terça-feira, 29 de agosto de 2017

Smoke free.







Começar a fumar na adolescência, na minha época, era um rito de passagem. Fazia parte. Era "adulto", moderno, charmoso, glamoroso, inteligente.  Em plena ditadura e com a ebulição cultural de Chico, caetano, gil, teatro arena, censura, etc, descobrir e discutir a  vida   entre as baforadas do cigarro era altamente filosófico!

Fumar na minha casa era proibido. E, claro, não escapei do lugar comum dos que fumavam escondido: trancar-me no banheiro e depois borrifar desodorante, mascar chiclete, fumar na escada entre os andares e o típico "não é meu, só estou guardando pra uma amiga!". Uma vez fomos a uma festa e meus pais foram nos buscar. Entramos no carro e minha mãe perguntou: Quem fumou? Nós, estáticas. "Maria Alice, fala perto de mim". E eu com o maior bafo de cigarro. E assim foi com cada uma de nós. Quem escapou? Minha irmã Cristina. No trajeto até o carro, mastigou folhas do jardim que tiraram o cheiro do cigarro. Livrou-se do castigo. A emancipação se dava aos 18 anos, quando éramos oficialmente permitidas a fumar em casa.

No Colégio de Aplicação, o fumódromo era atrás da igreja. Matávamos aula e fumávamos enquanto discorríamos sobre os amores e chorávamos os desamores. O cigarro era cúmplice. Consolava. Entendia. Era solidário. E altamente revelador.

No 3º colegial,  o colégio passou a permitir o cigarro durante as aulas. Era muita fumaça! E o cigarro, companheiro, foi fundamental para amenizar o estresse do vestibular.

Lembro-me de um episódio engraçado já na USP. Tínhamos uma professora no 1º ano chamada Margarida. Uma personagem tirada de um livro do Charles Dickens!  Era uma figura! Conservadora, antiquada, não pertencia a esse século. Ou melhor, àquele século. Uma professora tradicional de Língua Inglesa. Não poupava os discursos moralistas ao melhor estilo real inglês. Mas gostava de mim. E da Patricia, minha colega que também fumava. Ela não se conformava. Num daqueles dias inspirados, nos chamou à parte para  dizer o quanto era errado moças fumarem! E pior ainda se, além de fumar, ainda tomassem pílula! Eu e a Patrícia nos olhamos sem saber o que dizer. Estávamos na faculdade! Na USP! E levando sermão! Grande Margarida! Uma das melhores lembranças que tenho dos meus tempos uspianos...

Fumei. Muito. Mas nunca passei de um maço por dia. Aliás, raramente chegava a um maço por dia. Comecei com Minister e terminei com Marlboro. Fumei Charm pouquíssimas vezes, porque achava fraco demais. Quando fui para o intercâmbio, aos 16 anos, experimentei os mentolados Kool que a minha irmã americana fumava, mas não gostei.

Fumei. Não parei nem mesmo na gravidez. Na sala de consulta do meu obstetra tinha uma foto de um bebezinho com flores na mão dentro da barriga da mãe fumante com os dizeres 'Eu te amo". Vi aquela foto todos os meses, mas continuei a fumar. Diminui a quantidade, é verdade, mas não parei. Daniel foi prematuro e de baixo peso. Quando engravidei da Marina, o Fernando parou de fumar. Não tive a mesma força de vontade e continuei, ainda que com o mesmo risco da gravidez anterior. Marina também foi prematura. Apesar de nenhum dos dois ter qualquer sequela, se fosse possível,  teria feito diferente.

Fumei. De fazer reserva no avião na ala dos fumantes mesmo com Daniel e Marina pequenos. Minhas roupas cheiravam. Meu cabelo cheirava. Mas sempre detestei cheiro de cigarro no carro. E não suportava cinzeiros cheios.

Fumei. Momentos íntimos de introspecção.  De solidão. De reflexão. De lutos. Momentos que o cigarro registrou de viagens, experiências, descobertas. E momentos vãos, automáticos, do fumar por fumar, sem prazer, sem conexão.

 No feriado de 1º de maio de 1995, tive uma gripe horrível. Dessas de acabar com a garganta e nem deixar engolir. De doer tudo. E causar muito mau estar. Uma gripe horrível, mas não pior do que outras tantas anteriores. E porque o meu momento tinha chegado e eu estava pronta, essa  gripe determinou o fim dos meus tempos de fumante. Nunca tinha tentado parar de fumar antes. Parei de uma só vez. Assim. Aquele foi o último dia em que coloquei um cigarro na boca.

Não tive recaídas. Nunca mais dei uma tragadinha que fosse. Ainda mantive um maço aberto de Marlboro por perto, mas nunca recorri a ele. Não foi fácil. Mas não foi difícil. Na maior parte do tempo, o esforço foi suportável. Em alguns momentos, no entanto, as lembranças do cigarro assombravam, cruéis. Sentia o vazio do cigarro entre os dedos, do gestual, da muleta emocional. Sentia falta do conforto após as refeições e nas conversas entre amigos. Lembrava-me do prazer, do gosto, do cheiro. Associava momentos aos cigarros fumados. Os finais de tarde eram piores. Com o dia já resolvido, as crianças cuidadas e com a proximidade da noite, o cigarro trazia paz. Acertava contas. Planejava. Passei a tomar um pequeno cálice de Baileys nesse horário. Como me fazia bem! Ria comigo mesma diante da possibilidade de trocar um vício pelo outro. Mas o Baileys durou apenas o tempo da recomposição.

Vinte e dois anos depois, não  fumar mais é uma das maiores conquistas da minha vida. Não penso mais. Não sinto a menor falta. Não me causa dor nem esforço. Não é mais contabilizado.

Mantenho a lembrança de ter fumado apenas para não perder a perspectiva.Ter  sido fumante fez parte. Fez-me. Não faz mais.

Comemoro. Contidamente. E sem culpa.

 




sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Bendito é o fruto entre as mulheres.



Minha mãe sempre quis filhos. Homens, bem dito! Por ela, seríamos todos meninos!   Foi punida com 4 mulheres! Mas... Em reconhecimento à sua devoção a Santo Antônio,  foi presenteada com o tão desejado varão! E depois do susto da primeira filha, lá veio ele  para já resolver o assunto! Na sequência,  mais três meninas.

José Alberto. José em homenagem ao meu avô materno e Alberto em homenagem ao meu avô paterno. Mas é conhecido mesmo como Zeca.

Foi um menino loirinho e , como a minha mãe mantinha o corte reco, as orelhas sobressaiam. Mesmo!






Quando moramos em Belo Horizonte, ele estudou  no Colégio Militar. E todo 7 de setembro assistíamos à parada obrigatória na Avenida Afonso Pena. Parada é como se chamava desfile em mineirês. Quando ele passava, a gente gritava: Zeca!!! Zeca!!!! Torcida organizada!

Ainda em Belo Horizonte, se reunia com os amigos na rua. Em uma das casas na rua de cima (ou do lado, não me lembro mais), tinha um senhor a quem eles deram o apelido de Zé Galinha. O cara passava de carro e eles gritavam "Zé Galinha! Roda dura!". Um dia, quando ele chegou em casa, o tal senhor estava lá conversando com os meus pais. Meu irmão cumprimentou-o pelo nome e o sr respondeu: "Mas não é assim que você me chama!"Em resumo, Zé Galinha foi de casa em casa fazer queixa dos meninos!! hahaha Zé Galinha foi grande personagem da nossa infância!

Meu irmão é "levemente" neurótico com segurança. Sempre foi. Quando os meus pais saiam, ele, como homem, tinha a missão de nos proteger. Ele pegava um facão na cozinha e, ao menor ruido... Sério! Ele sempre estava pronto para esfaquear qualquer intruso! 

Quando voltamos para o Rio, ele  foi pro Colégio São Vicente de Paula, que, na época, era apenas de meninos. Um ou dos anos depois virou misto. Nessa época, TODO mundo achava que ele era a  cara do Ronnie Von. Sério! Pior que parecia mesmo! Pronto! Pra minha mãe, já era motivo mais do que justificado para se embevecer ainda mais!

Engenheiro Químico formado pela UFRJ. Sempre foi bom aluno. E a ele coube a missão quase impossível de ajudar as suas irmãs menos favorecidas pela genética da matemática. Somos traumatizadas.  Principalmente eu e a Cristina! O que para ele era óbvio, pra nós, era grego. E ele tinha ZERO paciência e ZERO didática. Quando meus pais falavam "Vá estudar com o seu irmão", a guilhotina parecia um sonho inalcançável...

Nossas amigas o achavam O MÁXIMO! E ele era mesmo! Bonito, atlético. Jogava vôlei  nas areias do Leme. E bem! Vascaíno, coitado. E engraçado. Muito engraçado! Mas o engraçado sutil, ácido. E tinha muitas expressões próprias: tripa, entubar uma brachola, pixote, e os versos primorosos "meu filho, meu tesouro... Não escaves nessa encosta... Em vez de encontrares ouro... Encontrarás o homem bosta!"

Não gostava de festas e nem de carnaval.A gente adorava!E ele nos levava e buscava. Temos um carnaval inesquecível em Rio das Ostras! Alugamos uma casa lá uma vez e fomos ao baile de carnaval no único clube da cidade. Não sei por que cargas d´água ele resolveu nos acompanhar. Eram dois salões separados por algumas colunas. ACREDITEM! Ele passou a noite encostado numa dessas colunas. LENDO UM LIVRO!!! Ao som ensurdecedor de marchinhas de carnaval! De vez em quando dava uma geral, nos achava e voltava pra coluna e pro livro. Sério! 

Quando ele começou a namorar a Kyria, me levava algumas vezes à casa dela. Eles se davam discos de presente quando completavam mesário de namoro. Peguei dois deles: Without you (Nilsson) com a dedicatória "I just can't live without you" e Everything I own (Bread) com a dedicatória "you". Com a mãe da Kyria aprendi a falar bem-vindo em grego (algo parecido com calostos) e a comer kurabie, um biscoito dos deuses coberto de açucar!

Fui madrinha do  casamento. Foi uma cerimônia ecumênica linda ( a Kyria era ortodoxa), cheia das tradições gregas. A parte católica foi celebrada por um dos  colegas do Zeca do São Vicente. 

Quando a Adriana, sua filha mais velha nasceu, a neurose se acentuou. Ele sumiu com todos os objetos cortantes, tudo que era levemente pontiagudo era um perigo eminente e não confiava em ninguém. Eu estava mal acostumada com a Beth, que nos deixava sair com as meninas pra cima e pra baixo desde bebês. Um dia, quis levar a Adriana sozinha ao teatrinho. Ela era bem pequena. Eles moravam na Rua Toneleros e o teatro era na Siqueira Campos. Pensam que fui sozinha??? Claro que não!!! OBVIO que ele foi junto! Uma outra vez, a Kyria ia viajar com a Adriana. Não me lembro pra onde. Mas lembro que ele ensaiou no meio da sala a Kyria subir e descer com a menina no colo do avião. Mesmo! Com o Alexandre e com a Stéphanie foi um pouco, um pouquinho melhor, mas ainda assim... Até hoje ele é preocupado. Fica horrorizado porque eu deixo a porta da minha casa aberta, treina todo o percurso quando a minha mãe sai para passear, é atento aos mínimos detalhes. No grupo de Whatsapp entre os irmãos, os assuntos desdobram-se em perguntas minuciosas que contemplam todas as possibilidades e até mesmo as imposibilidades! 

Ele morou em Salvador por muitos anos e em Houston por alguns anos. Fui algumas vezes a Salvador e sempre nos divertíamos muito! Fui a Houston uma vez com a Marina e temos ótimas lembranças do nosso breakfast com hash brown e o famoso jantar no Papasito's!

Meu irmão hoje mora em Mogi das Cruzes. Adriana também mora lá com o marido e seus dois filhos: Guilherme e Jessica. Alexandre mora em São Francisco e tem um filhinho: Daniel. Stéphanie estuda Direito em Belo Horizonte. E, como se não bastasse, ainda tem o Syd, o cachorro estressado companheiro de caminhadas.





Não deve ter sido fácil crescer no meio de tantas mulheres. Aliás, deve ter sido muito difícil. Mas ele se saiu bem. Muito bem! Relacionamentos entre irmãos é uma coisa esquisita. São laços fortes entre personalidades tão diferentes! E que convivem por obrigação mais do que por opção. E aprendem essa convivência nem sempre fluida pelo amor que não se explica! Mas que facilita, abre os caminhos, encontra o seu espaço.  

Cada uma de nós, irmãs, terá memórias distintas com o Zeca. As minhas são muitas. E todas muito especiais. Ele me ensinou a gostar da Petula Clark, por exemplo. E me ajudou vezes sem conta! E me faz rir com  o deboche que desconhece limites! 

Mas dois momentos são únicos. E os guardo com o maior carinho e muita emoção. O primeiro é a série de cartas que trocamos enquanto eu estava no intercâmbio nos EUA. Eu tinha 16 anos. Reproduzo abaixo alguns trechos dessas cartas.







O segundo, e o mais especial de todos, foi no dia do meu casamento. Meu pai já tinha virado estrela e ele entrou comigo. Fomos quase mudos de casa até a igreja. Ele tinha cortado o dedo não sei com o que e tentava estancar o sangue. Ali, na porta da igreja, me deu o braço e caminhamos pela nave. Fomos devagar, ele me segurando forte e nos olhávamos de vez em quando. Choramos muito quando nos abraçamos. E acho que nunca agradeci tanto ter um irmão e ser ele o meu  irmão!



Hoje o meu irmão completa 65 anos! Custo a crer no tempo que passou... E sinceramente, m pergunto quando foi que ele ficou assim tãaaao mais velho do que eu!! Ainda é bonitão! Muito mais do que o Ronnie Von! Quem conheceu o meu pai acha que o Zeca está cada dia mais parecido com ele. Ainda é muito engraçado! Humor típico da família do meu pai! É super companheiro!E, acima de tudo,  tem a sorte de ter as melhores e mais belas  irmãs do mundo!!
















terça-feira, 22 de agosto de 2017

Maú. Porque a primeira amiga a gente nunca esquece.



Maú é Maria Lúcia. Mas Maria Lúcia, pra mim,  é uma estranha. Ela sempre foi e sempre será Maú.

Não sei ao certo quando nos conhecemos. Acho que desde sempre, pois não tenho qualquer memória da infância em que ela já não estivesse presente. Éramos muito pequenas. Muito pequenas mesmo! Eu morava em Belo Horizonte e os nossos pais trabalhavam juntos. Dr. Armando. Uma figura bonachona, careca, e com um dos sorrisos mais límpidos de que tenho memória. Dr.Armando, muitas vezes, nos buscava na escola. Estudávamos no pré escolar Izabela Hendrix, pertinho do Palácio Tiradentes. Não houve um único dia em que ele nos buscasse que não perguntasse quantas palmeiras imperiais havia na linda alameda! E contávamos, uma a uma, e, claro, nunca era o mesmo número! Essas palmeiras, por isso, têm um enorme significado pra mim! São as mais belas palmeiras do mundo!

Morávamos no bairro da Serra. Nós, na Rua Ramalhete, imortalizada na canção do Tavito. Eles, na Rua dos Dominicanos, numa casa bem em frente ao Convento. Naquela época, a Rua dos Dominicanos era a última rua do bairro. Havia apenas uma rua entre a nossa e a deles, e íamos de uma a outra ladeando o córrego que passava por ali. Não sei quantas infinitas vezes fizemos esse trajeto.

Éramos cinco filhos na minha casa e também eram cinco filhos na casa da Maú. Ela, como eu, era a quarta. A irmã mais velha da Maú tinha o mesmo nome da mãe: Luiza. Luiza Maria.Luiza Maria tem o melhor gosto pra nomes! Sua filha se chama Marina e um dos seus filhos se chama Daniel! Bom gosto não se discute!!!!  O irmão mais velho, Armando José, comia  batata frita e tomate todos os dias no almoço. A gente morria de vontade, mas o prato dele era separado, só pra ele. Ninguém ousava tocar. O apelido dele era Pajé. Qualquer referência não terá sido mera coincidência. O outro irmão, José Marcos, conhecido como Bila, era o melhor amigo do meu irmão. Aprontaram muito nas esquinas da Serra! Depois da Maú, vinha a Maria Cristina, Tininha, que, por ser tão próxima em idade, também tornou-se muito minha amiga.

D.Luiza, a mãe da Maú, era uma senhora muito religiosa e nossas bonecas foram as mais puras do bairro! Perdi a conta de todos os batizados que fizemos para as nossas bonecas na casa da Maú, todas devidamente validadas pelo coroinha que fazia o favor de comparecer. Depois da cerimônia, sempre tinha uma festa com bolos e doces. Batizados e aniversários! Nossas bonecas foram muito celebradas! E quantas doces lembranças tenho desses dias...

Eu e Maú aprendemos a ler na mesma sala, já no Instituto de Educação. D. Elisa era a nossa professora e minha mãe, que fazia a lotação das crianças do bairro na nossa Kombi, também dava carona pra D. Elisa. Aprendemos a ler numa cartilha experimental dos Três Porquinhos. "Era uma vez, era uma vez, três porquinhos. Palhaço, Palito e Pedrito". Tínhamos uma amiga, Maria Elisa, de voz esganiçada e que beliscava quando contrariada. Aqueles beliscões fininhos, da ponta dos dedos, e que doíam mais do que tudo! Um dia, Maria Elisa foi brincar  com a gente lá em casa. Não me lembro o que aconteceu, mas ela, chateada, saiu correndo de volta pra sua casa sozinha. Era no mesmo bairro, mas era longe e éramos muito pequenas. Minha mãe ficou desesperada e, quando chegamos lá, ela já estava em casa. Um susto!

Fizemos Primeira Comunhão juntas, com 7 anos,  no Convento dos Dominicanos. A nossa professora de Catecismo era D. Eva, filha do Sr. Fuchs, que morava na esquina da Maú. Todo mundo achava que o Sr. Fuchs era louco e a gente morria de medo dele! Mas a gente provocava! E quando ele saia gritando, corríamos com o coração na boca!

Quando voltamos a morar no Rio, Maú sempre vinha passar as férias na minha casa! Íamos à praia, ao cinema, brincávamos carnaval. Algumas vezes, os pais dela alugavam casa de veraneio no Espírito Santo e eu, então, ia com eles. Mas não havia possibilidade de férias sem estarmos juntas!

Uma vez fomos para Iriri. Uma das melhores férias da minha adolescência! Iriri era uma praia minúscula, linda, gostosa. As ruas eram de terra, a rua beira mar tinha um barzinho e uma sorveteria. E um monte de jovens! Naquele verão, a moda era fazer o soutien dos biquinis amarrados de lenços. Fizemos uma coleção e trocávamos entre nós!Ficamos MEGA bronzeadas! Até a Tininha, que era mais branca do que a mais branca das criaturas! Conhecemos uma turma de rapazes de Volta Redonda. Aquelas paqueras típicas de férias. Íamos à praia, e, à noite, pro barzinho. E ai era aquela pegação! Uma dessas noites, enquanto eu e a Tininha estávamos "atracadas" com os nossos paqueras, D. Luiza passou pela rua beira mar pra tomar um sorvete depois do jantar. Claro que nos viu. Não falou nada. Mas a gente sabia que ia sobrar! Careta como ela era, não ia nos deixar incólumes. Voltamos pra casa quietinhas, com ares de santa, e fomos dormir. D. Luiza estava sentada na cozinha escrevendo numa folha.  No da seguinte, quando acordamos prontas para ir à praia, ela nos chamou na cozinha e leu o serão. LEU. Sim. LEU! Segundo ela, passou a noite escrevendo para não se alterar. Se desse a bronca no ímpeto, poderia esquecer  alguma coisa. Então escreveu a bronca e leu pausadamente, a voz inalterada. E tivemos que redobrar o cuidado depois disso! Dessas  férias em Iriri, além da bronca da D. Luiza, uma outra memória inesquecível: a voz da Maú! Um desses meninos de Volta Redonda deu a melhor definição da voz dela: voz de menopausa. Até hoje não sei o que seria a voz de menopausa, mas, seja o que for, a descrição pareceu perfeita! A Maú tinha mesmo voz de menopausa! Se a conhecessem, saberiam exatamente o que é!

Maú casou, em fui madrinha. Eu casei, ela foi madrinha. Maú teve Isadora e Laura. Eu tive Daniel e Marina.

Meu pai virou estrela, ela estava comigo. Dr. Armando virou estrela, eu estava com ela. Só não conseguimos estar juntas quando D. Luiza virou estrela.

Maú engatou rodinhas no pé depois do casamento. O marido dela, Pits, jornalista e fotógrafo, é uma das pessoas mais incríveis que existe! E o avesso do ideal da D. Luiza! Descolado, cabeludo, quase um hippie! Arrastou a Maú pra Bolivia logo depois do casamento e passaram uma boa temporada lá. Moraram em São Paulo por um tempo. Eu almoçava na casa dela todas as quartas-feiras e ela me ensinou a fazer casacos de matelassê. Ela fazia muito bem!! Depois foram pra Brasilia. Depois Nova York. Depois Barcelona. Depois Belize. E eu ia atrás! Só não conheci Belize e me arrependo até hoje de não ter ido!

Agora estão de volta a Brasilia. Isadora ficou em Nova York, mãe de 3 crianças lindas!! Laurinha está na Alemanha. E o mundo,espalhado, fica pequeno. Ou grande pra acolher tantas distâncias e tanto amor.

Hoje a minha amiga está completando 60 anos!!! E está comemorando em grande estilo com o Pits, as filhas e os netos!

E penso nela com o amor da amizade mais longa e especial da minha vida! E com o agradecimento por ela jamais ter deixado de estar presente! Ela é melhor nisso do que eu. Muito melhor! Ela liga sempre, ela lembra do aniversário de todo mundo, ela liga pra minha mãe no aniversário e no dia das mães. Atenta, leal, incansável!

O que eu desejo pra ela não cabe aqui. Porque a nossa história não cabe aqui. Porque são tantas e tantas as memórias compartilhadas... Porque é tão grande a torcida! Porque é tanto e tanto e tanto!

Maú, minha amiga querida! Que a nova década te seja ainda mais generosa e leve!

E que a gente ainda comemore juntas décadas sem fim! Ela, a sempre Maú! A única que consegue perpetuar a Licinha que ainda existe em mim!






domingo, 20 de agosto de 2017

Hummingbird. Ou sobre quando a Marina voou para o Canadá.






Eu deveria ter nascido pássaro. Uma fêmea como outra qualquer, desempenhando, mecanicamente, a minha função na natureza. Preparar o ninho para os meus filhotes com amor e cuidado, com o melhor material disponível, na árvore mais segura, e suficiente para recebê-los e deles cuidar até que o ninho não mais os comportasse e eles fossem obrigados a deixá-lo. Uma fêmea como outra qualquer, incansável na minha responsabilidade com a minha prole. Chocar  os meus ovos até que os meus filhotes estivessem prontos para nascer.  Aquecê-los debaixo das minhas asas até que estivessem fortes o suficiente para sobreviverem sozinhos. Alimentá-los até que fossem capazes de buscar o seu próprio alimento. Protegê-los de todos os perigos até que tivessem condições de se bastarem. Uma fêmea como outra qualquer, instintivamente cumprindo a minha missão. Aguardar pacientemente até que cada um estivesse pronto para voar e, após a partida do último, não olhar pra trás, não derramar uma só lágrima, abandonar o ninho já sem serventia e, graciosamente, bater as asas e seguiria em frente. Sem tristeza, sem vazio, sem melancolia. Sensação de dever cumprido.

E, se pudesse escolher, seria um beija-flor. E teria gerado a mais linda, graciosa, delicada e encantadora de todos os beija-flores! Minha Marina colibri, corajosa, inquieta e independente. Com suas asas tão rápidas que até parecem invisíveis. Asas de fada. Com sua plumagem de cores exuberantes. Cores de pedras preciosas, mas infinitamente menos valiosas do que o ela me ensina todos os dias! Cores de raio-de-sol, mas infinitamente menos radiosas do que a luz com que ela ilumina a minha vida! Em perfeita harmonia com as flores das quais retira o néctar que alimenta a sua doçura!

E, se eu fosse mesmo uma mamãe beija-flor, ainda lhe ensinaria o canto mais lindo, mais cristalino e mais terno que existisse! Um canto único! Um canto mágico! E que, ao ouvir esse canto, todos os caminhos se abrissem sem obstáculos! E que, ao ouvir esse canto, somente as flores mais bonitas, mais perfumadas, mais coloridas e com o néctar mais doce lhe oferecessem refúgio e alimento! E que, ao entoar esse canto, eu e ela sentíssemos um calor inundando o  coração, mesmo sem sabermos exatamente de onde ou por quê.

Mas não sou pássaro. E meu coração apertado experimenta ondas de orgulho e felicidade, e outras de tristeza e preocupação. Minha little hummingbird aprendeu a voar e deixa o meu ninho cheia de otimismo e esperança, enquanto deixa para trás um enorme vazio e uma imensa saudade...

E surpreendo-me com um desprendimento que não reconheço, e, contrariando a minha índole, abro as minhas asas protetoras para deixá-la voar livremente!

Enquanto torço para que ela rapidamente se adapte à nova rotina e vivencie infinitas e prazerosas emoções,  acarinho o ninho com  meu apoio incondicional e reconhecimento orgulhoso  pelas suas conquistas! E canto, ainda que desafinada, as nossas lembranças e memórias únicas, especiais e eternas!


(texto escrito em 28 de agosto de 2007).
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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Boca de Ouro . Entre batatas e pérolas.







Dizem que Nelson Rodrigues se inspirou no motorista do ônibus que costumava pegar para ir almoçar na sua mãe para criar o personagem Boca de Ouro. Esse motorista exibia, orgulhosamente, 27 dentes de , segundo ele mesmo , "ouro maciço, 24 quilates". A dentadura de ouro foi  levada pro subúrbio carioca, e, parida em ritmo de gafieira, virou dramaturgia de quilate incomparável!

Dizem também, mas esse dizer tem nome e sobrenome, participa da montagem como assistente de direção e, não por acaso, é meu filho, que: "Todo artista brasileiro de teatro em algum momento se depara com Nelson Rodrigues. Seja na escola ou profissionalmente. Seja por estudo, por curiosidade, por deleite ou por trabalho." (Daniel Mazzarolo).

Vou além. E ouso dizer que também o público brasileiro de teatro em algum momento se depara com Nelson Rodrigues. Tem que se deparar. Tem que enfrentar, descobrir, desvendar, com cautela, resistência e desconfianças rendidas até entregar-se  ao deleite  desarmado e apaixonado. 

E vou além. Talvez não haja porta de entrada mais reveladora e encantadora  para Nelson Rodrigues do que a arena construída por Gabriel Villela em Boca de Ouro! Arena é palco caprichoso e ambíguo. Se, por um lado, permite a visão cênica completa e desnuda, por outro, mantém clara a linha divisória entre o real e o irreal, uma vez que toda a preparação de entrada/saída cênica se passa aos olhos do público. Arena separa o ator do personagem. Permite a transformação de um no outro como em um ritual. Torna o palco/picadeiro em lugar sagrado onde essa "incorporação" faz o teatro acontecer. E ninguém orquestra esses ritos de passagem com tanta maestria como o Biel!

Em Boca de Ouro, a arena vira uma típica gafieira dos subúrbios cariocas dos anos 50. Gafieira multifuncional que abriga outros micro-universos derivados como a redação de um jornal, as casas dos outros núcleos, o reduto do bicheiro e até mesmo um necrotério. A iluminação difusa e objetos de referência pontuam cada cenário contido. Impecável! 

Falar sobre o efeito dos figurinos em qualquer produção do Biel é chover no molhado. Mas é também impossível não falar! Porque ele consegue SEMPRE surpreender e se superar! Os figurinos, em especial os femininos, são de uma beleza quase indecente! Sensuais, elaborados, coloridos, traumáticos em tantas tramas. O de Dona Guigui, por exemplo, ostenta uma rosa nas costas parcialmente desnudas que brinca entre transparência e tatuagem. Belíssima! As cabeças estão também particularmente maravilhosas! E, como não poderia faltar, as sempre golas , perucas e máscaras. Símbolos teatrais clássicos sempre travestidos para manter suas funções. Sempre me impressiono com essa capacidade! Mas o toque de genialidade, desta vez, fica por conta dos dedais que vestem os dedos dos personagens com uma sonoplastia absurda! ABSURDA!

O elenco reluz como o ouro. Midas multiplicados que, a cada toque - seja voz, seja postura, seja presença e até ausência - multiplicam ouros de interpretações inesquecíveis!  Malvino Salvador É Boca de Ouro! Mel Lisboa está absolutamente perfeita como Celeste! Lavinia Pannuzio encarna uma Dona Guigui inesperada! Chico Carvalho, mais uma vez, brilha! Que talento para converter-se em 2 personagens tão completos! Cacá Toledo, Leonardo Ventura, Guilherme Bueno também impecáveis!  Claudio Fontana me emocionou como Leleco...  Tantas nuances tão bem capturadas pelo Claudio... E, claro, os dedos mágicos de Jonatan Harold e a voz dadivosa de Mariana Elisabetsky! Elenco afinado que impressiona pelo equilíbrio entre o trágico e o cômico! E que retrata fielmente a ambivalência tragicômica tão característica de Nelson Rodrigues. 

Talvez seja esse o maior mérito do Boca de Ouro de Gabriel Villela! Manter-se fiel ao texto de Nelson Rodrigues, apenas destacando, no encontro equilibrista entre o cômico e o trágico, o que ele tem de mais potente: comportamentos obsessivos movidos por paixões avassaladoras; a morbidez e a ironia feroz; as portas do inconsciente que revelam os conflitos psicológicos; as relações pessoais mantidas pelos antagonismos, abusos e traições; o particular e o genérico que brincam com a universalidade tão específica; e, por fim,  os diálogos precisos que fazem pontes entre o imaginário e o real. O caráter mais expressivo de Boca de Ouro, as versões únicas oferecidas por Dona Guigui, são presentes cênicos! 

Não há como não destacar outra assinatura inconfundível do diretor: o esmero com a música! A musicalidade nas produções do Biel é sempre tão cuidada que é sempre convertida na personagem principal! E com uma função específica! Em Boca de Ouro, a música costura e une o que parece desconexo e descolocado. É pela música que a unidade se (re)compõe. Da abertura com Cidade Maravilhosa ao fechamento com De Frente pro Crime, passeamos pela voz de Mariana por clássicos da época. Arrisco dizer que foi a trilha sonora mais coerente e coesa das peças do Biel! Um colírio para os ouvidos! 

Uma noite de gala! E que continua ecoando pelos meus sentidos. E não deixo de pensar que realmente não há expressão mais batata que batata!

E me pego sonhando um novo sonho...Se algum dia eu for enforcada, POR FAVOR, que seja por um colar de pérolas!!