"Once there was a way... To get back homeward... Once there was a way... To get back home... Sleep, pretty darling... Dot not cry... And I will sing a lullaby... Golden slumbers... Fill your eyes... Smiles await you when you rise... Sleep pretty darling... Do not cry... And I will sing a lullaby... (Golden Slumbers - The Beatles)
O monstro chegou aos poucos, quase sem alarde. Não percebi. Naquelas noites, as estrelas ainda brilhavam e ofuscavam a noite. Ou então os meus olhos é que conseguiam ver mais além da escuridão. Mas a verdade é que não vi o monstro chegar.
Ele se acomodou debaixo da minha cama. E se espalhou confortavelmente. Acho que gostou daquele espaço amplo e arejado, porque, no início, nem se fez notar. Deve ter sentido que nenhum outro monstro jamais esteve ali e aproveitou sua glória pioneira. Deve ser mesmo difícil disputar a sobrevivência com outros monstros. Esse reinou absoluto.
Por meses, manteve-se quieto e inofensivo. Quer dizer, inofensivo é modo de dizer. Preparou-se com estratégias de fazer inveja aos maiores generais da história. Calculou cada movimento. Estudou-me, entendeu-me. E cresceu e engordou a sua monstruosidade.
Começou engolindo as minhas estrelas. Uma a uma, pouco a pouco. Minhas noites tornaram-se longas, escuras. Em seguida, comeu as beiradas das madrugadas. Meia-hora aqui, meia-hora ali, até noite e dia se confundirem. Depois, ainda não sei se por maldade ou apenas para agradar sua companheira desabrigada, trouxe a insônia. Quando dei por mim, ela já dormia na minha cama enquanto meus olhos, cansados e inchados convertiam-se em olheiras profundas e irreversíveis. O medo, percebendo a fragilidade, convidou-se sem convite. E tomou conta dos vazios da segurança e confiança. Abusado, vasculhou segredos, invadiu pensamentos, subverteu a ordem, encolheu-me. Acuou-me.
Foi então que o ouvi, inconfundível: o monstro debaixo da minha cama. Ruidoso, audível, ensurdecedor. Vencedor. E resolvi encará-lo. Com uma coragem escondida que ele não tinha conseguido levar - e eu nem sabia que ainda estava lá - olhei-o fundo e profundo. E ele era horrível. Tinha uma cabeça enorme e um corpinho minguado. Seus olhos, esbugalhados, eram frios, gélidos, imóveis. Sua língua era comprida e mal cabia na sua boca enorme. Ele salivava. Uma gosma nojenta e muscosa que escorria pelo chão e deixava um cheiro fétido e purulento. Tive ânsia de vômito. Tremia dos pés a cabeça. Tive medo, muito medo daquele monstro horrível que fez da minha cama e da minha noite a sua morada.
Fechei os olhos bem forte e voltei pra minha cama. Não respirava. Meu coração batia forte e descompassado. Queria ardentemente uma luzinha, um brilhinho luminoso que me acalmasse. Mas o monstro tinha mesmo acabado com as minhas estrelas. E não me deixava sair dos seus domínios das trevas.
Desde então, convivemos - eu e o monstro. Tentamos conviver. Em acordo tácito não verbalizado, respeitamos os limites geográficos da minha cama. Ele debaixo, eu em cima.E também os limites dos tempos. Ele à noite, eu de dia. Algumas vezes, nos cruzamos nesses limites temporais e espaciais. Ele me ameaça, ruge. Mas eu aprendi/tenho aprendido a enfrentá-lo. Maneira de dizer. Não enfrento, ignoro. Maneira de dizer. Não ignoro, tento dobrá-lo. É como se duas de mim se alternassem. Uma, essa eu que conheço tão bem e que nasceu comigo. E essa outra, intrusa e desconhecida e de quem não gosto. Rejeito. Mas por quem tenho também uma enorme compaixão.
Até que fiz progresso. Algumas noites, quando ele está mais desarmado e eu mais atenta, conseguimos até conversar. Tenho aprendido essa língua estranha e tão pouco acolhedora. E até que tenho me saído relativamente bem. Ele, por sua vez, tem recuado. Muito pouco, é verdade. Mas a cada passada pra trás, um mundo se abre diante de mim. Não o deixo perceber. Faço que não vejo. Ele ainda acha que me domina. Melhor assim.
O maior dos aprendizados tem sido conseguir ver o escuro. No escuro. Quando a gente consegue ver os contornos, tudo fica mais fácil. Quando a gente consegue enxergar o invisível, os olhos entendem. E o medo encolhe. E o entendimento encorpa, gigante. E a gente se fortalece. Gênio Drummond já sabia: Claro Enigma.
Claro Enigma é conseguir enxergar todas as luzinhas pirilampos que, ainda que imperceptíveis, nunca deixaram de me iluminar. Anjos. Tantos anjos. Anjos-filhos, anjos-irmãos, anjos-família, anjos-amigos. Até anjos novos, recém chegados e cheios de energia! Anjos-luz que brilharam nas minhas noites compartilhadas com esse monstro terrível. Anjos-guindastes que me obrigaram a levantar e seguir. Anjos-acolhedores que me ouviram, consolaram, ajudaram. De tantas formas. Anjos-guerreiros que travavam minhas batalhas enquanto eu, cansada, sucumbia. Anjos delicados. Anjos sensíveis, Anjos abençoados.
O monstro bem que ainda tenta me imobilizar e prender em 2017. Deixar o tempo seguir o curso é abrir o umbral de seus domínio. É me perder. E me perderá! Virar, sobrevivente, 2017, é abraçar o meu Claro Enigma!
Que 2018 mingue monstros e crie debaixos-de-camas leves, livres e criativos!
Desejo a todos estrelas abundantes!! Luzes de reconstrução. De enfrentamentos. De entendimentos. De enigmas claros e reluzentes.
Feliz 2018!!