domingo, 27 de dezembro de 2020

Pernil de Natal.

 A panela era ainda a mesma. Uma assadeira esmaltada bem alta  e com tampa. Comprada em Porto Rico há 28 anos. Um dos seus orgulhos. Riu consigo mesma. Pensou se ter uma panela ideal para assar pernil de Natal é motivo de orgulho. É. Tem orgulho do seu pernil de Natal. E tem orgulho da sua panela ideal para assar o pernil de Natal todos os anos.

Furou o pernil com um garfo. Sal, bastante cheiro verde, alho, 4 folhas de louro, um tiquinho de pimenta dedo-de-moça, suco de vários limões, uma garrafa inteira de vinho branco e cebola. Muita cebola. Cortou a cebola freneticamente. E chorou lágrimas da cebola e lágrimas dela. Nem sabia a diferença entre elas. Eram ambas sentidas, ácidas e frustradas. Estava temperando o seu pernil de Natal para o Natal que não haveria. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como  ela sempre preparou. 

Pernil temperado. Foi  pra geladeira por 12 horas. Teve que fazer mágica para aquela panela caber na geladeira da casa da mãe. A geladeira da casa da mãe tem outras funções. Não tem a função de receber a panela com tampa com o pernil de Natal dentro. E cada vez que abriu a geladeira naquelas 12 horas, lembrou-se  que não haveria Natal. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou . O coração apertou. Sentiu saudades. Saudades imensas do Natal que não terá havido. 

Nunca viveu um Natal interrompido. Seria o primeiro. Detestava esse Natal. Detestava tudo o que lembrava esse Natal. Mas o pernil estava marinando na geladeira da casa da mãe. Por 12 horas. Na sua panela ideal com tampa.

Acordou no dia seguinte sobressaltada. Tanto por fazer! Era véspera de Natal! Deu-se conta, então, que era a véspera do Natal que não haveria. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou. Não havia quase nada para fazer. Véspera de que não haveria. O coração apertou.

Mas o pernil precisava assar. À perfeição. Tem orgulho do seu pernil de Natal. E esse ano ele precisava ser melhor ainda!  Era uma questão de honra. Era uma questão de resistência. Era uma questão de sobrevivência.

Forno da casa da mãe  ligado. Pernil no forno. De repente, ela queria queimar tudo naquele forno. Tudo mesmo. Nem que o pernil queimasse junto. Queria juntar todos os coronavírus do mundo e queimar ali no forno da casa da mãe. Queria queimar as aglomerações. Queria queimar os testes esquecidos num depósito. Queria queimar as máscaras não usadas. Queria queimar as praias e bares lotados. Queria queimar os aeroportos e rodoviárias super lotados. Queria queimar os homens que matam mulheres na frente das filhas. Queria queimar o negacionismo, o pouco caso, o desrespeito, a ineficiência, o cinismo, as más gestões. Queria queimar tudo que tenha provocado tanta dor. Queria queimar tudo que impediu o seu Natal. 

O pernil estava assando. E o aroma delicioso começava a se espalhar pela casa da mãe. Junto com o aroma, todas as lembranças de Natal. As árvores da sua infância em Belo Horizonte... O pai saia para catar um galho seco, fincava num vaso, pintavam de prateado e colocavam meia dúzia de bolas azuis. Às vezes, quando ele viajava, trazia spray de neve!  Outras vezes, colocavam chumaços de algodão imitando neve. Riu consigo mesma. Era uma árvore horrorosa! 

O pernil continuava assando e o aroma agora invadia toda a casa! Lembrou-se dos Natais na casa da sogra. Sua sogra fazia pasteizinhos  natalinos tipicamente italianos: calzunos. Eram recheados de frutas secas e banhados em mel. Dava um trabalhão! Mas sem calzuno, não tinha Natal. Lembrou-se também da árvore de Natal da sogra. A árvore mais cafona que se possa imaginar! Era de plástico branco, ficava em cima da mesa lateral e era decorada com bolas vermelhas. Cafona mesmo. Mas a sogra tinha uma hábito com presentes que ela aprendeu e adotou. Embrulhar presentes. Era um ritual. Às vezes, ela comprava todos os papéis iguais. Outras vezes, variava, mas sempre cobria as caixas. Nunca sabiam, pela caixa, o que era ou pra quem era. Ela adotou o hábito e embrulhava também todos os presentes que iam embaixo da sua árvore. Tem uma pilha de papéis, saquinhos, fitas, e enfeites para embrulhos.  Os filhos compram os presentes e trazem para que ela embrulhe. E ela também ama DE/PARA natalinos! Sempre tem pilhas guardados.

Virou o pernil no forno da casa da mãe. A cor estava maravilhosa! Regou com mais vinho, caldo de limão e água. Não podia ressecar. As lembranças jorravam... Lembrou-se da primeira árvore que fez depois que os filhos nasceram. Todos os enfeites eram de pano, pra que eles não se machucassem. Tem esses enfeites até hoje... Como tem quase todos os enfeites que fizeram na escola quando eram pequenos. O coração apertou... Pensou na sua árvore. Linda. Seu maior orgulho. Comprada numa feira natalina em Bayamón, Porto Rico. Nunca tinha ido a uma feira natalina antes. Enlouqueceu! Compraram a árvore. Enorme! E todos os enfeites em vermelhos e verde. Miniaturas, sininhos, símbolos natalinos, personagens. Montaram a árvore naquele ano e acharam que era a árvore mais linda que já tinham visto! Há 28 anos. 28 anos. E a árvore tem os mesmos enfeites e é linda igual. Começaram a tradição de colocar um enfeite novo a cada ano. Podia ser alguma coisa trazida de viagem, ou comprada mesmo. É sempre o último enfeite a ser colocado na árvore. No topo,  o anjo de pano feito pela sua sobrinha/afilhada. Anjo de asas e cabelos vermelhos. Riu lembrando da montagem da árvore. Quando as crianças eram pequenas, compraram um CD de músicas natalinas cantadas pela turma da Disney. Essa é a trilha sonora da montagem da árvore. Já imaginaram Twelve  Days of Christmas cantada na voz do Pato Donald? Um horror!! Mas é esse o CD até hoje. Há alguns anos, a filha gravou um novo CD de músicas natalinas mais "normais". Feliz Navidad e So this is Christmas estão nele, claro! Ela conhece o gosto natalino da mãe. 

O pernil estava pronto. Perfeito. Cor perfeita! Gosto perfeito! Desmanchava na boca... Os aromas e gostos da infância se misturavam aos da idade adulta e aos da "maturidade". Estava mais emotiva. Quanto mais velha, mais emotiva. Não luta contra isso. Vive. Permite-se. 

O pernil estava pronto para o Natal que não haveria. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou. O coração apertou. E ela chorou. Chorou pela árvore que nem montou este ano. Chorou pelo filho em Nova York que não recebeu os cupcakes que ela tinha  encomendado na Magnolia para ele sentir um pouquinho do calor familiar. Chorou pela filha que não passaria o Natal com ela. Chorou até pelo ex-marido que, mesmo sendo ex, nunca deixou de passar o Natal junto com eles. Chorou pelos irmãos e pelos sobrinhos que não estariam juntos. Chorou pelo sorvete preferido dos sobrinhos que não fez este ano. Chorou pela mãe que nem sabia que era Natal e, por isso mesmo, nem sabia que não haveria Natal. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou. 

Às 19:00 da véspera do Natal que não haveria, preparou para mãe uma linda sopa vermelha para dar cara de Natal. Às 22:00, a filha passou de carro e levou na marmita natalina o pernil que ela tanto adora, a farofa de bacon que ela também adora, os fios de ovos que ela também adora e a sobremesa de frutas vermelhas que ela nem adora tanto, mas Natal é Natal. Às 22:30, video call com a filha, o filho e o ex. O filho estressado porque estava com fome e a sua ceia com os amigos estava pronta. A filha menos estressada, mas também com fome. O ex comeu um sanduiche como ceia de Natal. E assim foi o Merry Christmas familiar.

Às 23:00, a mãe já dormia profundamente. A cozinha estava toda arrumada. O pernil, pronto, seria servido no almoço do dia seguinte.

E aí, a bandinha da rua passou. E tocava músicas natalinas. Ela correu pra sacada. As luzes que enfeitavam os apartamentos e jardins estavam acesas. Via-se, pelas janelas, algumas famílias reunidas. A bandinha tocou "eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel" e ela, depois da Live de Natal do Caetano Veloso, não pode mais ouvir essa música sem sentir uma profunda tristeza... Mas a bandinha continuou, e tocou, e passou.

Ela continuou ali na sacada olhando as luzes. E pensou que sempre há  mesmo Natal. E enquanto houver luzes, músicas  natalinas e amor transbordante no coração, haverá Natal. 

Mas isso, claro, com o seu  pernil assado na sua panela ideal! 






 




segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Tia Yara.

 





Minha mãe tem nove irmãos. Uso o verbo no presente, ainda que muitos deles já não estejam entre nós, porque acredito que a gente nunca deixa de ser/ter irmãos. Irmão a gente é/tem para sempre!

Tia Isa era a mais velha. Era filha do meu avô, que, depois de viúvo e com essa filhinha pequena, se casou com a minha avó. Depois vieram tia Annita, minha mãe, tia Luiza, tia Yara, tio Hilmara, Tia Guanahyra, tio Nilacy, tio Bamba e Toninho. Nomes estranhos, né? Minha avó tinha um gosto bem peculiar para nomes!

Tia Isa  já virou estrela. Tia Annita já virou estrela. Tia Luiza já virou estrela. Tio Hilmara já virou estrela. Tia Guanahyra já virou estrela. Tio Bamba a gente nem sabe, pois ele desapareceu em 1970 e nunca mais soubemos dele. Toninho já virou estrela. 

E ontem, para nossa tristeza, tia Yara também virou estrela...

Temos muita sorte por fazer parte de uma família com tios tão presentes e com tantas memórias afetivas! De tantas lembranças da tia Yara,  escolho duas. A primeira é das inúmeras vezes em que ficamos na sua casa, SEM A MINHA MÃE E O MEU PAI!!,  quando íamos de Belo Horizonte para o Rio. Que farra era ficar no apartamento de Vila Isabel com nossos quatro primos! Era uma alegria! Uma casa cheia de som, de risadas, de brincadeiras, e de gritos da querida Maria, a santa que ajudava a minha tia e que fazia parte da história de todos nós, para tentar, minimamente,  colocar alguma ordem! Era uma delícia!!

A segunda lembrança que escolho para celebrar  - e agradecer MUITO a minha tia! -  foram os carnavais no Vila Isabel! Acho que aprendi a gostar de carnaval por causa dela! Minha mãe nunca teve NADA de carnavalesca... Mas a tia Yara... Ah... A tia Yara era puro carnaval! E nos arrastava com ela! Fazíamos as fantasias iguais - o pareô sempre foi o favorito - e lá íamos nós! Enquanto nós, as meninas, nos metíamos no meio do salão pra paquerar, a tia ficava em pé ao lado da mesa, com um leque na mão se abanando, e dançando sem parar. Dançava, dançava, girava, girava, rodava, rodava. E sempre de fantasia estampada e de flor no cabelo. Ano após ano. Vila Isabel foi a minha grande escola do carnaval! E a tia a minha musa inspiradora!

Tia Yara passou pela dor inenarrável de perder o seu filho mais velho, Carlinhos. Mas jamais deixou de manter a família unida na celebração da vida e jamais deixou a tristeza superar a alegria que vinha dela naturalmente! Ela era a própria alegria de viver! E foi o centro amoroso da sua  linda família: filhos, netos e bisnetos. Tão querida por todos! Tão acarinhada! Tão prestigiada!

Tia Yara era a mais sensitiva entre os filhos da minha avó! Sentia as coisas. Sonhava. E pressentia quando minha avó "vinha buscar algum filho"! E quando tinha esses pressentimentos, pedia, aflita, para ligarem para saber "se a Ieda estava bem." Estava. Felizmente! Mas a minha avó veio mesmo buscar outros filhos...

Sua partida deixa um vazio abismal nos meus primos, seus filhos e filhos de seus filhos... E deixa a nossa família  mais quieta e silenciosa... E com imensas saudades...

Tia Yara não virou estrela. Na verdade, virou pó de estrela. Confetes de alegrias prateadas em  rastros de luz! E já antevejo uma recepção debochada do Carlinhos! E um reencontro cheio de amor com o tio Carlos!


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Memórias de Thanksgiving.

 




No Thanksgiving de 1993, morávamos em San Juan, Porto Rico. Marina e Daniel estudavam na Baldwin School: Daniel já estava no 1st grade e Marina no pre-kinder. 

Na turma da Marina, comemoraram esse dia com uma pequena encenação dos alunos. Marina era uma pilgrim grávida , casada com o pilgrim Diego, aquele menino sentado ao seu lado. Obviamente não me lembro do texto, mas uma das falas da Mari era "...and the baby is coming!" E ela segurava a barriguinha (na foto, infelizmente, não aparece a barriguinha. Eu era PÉSSIMA registradora de eventos!!)

Diego Rosado era  muito bonito. E muito quieto. A mãe era americana e o pai era porto riquenho. Pelo gesto de carinho explicito da Marina na segunda foto, podem ver que ela tinha "a little crush on him" ...

Bem, voltamos para o Brasil em julho de 1994 e Daniel e Marina foram para a Graded School em São Paulo: Daniel ia começar o 2nd grade e Marina o kinder. 

No primeiro dia de aula, em agosto, fui buscá-los e travamos o diálogo típico: "Como foi o primeiro dia?" "Gostaram da professora?" "Já conheceram algum/a amiguinho/a"? Ao que a Mari prontamente respondeu: "Sim, o Diego tá na minha turma." Eu: "Diego quem?" Ela: 'Diego Rosado". Eu: 'Aqui? Em São Paulo?" Ela: "Sim." 

No dia seguinte, procurei a mãe do Diego na escola. Realmente, haviam se mudado para São Paulo, às pressas, por uma transferência de emergência do marido (não me lembro para qual empresa ele trabalhava).E ai, ela me contou, às gargalhadas, que quando o Diego chegou em casa depois do primeiro dia e ela perguntou "How was your day? Made any new friends?", ele começou a chorar dizendo: "I don't want to marry Marina! I don't want to marry Marina!"

Ou seja, o coitado, sem ter ideia do que enfrentaria ao se mudar de país, topou de cara com a minha filha , foi acuado e "forçado" a um compromisso!!!! 

Diego só ficou no Brasil por um ano e depois se mudaram para o México. Para alívio dele, estou certa! 

Resumo da ópera: nenhuma gravidez sai impune! 

HAPPY THANKSGIVING!!!!


domingo, 11 de outubro de 2020

Pós-F.

 "Você não precisa gostar de mim para me enxergar, mas precisa me enxergar para não gostar de mim." (Fernanda Young)





Fernanda Young pulicou a sua primeira obra de não ficção, Pós-F: Para além do masculino e feminino,  em 2018. Relatos autobiográficos nada convencionais, e - sem surpresas,  polêmicos -  contribuem para a reflexão necessária sobre o ser homem e ser mulher nos tempos atuais. O livro virou projeto teatral e seria encenado pela própria Fernanda e  Maria Ribeiro, sob direção de Mika Lins. Infelizmente, a morte inesperada de Fernanda suspendeu o processo.

E então veio a pandemia... E, com ela, a paralização das produções artísticas... E foi em meio a esse cenário tão incerto e adverso que Mika Lins retomou Pós-F, e, respeitosamente, levou Fernanda Young - e Maria Ribeiro -  ao palco criado em nova linguagem para uma nova experiência teatral. 

Confesso ser avessa a lives e afins. Devo ser uma das únicas pessoas que tem atravessado o confinamento imune a essas novas formas de debates e entretenimento. Não tenho a menor paciência. Mas assistir a Pós-F da tela do meu computador  foi uma inesperada  positiva experiência!

Claro que a relação é outra! Claro que a interação é outra! Claro que o envolvimento é outro! Mas é - ou foi, nesse caso - outra BOA! Surpreendentemente boa! E aqui vem o talento da diretora Mika Lins!

Mika não caiu na armadilha de descaracterizar o "fazer teatro", nem na armadilha de "fazer o teatro" tradicional. Ela conseguiu, de uma forma muito eficiente, juntar os dois mundos com o que ambos têm de mais potente! E o resultado foi um teatro renovado, aberto, flexível, inclusivo, atual, sem perder EM NADA aquele encontro mágico entre texto, atores e público que se chama teatro.

O palco foi mantido. Literalmente. Dentro de um teatro. O cenário foi construído com habilidade e pertinência. E minimalista, como é o estilo da Mika. Poucas referências. Apenas as necessárias. Apenas as essenciais. nesse caso, com um toque pessoal e afetivo, pois os desenhos foram feitos por uma das filhas da Fernanda. 





A iluminação foi a grande estrela! Que trabalho de luzes!! Simplesmente arrebatador! 

A grande sacada da Mika foi incorporar as técnicas e instrumentos virtuais à encenação tradicional. Assim, tomadas do alto, por exemplo e em espiral, impossíveis numa encenação presencial, proporcionaram um outro olhar, uma oura sensação. Genial!




A trilha sonora é absolutamente perfeita! De Pepeu Gomes (Masculino e Feminino) a Caetano Veloso (O Quereres), viajamos num tempo musical eclético e poderoso! Fiquei MUITO emocionada ouvindo, depois de tanto tempo, 99 Luftballons, no original alemão! 

Maria Ribeiro foi extremamente habilidosa. Porque tentar ser Fernanda não deve ser nada fácil. E ela não tentou ser. Nem foi. Ela foi Maria Ribeiro, corajosamente tentando encontrar dentro e fora  dela o espaço para, generosamente, deixar Fernanda ser. E o melhor foi o interlocução que ela, Maria Ribeiro, estabelece com o próprio texto, preservando, protegendo, cuidando do que Fernanda faria/diria/pensaria, caso fosse ela, a própria Fernanda, se auto interpretando. Essa alternância entre a atriz e a personagem foi muito especial!

O texto da Fernanda é forte. Forte como ela sempre foi. O texto da Fernanda é corajoso. Corajoso como ela sempre foi. E  o texto da Fernanda é mais desnudo do que ela foi. Fernanda escreveu ficções predominantemente. A ficção te coloca no lugar seguro de ser você não necessariamente sendo você. Mas o texto não ficcional te revela. Não há abrigo, não há refúgio. Fernanda, figura sempre tão polêmica - e tão imensamente talentosa - revela-se nas suas complexidades, fragilidades, certezas, dúvidas, humanidades, maternidades, sexualidades e contradições. Contradições pessoais e metalinguísticas. E essas contradições foram bem selecionadas, trabalhadas e lapidadas no palco real e no palco virtual. Sensacional!

Pós-F foi o 3º monólogo a que assisto da Mika. O primeiro foi Festa no Covil, adaptado do romance do mexicano Juan Pablo Villalobos. A versatilidade de uma única peça de cenário foi impressionante! Além do texto, que é um dos meus preferidos!

O segundo foi Palavra de Rainha, texto de Sérgio Roveri e com a interpretação majestosa de Lu Grimaldi no papel de D.Maria, a louca. O cenário era um único vestido. Negro. Que flutuava no palco e subia paredes à medida que revelava as angústias e desvarios da Rainha. Inesquecível!

O terceiro foi esse, Pós-F. Um monólogo necessário e em uma linguagem atual num mundo pandêmico. Tudo mudou. Nossas certezas mudaram. Nossas possibilidades mudaram. E também o fazer artístico mudou.

Mika me proporcionou uma incrível experiência! E a convicção  de que é possivel, sim, utilizar linguagens de outras artes, sem perder, contudo, a alma do teatro.









quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Cristina. A irmã sanduíche.

Cristina é filha do meio. Filha sanduiche. A terceira de cima pra baixo e terceira de baixo pra cima. 

Dos 5 filhos, foi, disparado, o bebê mais lindo dos meus pais!  Que olhos! Que bochechas! Que rostinho iluminado! 




Aliás, sempre foi linda! E cativante. E sedutora. Por onde passava, deixava rastros. E um séquito de apaixonados. Sociável, centro das festas, imã das atenções. 




Foi o xodó dos irmãos mais novos da minha mãe, que, durante um período, moraram conosco. A irmã mais nova da minha mãe, tia Guanahyra, em especial, adorava a Cristina! E levava-a pra cima e pra baixo, enquanto namorava o que veio a ser o seu marido, nosso querido tio Abelardo!  

Dos 5 filhos, tinha, também, o gênio mais forte. E põe forte nisso! Decidida, questionadora, confrontadora. Era a que enfrentava, a que abria os caminhos, a que se impunha. E metia medo. Mesmo. Nossos amigos tinham medo dela. 

Acho que ela sempre foi muito mais velha do que eu. Muito mais do que os 2 anos e 3 meses que nos separam. Porque ela sempre foi mais à frente! E com presença mais forte. E muito mais segura e dona de si. Eu aproveitava as brechas. As festas que ela me deixava ir. Os amigos que ela deixava chegar perto. E aproveitei! Muito! 

E como era safa! Um das minhas melhores lembranças da nossa adolescência foi uma festa a que fomos na Gávea. Casa de uma amiga minha do Teresiano. Fumávamos escondido nessa época e nossos pais foram nos buscar. Entramos no carro e a mãe logo sentiu o cheiro do cigarro. A mãe disse :"Maria Alice, fala perto de mim!". Eu com aquele bafo de cigarro. "Cristina, fala perto de mim"! Cristina com o hálito limpo. Tinha mastigado folhas do jardim antes de entrar no carro. Resultado; eu fiquei de castigo e ela lépida e solta. Ela era assim. 

É , entre nós, a mais parecida com o DNA da família do meu pai. O que quer dizer isso? Quer dizer que é a mais irônica, ácida, debochada, crítica, bem-humorada e escrachada. Ri com vontade. Nada  - e ninguém - passa desapercebido. 

Mas é também, entre nós, a mais intensa. Cristina é pura emoção. Magoa-se com facilidade. E perdoa de coração aberto. Ri muito. E chora sentida. E doa-se. De corpo e alma. Não há o que não se peça que ela não faça. Não há o que a gente precise que ela não ajude. 

Nem sei dizer tudo o que ela já fez por mim. Corridas prematuras para a maternidade. Decorações de festas infantis. Aliás, maravilhosas! Porque a Cristina é muito talentosa e desenha e pinta muito bem! Ajudas de última hora de trabalhos escolares. Decorações de painéis. Enfeites natalino-judaicos. E a lista segue...

Cristina cuidou da nossa mãe depois que o nosso pai morreu com uma entrega sem medidas. Foi o apoio, o suporte, o anjo protetor. Nada faltava. Olhar atento às menores necessidades. Preocupação com os menores detalhes. Uma leoa. Sempre pronta para atacar, se necessário.



Foi professora de pré-escola toda a vida. E numa linguagem de igual pra igual, com o mesmo espírito confrontador que a define. "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás". 

E é essa ternura endurecida que a faz ser tão especial. Porque ela está sempre perto, sempre disponível. Sempre preocupada. Sempre envolvida. Sempre se interessa, sempre participa. Sempre quer que tudo dê certo. Sempre torce. Sempre vibra. E sofre junto quando algo dá errado. 

E é também por isso tudo que ela é a TINA, a tia querida, muito querida, querida MESMO, de TODOS os sobrinhos e sobrinhos-netos. Cada um dos 11 sobrinhos tem, certamente, histórias incríveis com ela! E também os 8 sobrinhos-netos, de quem ela ajuda a cuidar, assumindo, tantas vezes, de forma generosa e amorosa, o papel de avó. 

Ela hoje mora no Rio. Sua casa é de todos. Portas abertas. Chaves entregues. Pra quem quiser. E tem um cachorro alucinado, Tyrion, um yorkshire que preenche a casa e o coração. Os nossos também.

E hoje, no dia em que ela completa 65 anos, queria dizer que é um enorme privilégio ser sua irmã. Não é fácil ser sua irmã. Mas é bom demais!

Feliz 65! Feliz muitos mais! 






domingo, 5 de janeiro de 2020

História de um Casamento.









"Vou amá-lo para sempre, mesmo que não faça sentido." 
(Nicole - Scarlett Johansson -  em História de um Casamento)


Eu era muito jovem quando assisti ao filme "Cenas de um Casamento", de Ingmar Bergman (1973). Como todos os seus filmes, a densidade das relações humanas, das mais ternas às mais sórdidas, e todos os universos tão bem explorados explorados entre uma extremidade e outra, serviam de matéria prima frutífera para as  grandes questões e discussões existencialistas que marcaram a minha geração. Bergaman foi o maior dos mestres  - jamais superado - das relações humanas. Bergman vasculhava cada cantinho das profundezas das nossas almas. Os olhares penetravam fundo.  Os silêncios gritavam. E incomodavam. Moviam.  Mas esse filme, em especial, na época, era muito distante da minha realidade.  Como toda jovem, romantizava o amor e o casamento "felizes para sempre". E não consegui identificar, naquele contexto, o que viveria - vivemos todos - dentro do casamento.  E, principalmente,  fora dele.

Talvez isso explique o impacto que o filme recente "História de um Casamento" do diretor Noah Baumbach provocou. Acredito que o filme tenha impactado a todos que viveram/vivem as crises inevitáveis de qualquer relacionamento. E, mais ainda, quem passou pelo dolorido processo de separação.

Cito "Cenas de um Casamento" de Bergman como ponto de partida, pois o tributo de Baumbach ao diretor sueco é inegável! Assim como também é inegável o tributo a Woody Allen e seu humor sutil e seu amor a Nova York. As duas referências estão lá, claras, explícitas! E contribuem para a qualidade do filme!

Cenas de um Casamento começa com uma entrevista dos dois protagonistas - Marianne (a fantástica Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) - para uma repórter sobre o segredo de um casamento longevo. História de um Casamento começa com os dois protagonistas escrevendo o que admiram um do outro.  Nesse primeiro momento, os dois inícios se assemelham. Só na sequência percebemos, no segundo filme, que os dois estão diante de um terapeuta e já em processo de separação.

A partir dai, Baumbach percorre o seu caminho individual e desconectado da referência. E o percorre lindamente.Linguagem própria, olhar próprio, atualizado e em linha com as influências das sociedades - em especial, a jurídica - onde está inserido.

Scarlett Johansson (Nicole) e Adam Driver (Charlie) estão estupendos! Não há como destacar as performances individuais, pois a conexão como casal/ex-casal é indissolúvel! Um se reflete no outro, completa o outro e apenas no outro ganha identidade. A sintonia é impressionante!

O trio de advogados também é sensacional! O embate entre o suave Bert  (Alan Alda) e o feroz Jay (Ray Liotta) oferecem a Nora (Laura Dern) o palco para que ela brilhe na defesa da mulher na fragilidade e desigualdade de uma sociedade ainda tão complacente com os homens e tão exigente com a mulher. O seus discurso sobre a comparação entre o mito da figura materna e a Virgem Maria é um dos pontos altos do filme! E ainda tão real! Tão atual!

"História de um Casamento", ao priorizar a questão da custódia do filho menor, apresenta, em paralelo, todos os desgastes, ressentimentos, dúvidas e resquícios do amor constituinte daquela família. Os processos individuais são muito bem construídos. De um casal, lentamente passam a dois indivíduos. Os dois estão errados. Os dois estão certos. Os dois abrem mão de algo. Os dois são egoístas. Os dois são cruéis. Os dois são generosos. Não há lados. Há apenas empatia e simpatia pela dor que ambos vivenciam. E pelo que querem/precisam manter/salvar/resgatar. Juntos e separados.

Para quem já passou por uma separação, não há como não se identificar e se emocionar. Porque, no fundo, o verdadeiro esforço no processo de separação é transformar o amor em outro amor. Esse outro amor tem que surgir fora da concepção amorosa que uniu o casal. Tem que surgir por baixo das mágoas, ressentimentos, frustrações, desamores, e, muitas vezes, raiva que determinaram o fim da relação. E TEM que surgir, porque é impensável que ele desapareça de vez, como se nunca tivesse existido. Só precisa ser outro.

E é na busca desse outro amor que o ex-casal também se busca fora daquela relação. Ver-se só e inteiro.  Ouvir os seus próprios desejos. Retomar os caminhos deixados pra trás. Trilhar novos caminhos. Vencer os medos, as inseguranças.  Aprender a dividir o  que antes era inteiro  e a assumir inteiro o que antes se dividia. Novos espaços, novos tempos, novas funções. E enquanto tudo isso se processa, um misto de alívio - por interromper um relacionamento esgotado - e raiva - por ter que fazer isso. Culpar o outro, vitimizar-se, desculpar o outro, desculpar-se, expurgar até as entranhas, libertar-se, tudo isso faz parte do processo de afastamento, descolamento.

Mas quando esse novo amor é finalmente descoberto, aquele indissolúvel núcleo familiar é mantido e preservado. Como deve ser. E manifesta-se, como bem retratado no filme, em dinâmicas que não se perdem. Como na escolha de uma salada, ou na ajuda para um portão que não fecha, ou num laço de sapatos desfeito.

Ou, no meu caso, em tantos pequenos gestos... Como passar a véspera de Natal no hospital  junto com você com a sua mãe internada. Ou fazer a sobremesa sem leite porque ele é intolerante a lactose. Ou ligar pra desabafar sobre "o SEU filho" ou a "SUA filha". Ou trocar tapetes. Ou sermos capazes, verdadeiramente, de ficarmos felizes um pelo outro. E ainda gostar de estar  um com o outro.

"História de um Casamento" é um filme que ensina muito sobre essa transformação de um amor terminal em outro amor sobrevivente.

Sorte de quem consegue!