domingo, 25 de junho de 2017

Tia Lili.







Tia Lili é a minha madrinha de batismo.  Era irmã do meu pai, a  sexta entre 10 irmãos.  O nome Marília era apenas para constar, porque sempre foi  tia Lili. 

Fui batizada tarde, já com 4 anos. Não havia jeito de juntar a tia Lili e o tio Abelardo, meu padrinho, e o tempo foi passando. Contam que minha introdução na comunidade católica não foi das mais exemplares. Com 4 anos, o padre da Igreja de Santana no bairro da Serra, em Belo Horizonte, achou que eu já podia participar e me fez diretamente duas perguntas: (1) você quer ir para o Céu? e (2) você gosta do papai do Céu?, para as quais recebeu prontamente as respostas: (1) não, eu quero ir pra casa e (2) não, eu gosto é do Papai Noel. Mas não foi por isso que deixei de ser "limpada" do pecado original! 

Vocês tinham que conhecer a tia Lili. Não tinha igual! Mulher guerreira, resistente, resiliente. Jornadas duplas, triplas, quádruplas, para dar conta do trabalho e de 5 filhos. Nada foi fácil. Nada veio fácil. E ela sempre na luta. 

Mas a luta da tia Lili era com o sorriso mais escancarado do mundo! Ninguém ria como ela! Ela é a minha risada inconfundível e inesquecível! E o maior exemplo de como o humor, o bom humor, suaviza e dá leveza aos momentos árduos e áridos da vida. 

Tia Lili também veio morar em Belo Horizonte um pouco depois de nos mudarmos para lá. Morávamos no mesmo bairro, dava pra ir a pé de uma casa pra outra. Ela morava numa casa de vila e tenho muitas lembranças de nossas tardes brincando na frente da vila.  Ela e minha mãe se tornaram cunhadas-irmãs. Eram muito amigas! 

Tia Lili sempre foi parte, fez parte. Mas ela tinha a qualidade rara de estar sem alardes. Apesar da risada solta, fazia-se desapercebida, discreta. E tão, tão, tão solidária. 

E ela, como todos na família do meu pai, tinha o coração maior, muito maior do que o mundo! Um coração que acolhia quem precisasse, recebia quem coubesse. E sempre cabia! E ela sempre recebia! 

E como cozinhava bem!! Ainda consigo sentir o gosto da sua maionese e do seu bolão de batatas! Meu filho Daniel diz que nunca comeu bolão igual, numa das visitas que fizemos  quando ela, anos mais tarde,  já morava em São José dos Campos.

Tia Lili virou estrela há 6 anos. E deixou um rastro de pó salpicante de saudades ternas e doces. 

Hoje seria o seu aniversário de 90 anos. E o meu coração transborda de carinho e de orgulho por  ter sido sua afilhada! 

E tanto é assim, que ela foi minha madrinha duas vezes! Se, no batismo, a escolha foi dos meus pais, já adulta, a escolha foi minha! E foi com muito amor que a escolhi para minha madrinha de casamento e vivi a alegria de tê-la comigo e com a minha mãe no altar. 

Tia Lili, hoje o dia é seu! E juro que te ouço rir aí no céu!


sexta-feira, 23 de junho de 2017

Tio Orlando.






Tio Orlando foi o primeiro tio-sem-ser-tio das minhas lembranças. Ele e meu pai, ambos engenheiros agrônomos, se conheceram muito jovens, e se tornaram, desde então, amigos. Amizade que ultrapassou o respeito e admiração profissional e se estendeu às famílias que ambos formaram. Tio Orlando e tia Vera  em São Paulo. Meu pai e minha mãe no Rio de Janeiro.

A minha primeira memória é uma visita que fizeram quando morávamos em Belo Horizonte. Foi em 1967, logo após o III Festival de MPB. Sergio Ricardo ter quebrado o violão ainda era assunto, e foi o gancho para quebrar o gelo entre esses "primos" que mal  se conheciam. Tio Orlando e Tia Vera tiveram 6 filhos: 2 meninos e 4 meninas.  Do nosso lado, éramos 4 meninas e 1 menino. Lembro-me de um passeio na Kombi do meu pai pela cidade, mas só para meninas. Os meninos ficaram com o meu irmão em casa. As 4 estavam impecáveis nas suas saias quilt e blusa branca. Achei lindo! E falamos sobre o festival.

Depois que voltamos para o Rio, os intercâmbios se intensificaram. Eu amava vir a São Paulo! Eles moravam numa belíssima casa no Pacaembu, numa rua pequenininha onde todos se conheciam e eram amigos! Era uma delícia passar as férias com eles e entre o sotaque tão diferente do meu. Naquela época, era sotaque. Hoje, é , com orgulho, a minha língua! Entre São Paulo e Campos do Jordão, fiz amigos, paquerei, namorei. Quantas lembranças boas!

Tio Orlando e tia Vera foram fundamentais na nossa mudança pra São Paulo e a nova geografia estreitou ainda mais o laço de carinho que une as nossas famílias. E minha mãe, depois da morte do meu pai, sempre teve neles o apoio e suporte que precisou.

Poderia escrever por horas a fio as memórias que tenho. De tudo que vivemos juntos. De tanto bem querer. De todas as risadas cúmplices. E também de todas as lágrimas solidárias.

Mas hoje só quero falar do tio Orlando. Uma das pessoas mais doces e generosas que conheci. Sempre tranquilo, jamais alguma palavra ríspida. Um olhar límpido. Disciplinado como nunca vi. Chegava em casa do trabalho e ia para o quintal pular corda. E pulava e pulava. Cuidava-se muito!  Amoroso, caloroso, olhar que se iluminava quando ria. Foi por sua sugestão que consegui o meu primeiro emprego como professora de inglês em São Paulo. Jamais esqueci. Sempre agradeci.

Amigo leal, fiel, dedicado. E um pai presente, preocupado, interessado. Gostava de conversar. E como tinha histórias! Escutava. Muito. Ponderado. Justo. Amargou suas perdas - e não foram poucas - com dignidade e aceitação. Aceitação trabalhada e confortada pela religião que foi sempre seu guia. Seu tronco.

Tio Orlando virou estrela hoje. Aos 99 anos! Bem vividos 99 anos! Durante a despedida, estranhamente, sentia-se paz. Mais do que tristeza, celebramos a sua vida plena. Numa feliz alegoria, o padre valeu-se de sua profissão para enumerar as sementes fecundas espalhadas ao longo desses abençoados 99 anos. E foram tantas as sementes!

Meu coração transbordou de carinho pela tia Vera e meus primos - sem aspas - e suas próprias famílias já tão numerosas. Transbordou pelas doces lembranças de vida. Transbordou de tristeza inevitável, vendo a minha mãe e a tia Vera, ali, tão fragilizadas, amigas de toda uma vida.

E  pensei na sorte que temos e no exemplo que tivemos de construir e legar amizades tão duradouras.
E agradeci por todos os tios e tias adotados - e são/foram muitos! - com os quais os meus pais nos presentearam. Tio Orlando foi o primeiro. E estabeleceu um patamar altíssimo para todos os outros que se seguiram!

Hoje o céu ganhou uma estrela de grandeza. E há de brilhar o seu  brilho merecido!

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Neve Negra. Darín.Siempre él!





O cinema argentino, a cada produção,  se consolida como o grande cinema da América Latina! Que me perdoem as inegáveis grandes produções brasileiras, em especial as pernambucanas, pero los hermanos têm mantido sua constância em roteiros muito bem construídos e se superam na arte de contar histórias. Sim. Os argentinos sabem contar boas histórias. Mais ainda, sabem contar histórias imprimindo inconfundível poética autoral,  comprometidos com a contemporaneidade  e fiéis à a sua identidade. O cinema que se situa entre a arte e a política, em equilíbrio não óbvio e nada fácil.

O cinema argentino é grande até quando não é grandioso.  Neve Negra, lançado recentemente, é um bom exemplo.  É bem verdade que ter Ricardo Darín como protagonista já confere a qualquer filme qualidade inquestionável. Darín é brilhante! É realmente um prazer vê-lo atuar em qualquer situação, em qualquer papel. Versátil e carismático, empresta-se aos seus personagens tão inteiramente que não se vê Darín em qualquer deles. E, no entanto, é Darín em todos eles! Só um grande ator, desses raríssimos,  consegue ser tanto justamente pela ausência. 

Neve Negra é um filme de suspense, mas que, propositalmente, entrega a sua previsibilidade. Portanto, não nos surpreendemos nem crescemos na angústia esperada dos thrillers, embora nos mantenhamos atentos e sem desviar a atenção um segundo sequer!

Dramas familiares sempre produzem bons enredos. Segredos inconciliados, mais ainda. Ainda mais quando revelam famílias disfuncionais e com consequências irreversíveis. E esse é o pano de fundo que permite o (des)acerto de contas entre dois irmãos. E o embate entre Salvador (Darín) e Marcos(Sbaraglia) é tenso, intenso e apenas quebrado pela intervenção de Laura (Laia Costa) que, desconhecendo a história familiar, é os olhos do público no meio da trama, descobrindo, como nós, os segredos não revelados.  O trio é harmônico, equilibrado e coeso. Mas Darín, sem dúvida, brilha como o ermitão grosseiro, agressivo e ressentido. 

A ambientação na Patagônia é responsável pela  construção da tensão e o exterior inóspito torna-se, assim, o quarto personagem. A neve branca permanente contrasta com o interior - literal e psicológico -  escuro e sombrio. O som do frio e do vento são muito bem trabalhados e sentimos o mesmo frio durante  todo o filme. Não há descanso do vazio, do gelado, do isolamento. Há desconforto nessa permanência.

Neve Negra não é um suspense brilhante. Mas trabalha a temática familiar com muita competência e verdade. E apresenta belíssima fotografia para desvendar os segredos tão bem escondidos nas montanhas cobertas  pela neve  branca. Ou azulada. Ou escarlate. Ou, essencialmente, negra. 



terça-feira, 13 de junho de 2017

Santo Antonio.







Minha mãe nasceu no Dia de Santo Antonio. E duvido que o santo casamenteiro tenha/tenha tido/venha a ter maior devota!

Não há como dissociar a minha mãe do santo. Sua firme convicção no casamento pontuou as nossas vidas e tornou-se sua marca registrada. E quem frequentou a nossa casa na infância e na adolescência sabe bem a força da devoção!

É bem verdade que numa casa de 4 mulheres, um monte de primas e dois montes de amigas, a pauta casamento não era de todo estranha ou adversa. Muito pelo contrário! Buscar o amor e sonhar com o "felizes para sempre" fazia parte do imaginário feminino, ainda que nem sempre levado a tal  extremo!

Minha mãe ia à Igreja de Santo Antonio religiosamente todas às 3ª feiras. Na mão, a lista de todas as casadoiras. A lista tinha hierarquia: primeiro as filhas! As demais vinham por ordem de idade. Claro que a ordem foi alterada após os nascimento das netas que, justificadamente,   passaram à frente ainda bebês. Afinal, sangue é sangue! Meu pai costumava dizer que o santo, ao ver a minha mãe entrar na igreja, se escondia e mandava dizer que não estava!  Estava exaurido de tanto pedido!

E as simpatias?  A do papel no pires com água, a do santo afogado, a da fita vermelha, a do santo de cabeça pra baixo. Uma amiga da minha irmã mais velha tinha uma infalível: moer o rabo de uma lagartixa e jogar no colarinho da camisa  do eleito. Tiro e queda! O coitado não tinha como escapar!

Apesar dessa influência tão determinante, a minha maior herança de devoção a Santo Antonio não veio da minha mãe, mas de uma amiga dela. D.Dulce. Querida D.Dulce! Conhecemos D.Dulce quando nos mudamos para São Paulo. Ela era viúva e tinha apenas um filho, casado com a minha prima Cristiana. Cristiana é a filha mais velha da tia Vera, para quem casamento também sempre foi assunto da maior importância!  D.Dulce foi irremediavelmente contaminada pela combinação da minha mãe e da tia Vera. Sorte que gostava de mim e zelava pelos meus interesses! Uma vez, numa viagem a Salvador, saíram para visitar antiquários à procura de santos barrocos.  D.Dulce não teve dúvidas: aproximou-se de uma imagem de Santo Antonio e, discretamente, arrancou o menino Jesus de seus braços e enfiou na bolsa. O menino Jesus veio pra São Paulo e pras minhas mãos! Dizem que a simpatia só tem valia se o menino Jesus for dado, jamais arrancado pela  própria pessoa. D.Dulce já virou estrela, mas o menino Jesus arrancado sem cabeça e sem braços  da imagem de Santo Antonio me acompanha até hoje!

Doces lembranças... E muito carinho e agradecimento pelo santo que hoje abençoa os 91 anos da minha mãe!