômico e afetivo.
Quando tinha 10 anos, fui conhecer Brasilia com meu pai e minha irmã. Fomos de carro. Cruzar a ponte sobre o Rio São Francisco era parada obrigatória e para ser registrada em foto! Ali... Ali estava o Velho Chico...
Não que alcançasse o significado ou a importância real do Rio naquela idade. Mas quem tem alguma coisa de mineiro correndo nas veias físicas ou emocionais, mesmo sem saber ou querer, também deixar correr por dentro as suas águas!
Essas memórias doces se misturam com o amargo das transformações que o Rio vem sofrendo. Quanto mais o Velho Chico agoniza, mais a nossa consciência sobre o descaso ou exploração abusiva se indigna. Não se altera, estranhos gananciosos, a relação de amor e cuidado de quem sabe o valor do seu rio sem dor e sem perda.
Nossa malha hidrográfica tem encolhido em largas braçadas. Medidas ambientais urgentes e necessárias já têm seu prazo esgotado. E o Velho Chico surge como símbolo dessa teimosia em continuar aguando, ainda que com cursos alterados!
Quantas terceiras e quartas margens serão necessárias para ouvir os murmúrios de quem só quer correr belezas e poesias úmidas?
(São Francisco - Moraes Moreira)
Passei a minha infância em Belo Horizonte. Minhas primeiras lições de geografia, foram, portanto, dentro das linhas que formam aquela mapa com nariz esquisito!
Não me lembro de muita coisa. Mas não havia como passar incólume pelo Rio São Francisco!
"O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais, e desemboca no Oceano Atlântico na divisa entre Sergipe e Alagoas. É o maior rio totalmente brasileiro e banha cinco estados: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. É navegável entre Pirapora em Minas Gerais e Juazeiro na Bahia.. Foi descoberto por Américo Vespúcio em 1501."
E acho que é tudo o que consegui guardar. Seja como for, fica uma referência, uma reverência à entidade mítica que é patrimônio histórico, geográfico, econômico e afetivo.
Quando tinha 10 anos, fui conhecer Brasilia com meu pai e minha irmã. Fomos de carro. Cruzar a ponte sobre o Rio São Francisco era parada obrigatória e para ser registrada em foto! Ali... Ali estava o Velho Chico...
Não que alcançasse o significado ou a importância real do Rio naquela idade. Mas quem tem alguma coisa de mineiro correndo nas veias físicas ou emocionais, mesmo sem saber ou querer, também deixar correr por dentro as suas águas!
Essas memórias doces se misturam com o amargo das transformações que o Rio vem sofrendo. Quanto mais o Velho Chico agoniza, mais a nossa consciência sobre o descaso ou exploração abusiva se indigna. Não se altera, estranhos gananciosos, a relação de amor e cuidado de quem sabe o valor do seu rio sem dor e sem perda.
Nossa malha hidrográfica tem encolhido em largas braçadas. Medidas ambientais urgentes e necessárias já têm seu prazo esgotado. E o Velho Chico surge como símbolo dessa teimosia em continuar aguando, ainda que com cursos alterados!
Quantas terceiras e quartas margens serão necessárias para ouvir os murmúrios de quem só quer correr belezas e poesias úmidas?
sábado, 12 de março de 2016
Entretantos e finalmentes em capítulos.
A primeira telenovela diária no Brasil, 2-5499 Ocupado, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, estreou em 22 de julho de 1963. Desde então, a telenovela passou a ser uma das maiores expressões da nossa cultura.
Num país onde a tradição oral predomina sobre a tradição escrita, não surpreende a eficiência das novelas na construção da nossa identidade. A história da teledramaturgia confunde-se, portanto, com a história mais recente do Brasil. Talvez não haja retrospectiva mais fiel - e palpável - das últimas cinco décadas das nossas transformações sociais, econômicas e culturais. A telenovela ditou moda e comportamentos. Construiu autoestima. Expôs nossa brasilidade. Discutiu tabus e preconceitos. Aproximou mundos distantes. Retratou vícios. Denunciou costumes. E contrapôs humanidades - da mais vil a mais nobre.
Mas talvez o maior mérito da telenovela seja a oportunidade de projeção de tantos talentos profissionais! Escritores absolutamente geniais, atores/atrizes magistrais, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, roteiristas, iluminadores, pesquisadores, e tantos outros que fazem parte do universo criativo que envolve cada produção. Sem incentivos, tradição e apoio para outras áreas de expressão cultural - como cinema ou teatro - excelências indiscutíveis ganharam espaço e reconhecimento mundial.
Eu era muito pequena durante O Direito de Nascer e me lembro mais dos nomes (afinal, quem não se lembra de Albertinho Limonta e Mamãe Dolores?) do que da novela em si. Minhas primeiras lembranças concretas são de Eu Compro essa Mulher, com Ioná Magalhães, e a cena de Leila Diniz, como Úrsula, transfigurando o rosto com ácido. Em seguida, O Sheik de Agadir, com Marieta Severo como Rato. A memória dessa atuação poupou-a do meu ódio profundo ao se casar com o Chico Buarque! E, na sequência, sem cronologia ou ordem de preferência, uma lista de sucessos inesquecíveis: Antonio Maria, Beto Rockfeller, Irmãos Coragem, Nino - O Italianinho, Véu de Noiva, Selva de Pedra, O Bem-Amado, Escrava Isaura, Éramos Seis, O Casarão, Pecado Capital, Guerra dos Sexos, Pigmaleão 70, Roque Santeiro, Roda de Fogo, Dancin' Days, Saramandaia, O Pantanal, Tieta, Gabriela, Vale Tudo, A Sucessora, O Astro, Que Rei Sou Eu, O Clone, Caminho das Índias, Avenida Brasil, entre tantos.
Novelas de época que ensinaram história. Novelas que visitaram a literatura. Novelas que mostraram outra culturas. Novelas que encantaram pela fotografia e figurinos. Novelas das ardilosas relações entre amor e ódio. Novelas que, com muito humor, denunciaram nossas mazelas. Novelas de textos primorosos, obras-primas da retórica! Cada uma, a seu modo, me marcou e me prendeu. Capítulo a capítulo.
Sou noveleira assumida. Já deixei de sair algumas vezes para não perder algum capítulo importante. Cortei meu cabelo a Pigmaleão. Usei as meias lurex da Sonia Braga. Invejei a trança da Carolina Villar de Renata Sorrah. Imitei roupas. Comprei os LPs das trilhas sonoras - nacionais e internacionais. Copiei expressões. Coisas de Laurinha. Incorporei Are Baba de tal forma que minha filha precisou me lembrar que "você não é indiana!"..Apaixonei-me por Marcos Paulo e por Antonio Fagundes. Quase me apaixonei pelo Tufão, mas mantive-me fiel ao Fagundes. Quis ser Regina Duarte, Dina Sfat e Renata Sorrah. Odiei Odete Roitman, Maria de Fátima e Renato Maia. Simpatizei com Nazaré, Carminha e Atena. Gostei de algumas Helenas e detestei outras. Lamentei muitas mortes e comemorei muitos nascimentos. Casei muitos casamentos. E sempre torci pela vitória do bem sobre o mal!
E por isso lamento - sinceramente - perdermos a mão do que se tornou um dos nossos maiores patrimônios. Nessa última década, poucas serão as produções - se é que alguma será - lembradas no futuro como referências. Desde 2002, os índices de audiência oscilam muito abaixo da média tradicional. As duas últimas novelas da Globo - Babilônia e A Regra do Jogo - amargam os piores índices do horário nobre de toda a história da teledramaturgia da emissora .
Fórmula esgotada? Em tempos virtuais exponenciais, perdemos a paciência para os tempo esticados das novelas? Nas conexões instantâneas do mundo globalizado, perdemos o conceito de mistério, o desconhecido? Nos horários não convencionais de trabalho, o lazer tornou-se mais seletivo? Rejeitamos os espelhos indesejados da nossa realidade, quanto mais aproximamos os Brasis separados e damos vozes às minorias? Quanto mais testemunhamos as desumanidades reais, menos tolerância temos para as elasticidades ficcionais entre bem e mal?
Seja o que for, a leitura corretiva é tardia. Atores consagrados em textos ultrajantes! Autores perdidos em busca do elo perdido. Insistência na formula já ultrapassada desgastando ainda mais o que comprovadamente se rejeita. E as novelas perdem espaço e deixam de renovar gerações.
Mais ainda assim, há espaço para recuperação. Basta ver o sucesso inquestionável das minisséries! Torço - mesmo! - por uma rápida adequação aos novos tempos e à nova demanda. Temática, estrutural, temporal. Uma reação que respeite o nosso espetacular acervo!
Porque algumas emoções são eternas. E o amor sempre vence! E o mal sempre perde E o humor sempre salva! E a ilusão sempre liberta! E a complexidade da alma humana é sempre material de desvendamento. Interessante, gradativo, capitular.
Que os legados de Janete Claire e Dias Gomes nos salvem! E inspirem e modelem noas potências porvir!
Tô certa ou tô errada?
quinta-feira, 10 de março de 2016
Quando tudo era por um fio
"Senhor Watson, venha para cá. Quero falar com você."
(Graham Bell - 10 de março de 1876)
Morávamos em Belo Horizonte quando chegou o nosso primeiro telefone. Preto, indiscreto e barulhento. Foi instalado na sala de jantar, em cima de um carrinho com rodinhas, com uma pequena prateleira que acomodava a lista telefônica e o caderninho que começaria a ser preenchido. Fazia sentido por ser, entre refeições e tarefas escolares de uma família numerosa, o cômodo mais usado da casa.Tenho pouquíssimas lembranças desse telefone e, as poucas que tenho, são da minha mãe chorando ao receber notícias tristes de nossa família no Rio de Janeiro.
O telefone passou a fazer parte integrante - e fundamental - da minha vida a partir da pré-adolescência, já de volta ao Rio. Naquele tempo, conseguir uma linha levava um certo tempo. Tempo em profunda dissonância com a minha impaciente necessidade de sociabilização que aflorava. Necessidade parcialmente satisfeita graças à generosidade da nossa vizinha do andar de cima, D. Algenir, mãe da que veio ser uma das minhas mais queridas e duradouras amigas da vida, Graça. D.Algenir me dava acesso ao seu telefone, quase sempre sob a desculpa de "tenho que conferir uma lição de casa". D. Algenir merece - e um dia ainda farei! - um texto em sua homenagem! Uma das referências mais marcantes da minha adolescência! Saudades da D.Algenir...
Até que o nosso telefone foi finalmente instalado! No mesmo carrinho de rodinhas. Mas, desta vez, no hall de entrada do apartamento em que morávamos na Rua General Glicério, em Laranjeiras. Local também apropriado para garantir a ilusória privacidade de uma família mergulhada em hormônios vocais. A verdade é que o pobre aparelho teve pouco descanso.
Penso naqueles dias com inevitável saudosismo. Mas não o saudosismo de um tempo já passado e tão rico em descobertas e emoções. Sinto falta do fio preto. Aquele fio que trazia e levava mundos e vida em vozes. O mistério do toque. Esperar o toque.Imaginar quem seria. Fantasiar o rosto por atrás da voz. As expressões mutáveis durante as conversas de até duas horas de duração. A privacidade que o fio garantia. A proximidade. A seleção. A comunicação.
Em tempos de explosão tecnológica, impossível não pensar no conceito dessa comunicação. E o telefone, nesse sentido, surge com o maior símbolo. Do meu primeiro telefone preto aos mais modernos smartphones atuais, a evolução (?) da comunicação vocal.
O progresso é inquestionável. A pulverização. A facilidade. A abrangência. Estamos acessíveis. Comunicáveis. Identificáveis. Democratizados. Incluídos. A custo e tempo reduzidos. Compactos. Móveis. Nossos celulares tiram fotos, filmam, leem códigos de barras, pagam contas, indicam trajetos, driblam blitz e tantas outras funções. O mundo corporativo abriu-se a possibilidades incalculáveis. Não há limitação geográfica ou de fuso horário. A nível pessoal também. Pais conseguem monitorar idas e vindas de filhos cada vez mais independentes. E jovens multiplicam suas redes de convivência social , desafiando limites intransponíveis. Dentro desse universo ilimitado e, sob tantos aspectos assustadores, confesso-me usuária assumida e convicta.
Mas, no entanto, apesar de tudo, ainda acho que, ao perdermos o fio, perdemos algo importante. Perdemos, sobretudo, a voz. Aquele "alô" que era tão revelador e que anunciava alegria, ou tristeza, ou promessa, ou desilusão ou esperança. Aquele "alô" inconfundível, determinante, transformador. Pois, por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais o telefone evolui, mais a voz perde a sua importância. Hoje, falam nossos dedos pelos cotovelos, em teclamentos frenéticos cada vez mais ágeis e velozes. Calam nossas vozes e traduzem nossas emoções a partir de símbolos.
Ao perdermos o fio, perdemos a privacidade. Somos bombardeados dia e noite por estranhos oferecendo serviços que não queremos. Somos desrespeitados no nosso direito de escolher com quem falar. Pelo contrário, falamos muito mais com quem não queremos ou nem seque conhecemos. Pois, com quem queremos e conhecemos, teclamos. Saudades dos tempos em que essas invasões eram apenas enganos , educadamente desculpados. Ou intencionais - e inocentes - trotes do tipo "Alô! É do açougue? Não. Então quem é a vaca que está na janela?" !
Perdemos o anonimato e a identidade. Pois somos, passamos a ser, o telefone que portamos. Ele nos rotula, cataloga. Tornou-se acessório obrigatório. Orgão vital e sem o qual não somos reconhecidos no mundo e pelo mundo.
Evolução? Involução? Difícil dizer. Para cada ganho há um perda sem retorno. E, na verdade, não teria mesmo que haver retorno. Mas, talvez, alguns fios invisíveis pudessem ser reconstruídos. E resgatar, ainda que parcialmente, a sua função primeira: a nossa voz protagonista da nossa própria voz!
(Graham Bell - 10 de março de 1876)
Morávamos em Belo Horizonte quando chegou o nosso primeiro telefone. Preto, indiscreto e barulhento. Foi instalado na sala de jantar, em cima de um carrinho com rodinhas, com uma pequena prateleira que acomodava a lista telefônica e o caderninho que começaria a ser preenchido. Fazia sentido por ser, entre refeições e tarefas escolares de uma família numerosa, o cômodo mais usado da casa.Tenho pouquíssimas lembranças desse telefone e, as poucas que tenho, são da minha mãe chorando ao receber notícias tristes de nossa família no Rio de Janeiro.
O telefone passou a fazer parte integrante - e fundamental - da minha vida a partir da pré-adolescência, já de volta ao Rio. Naquele tempo, conseguir uma linha levava um certo tempo. Tempo em profunda dissonância com a minha impaciente necessidade de sociabilização que aflorava. Necessidade parcialmente satisfeita graças à generosidade da nossa vizinha do andar de cima, D. Algenir, mãe da que veio ser uma das minhas mais queridas e duradouras amigas da vida, Graça. D.Algenir me dava acesso ao seu telefone, quase sempre sob a desculpa de "tenho que conferir uma lição de casa". D. Algenir merece - e um dia ainda farei! - um texto em sua homenagem! Uma das referências mais marcantes da minha adolescência! Saudades da D.Algenir...
Até que o nosso telefone foi finalmente instalado! No mesmo carrinho de rodinhas. Mas, desta vez, no hall de entrada do apartamento em que morávamos na Rua General Glicério, em Laranjeiras. Local também apropriado para garantir a ilusória privacidade de uma família mergulhada em hormônios vocais. A verdade é que o pobre aparelho teve pouco descanso.
Penso naqueles dias com inevitável saudosismo. Mas não o saudosismo de um tempo já passado e tão rico em descobertas e emoções. Sinto falta do fio preto. Aquele fio que trazia e levava mundos e vida em vozes. O mistério do toque. Esperar o toque.Imaginar quem seria. Fantasiar o rosto por atrás da voz. As expressões mutáveis durante as conversas de até duas horas de duração. A privacidade que o fio garantia. A proximidade. A seleção. A comunicação.
Em tempos de explosão tecnológica, impossível não pensar no conceito dessa comunicação. E o telefone, nesse sentido, surge com o maior símbolo. Do meu primeiro telefone preto aos mais modernos smartphones atuais, a evolução (?) da comunicação vocal.
O progresso é inquestionável. A pulverização. A facilidade. A abrangência. Estamos acessíveis. Comunicáveis. Identificáveis. Democratizados. Incluídos. A custo e tempo reduzidos. Compactos. Móveis. Nossos celulares tiram fotos, filmam, leem códigos de barras, pagam contas, indicam trajetos, driblam blitz e tantas outras funções. O mundo corporativo abriu-se a possibilidades incalculáveis. Não há limitação geográfica ou de fuso horário. A nível pessoal também. Pais conseguem monitorar idas e vindas de filhos cada vez mais independentes. E jovens multiplicam suas redes de convivência social , desafiando limites intransponíveis. Dentro desse universo ilimitado e, sob tantos aspectos assustadores, confesso-me usuária assumida e convicta.
Mas, no entanto, apesar de tudo, ainda acho que, ao perdermos o fio, perdemos algo importante. Perdemos, sobretudo, a voz. Aquele "alô" que era tão revelador e que anunciava alegria, ou tristeza, ou promessa, ou desilusão ou esperança. Aquele "alô" inconfundível, determinante, transformador. Pois, por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais o telefone evolui, mais a voz perde a sua importância. Hoje, falam nossos dedos pelos cotovelos, em teclamentos frenéticos cada vez mais ágeis e velozes. Calam nossas vozes e traduzem nossas emoções a partir de símbolos.
Ao perdermos o fio, perdemos a privacidade. Somos bombardeados dia e noite por estranhos oferecendo serviços que não queremos. Somos desrespeitados no nosso direito de escolher com quem falar. Pelo contrário, falamos muito mais com quem não queremos ou nem seque conhecemos. Pois, com quem queremos e conhecemos, teclamos. Saudades dos tempos em que essas invasões eram apenas enganos , educadamente desculpados. Ou intencionais - e inocentes - trotes do tipo "Alô! É do açougue? Não. Então quem é a vaca que está na janela?" !
Perdemos o anonimato e a identidade. Pois somos, passamos a ser, o telefone que portamos. Ele nos rotula, cataloga. Tornou-se acessório obrigatório. Orgão vital e sem o qual não somos reconhecidos no mundo e pelo mundo.
Evolução? Involução? Difícil dizer. Para cada ganho há um perda sem retorno. E, na verdade, não teria mesmo que haver retorno. Mas, talvez, alguns fios invisíveis pudessem ser reconstruídos. E resgatar, ainda que parcialmente, a sua função primeira: a nossa voz protagonista da nossa própria voz!
terça-feira, 8 de março de 2016
Quando o X é toda a questão.
Venho de um núcleo essencialmente feminino. Com mãe e três irmãs, feminês era a língua falada na minha casa. E foi entre vestidos, bonecas, trabalhos manuais, tpms, amigas e namorados - sempre multiplicados - que aprendi a magia do mundo cor de rosa.
Pois o mundo cor de rosa é mágico! E muito ruidoso! Mulheres são empáticas. Intensas. Atentas. Solidárias. Generosas. Protetoras. Acolhedoras. Cuidadoras. Contraditórias. Ambíguas. Inclusivas. Flexíveis. Múltiplas. Adaptáveis. No emaranhado de tantos pensamentos simultâneos, acham a ponta da linha. E tecem. No turbilhão de emoções conflitantes, acham o porto seguro. São o porto seguro. Fazem-se porto seguro.
Não há mundo possível sem a segurança de um porto. Ou, pelo menos, não há o meu mundo possível sem a segurança dos meus portos: minha mãe, minhas irmãs e minha filha. Que me ensinam todos os X das questões.
Minha mãe nos ensinou a feminilidade na sua forma mais cristalina. Ensinou a vaidade. Não a vaidade vã, mas a vaidade de viver mulher por inteiro. De ser sem deixar de ser. Mas ser, sobretudo, sendo. Na elegância. Na delicadeza. Na determinação. No orgulho. Na entrega. Na generosidade. Na discrição. Na preservação familiar. Na unidade. Na atenção aos detalhes. No bom gosto. Na valorização do lar. Na organização. Na disciplina. No ambiente acolhedor e festivo. No cultivo das amizades. Minha casa reunia, recebia, estava sempre cheia. Dia e noite. E tantas madrugadas de jogos e risadas! E, ao mesmo tempo, até surpreendentemente moderna pela sua própria formação e convicção, ensinou a independência. A auto-suficiência. A priorização dos estudos. A apreciação pela leitura. O incentivo à realização profissional. A prática de esportes. Mas, acima de tudo, ensinou a crença no amor. O exemplo de relacionamento a dois. E a três, quatro, cinco e quantos mais! E, claro, a devoção a Santo Antônio!
E minha filha. Minha Marina. Tão bela! Tão amorosa e sensível! Inteligente, responsável, dedicada e tão capaz! Centrada e determinada. Preocupada. Observadora. Justa. Focada. E tão companheira! Colore os meus dias - todos os dias - só por existir! E me obriga a olhar além, muito além. E me lembra quem fui e como cheguei até aqui. E me ensina tudo o que vale a pena. Só o que vale a pena. E provoca novos sonhos. Por mim e por ela. E só confirma o poder de transformação e encantamento do universo feminino! E renova a esperança de um mundo mais gentil e mais gracioso.
E assim, com um pouco de cada uma dessas grandes mulheres, me faço, orgulhosa, a mulher que sou hoje. E com ainda mais das minhas sobrinhas, sobrinhas-netas, primas, tias e amigas. E celebro todas - cada uma - no nosso dia! E celebro todos os X das nossas questões. Afinal, só nós, mulheres, guardamos em nós o maior deles: o segredo da vida!
domingo, 6 de março de 2016
Triffids.
"So we must think of the task ahead as ours alone. We believe now that we can see our way, but there is still a lot of work and research to be done before the day when we, or our children, or their children, will cross the narrow straits on a great crusade to drive the triffids back and back with ceaseless destruction until we have wiped out the last one of them from the face of the land that they have usurped."
(The Day of the Triffids - John Wyndham)
The Day of the Triffids foi o primeiro livro pra valer que li em inglês. Eu tinha 17 anos e ele fazia parte da lista de leituras obrigatórias para a obtenção do Certificado Cambridge pela Cultura Inglesa. Escrito em 1951 pelo inglês John Wyndham, é considerado uma das ficções científicas - gênero que nem gosto - mais potentes da literatura mundial. E certamente serviu de inspiração para o posterior Ensaio sobre a Cegueira do mestre português Jose Saramago.
O enredo pós apocalítico descreve um mundo depois de uma chuva de meteoros. Sem explicação, a população perde a visão, com exceção de alguns poucos que, por sobrevivência, agrupam-se enquanto decidem e ensaiam novas formas de convivência social. Ao mesmo tempo, triffids, plantas carnívoras de alto poder destrutivo e cultivadas em caráter experimental, começam uma verdadeira invasão. Com capacidade de locomoção e comunicação, além de veneno mortal, as plantas avançam e promovem o verdadeiro colapso da humanidade. Os grupos que ainda detêm a visão, diante dessas condições tão adversas, precisam resolver seus conflitos e discórdias sobre poder e sobre caminhos a seguir que re-estabeleçam alguma ordem social.
Não pensava nesse livro há décadas! Mas nesses últimos dias, com a sucessão dos eventos políticos que nos envergonham e recuam nossa recuperação moral, econômica e social, triffids voltaram a me assombrar.
Independente de sermos pró ou anti o atual governo, acredito haver unanimidade quanto ao nosso colapso como pais. Desvios astronômicos alimentam o insaciável monstro da corrupção. Retração econômica de quase 4%, com prognósticos ainda piores para 2016. Inflação e desemprego condenam qualquer avanço social supostamente conquistado na década passada. Governo sem credibilidade e sem governabilidade. Oposição meramente retórica, sem consistência e sem projetos alternativos. Lideranças políticas - todas - comprometidas no lamaçal dos escândalos que parecem não ter fim. Órbitas de poder reveladas em diversos setores de produção e serviços.
Nossos triffids envenenam e condenam nossa economia, nossa política, nossa educação, nossa saúde pública, nossa segurança, nossa cidadania. Multiplicam-se letais, provocando ódios e inviabilizando entendimentos que apontem saídas. Evoluem em rapidez reconstrutiva impressionante e em complexidades alarmantes. Estamos acuados. Paralisados. Ameaçados.
Estamos divididos em nossas cegueiras. Um lado, vitimado, agarra-se a um herói decadente para denunciar golpes imaginados contra a ideologia perdida. O outro lado, contrário às práticas que nos mergulham cada vez mais no caos, sabe claramente o que rechaça, mas sem convicção para as as alternativas possíveis.
Os modelos conhecidos não resolverão a nossa crise. A desconstrução é tamanha que não há mais correspondência possível. Os discursos de palanque do ex-presidente Lula e do seu partido são ultrapassados e patéticos. Já não ecoam nem podem ser validados diante do novo quadro. Os discursos vazios da oposição também nada acrescentam. Apontar os culpados é chover no molhado. E não resolvem a gravidade da nossa condição.
Voltar aos trilhos exigirá mais do que isso. Exigirá assumirmos nossas cegueiras coletivas e aprendermos a enxergar no escuro. Significará movimentos de aproximação muito mais do que de distanciamento. Envolverá assumir que o purismo absoluto de ideologias não é possível - pelo menos neste momento - dentro da nossa imoral configuração política. Para garantir a democracia, há que ceder. Há que engolir. Há que reconhecer. Há que humildemente, abdicar. Há que, solidariamente, doar. Há que, estrategicamente, recuar. Há que, diplomaticamente, negociar.
O Brasil mudou Está mudando. No que tem de pior e no que tem de melhor. Expurgar o pior é a nossa única opção. Acolher o melhor, nossa salvação.
Abaixo os triffids! E todo o rastro de destruição que carregam com eles!
(The Day of the Triffids - John Wyndham)
The Day of the Triffids foi o primeiro livro pra valer que li em inglês. Eu tinha 17 anos e ele fazia parte da lista de leituras obrigatórias para a obtenção do Certificado Cambridge pela Cultura Inglesa. Escrito em 1951 pelo inglês John Wyndham, é considerado uma das ficções científicas - gênero que nem gosto - mais potentes da literatura mundial. E certamente serviu de inspiração para o posterior Ensaio sobre a Cegueira do mestre português Jose Saramago.
O enredo pós apocalítico descreve um mundo depois de uma chuva de meteoros. Sem explicação, a população perde a visão, com exceção de alguns poucos que, por sobrevivência, agrupam-se enquanto decidem e ensaiam novas formas de convivência social. Ao mesmo tempo, triffids, plantas carnívoras de alto poder destrutivo e cultivadas em caráter experimental, começam uma verdadeira invasão. Com capacidade de locomoção e comunicação, além de veneno mortal, as plantas avançam e promovem o verdadeiro colapso da humanidade. Os grupos que ainda detêm a visão, diante dessas condições tão adversas, precisam resolver seus conflitos e discórdias sobre poder e sobre caminhos a seguir que re-estabeleçam alguma ordem social.
Não pensava nesse livro há décadas! Mas nesses últimos dias, com a sucessão dos eventos políticos que nos envergonham e recuam nossa recuperação moral, econômica e social, triffids voltaram a me assombrar.
Independente de sermos pró ou anti o atual governo, acredito haver unanimidade quanto ao nosso colapso como pais. Desvios astronômicos alimentam o insaciável monstro da corrupção. Retração econômica de quase 4%, com prognósticos ainda piores para 2016. Inflação e desemprego condenam qualquer avanço social supostamente conquistado na década passada. Governo sem credibilidade e sem governabilidade. Oposição meramente retórica, sem consistência e sem projetos alternativos. Lideranças políticas - todas - comprometidas no lamaçal dos escândalos que parecem não ter fim. Órbitas de poder reveladas em diversos setores de produção e serviços.
Nossos triffids envenenam e condenam nossa economia, nossa política, nossa educação, nossa saúde pública, nossa segurança, nossa cidadania. Multiplicam-se letais, provocando ódios e inviabilizando entendimentos que apontem saídas. Evoluem em rapidez reconstrutiva impressionante e em complexidades alarmantes. Estamos acuados. Paralisados. Ameaçados.
Estamos divididos em nossas cegueiras. Um lado, vitimado, agarra-se a um herói decadente para denunciar golpes imaginados contra a ideologia perdida. O outro lado, contrário às práticas que nos mergulham cada vez mais no caos, sabe claramente o que rechaça, mas sem convicção para as as alternativas possíveis.
Os modelos conhecidos não resolverão a nossa crise. A desconstrução é tamanha que não há mais correspondência possível. Os discursos de palanque do ex-presidente Lula e do seu partido são ultrapassados e patéticos. Já não ecoam nem podem ser validados diante do novo quadro. Os discursos vazios da oposição também nada acrescentam. Apontar os culpados é chover no molhado. E não resolvem a gravidade da nossa condição.
Voltar aos trilhos exigirá mais do que isso. Exigirá assumirmos nossas cegueiras coletivas e aprendermos a enxergar no escuro. Significará movimentos de aproximação muito mais do que de distanciamento. Envolverá assumir que o purismo absoluto de ideologias não é possível - pelo menos neste momento - dentro da nossa imoral configuração política. Para garantir a democracia, há que ceder. Há que engolir. Há que reconhecer. Há que humildemente, abdicar. Há que, solidariamente, doar. Há que, estrategicamente, recuar. Há que, diplomaticamente, negociar.
O Brasil mudou Está mudando. No que tem de pior e no que tem de melhor. Expurgar o pior é a nossa única opção. Acolher o melhor, nossa salvação.
Abaixo os triffids! E todo o rastro de destruição que carregam com eles!
quinta-feira, 3 de março de 2016
A chuva e o arco-íris.
Olhou para o céu, curvou os ombros e caminhou em passadas solenes de volta à casa. A velha cadeira já balançava à sua espera na pequena varanda. Recostou-se, fechou os olhos e atentou para a revoada de pássaros à procura de abrigo. Esperou mais um pouco e respirou fundo a brisa já umedecida. Contou precisamente até dez e a chuva caiu forte. A cadeira continuou balançando no ritmo familiar e compassado. Tamborilou os dedos, esperando, pacientemente, a chuva ceder. Abriu os olhos quando não se ouvia mais do que pingos formando pequenos círculos que se abriam na terra molhada. Olhou outra vez para o céu e sorriu. Pequenos raios de sol tentavam romper a cortina cinza e macia das nuvens. E, pelas frestas conquistadas, refletiam nas poças, cintilando cada gota. Levantou-se, então e abriu cuidadosamente a caixa prateada ao seu lado. Imediatamente, borboletas de todas as cores tomaram os ares e as flores! Abriu a caixa dourada guardada embaixo da cadeira e tirou de dentro dela um pequeno pote. Poliu-o até reluzir como ouro. Desceu os degraus da varanda e caminhou até a pequena fonte que conduzia ao jardim. Girou a manivela cinco vezes. Um clarão acendeu no mundo, curvou-se num arco perfeito e coloriu-se em sete cores! Depositou, então, solenemente, o pequeno pote no pé do arco. Um tesouro indecifrável e de sonhos infinitos! Para quem acreditasse na mágica do arco-íris.
(Publicado no grupo Minicontos em 07.02.2016. Palavra tema: CHUVA)
(Publicado no grupo Minicontos em 07.02.2016. Palavra tema: CHUVA)
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