domingo, 23 de junho de 2024

O Primeiro Hamlet: "the rest is silence".

 


Hamlet, de William Shakespeare é, sem dúvida, a peça mais encenada e estudada do maior dramaturgo de todos os tempos! Houvesse apenas UM escritor em toda a história da humanidade, Shakespeare, SOZINHO, conseguiria abordar todas - absolutamente TODAS - as complexas motivações e contraditórias emoções humanas. Shakespeare também teria sido capaz de, SOZINHO, inspirar o nascimento de TODAS as outras artes! Dança, música, pintura, escultura e todas as demais manifestações artísticas surgiram, naturalmente, da sua obra. Nessa abordagem, Hamlet parece inesgotável! Seja qual for a opção de encenação, há camadas ainda a serem exploradas!

O diretor Gabriel Villela, de quem sou fã assumida, optou pela primeira versão de que se tem conhecimento. Shakespeare escreveu três versões para a sua maior tragédia! A cada versão, o dramaturgo mergulhou mais profundamente nas questões metafísicas e menos nas ações. A primeira versão, portanto, tem maior enfoque no agir do que no pensar, e, portanto, apresenta agilidade que favorece o palco.

Gabriel fez um trabalho absolutamente surpreendente! Quem conhece e acompanha a sua obra já se acostumou com as suas soluções inovadoras de cenário, criatividade nos figurinos e seleção musical variada. Mas, ainda assim, ele sempre surpreende! 




O cenário, projetado para acomodar tantas cenas em diferentes espaços, é genial! No mesmo palco, a torre do palácio, a sala do trono, os aposentos de Hamlet e da Rainha, os aposentos de Corambis (Polonius) e seus filhos, o palco da companhia teatral, o cemitério. A única cena fora da encenação é a viagem de Hamlet à Inglaterra, que é apenas narrada. Gabriel, como sempre, não deixa de pautar questões contemporâneas nas suas concepções. Em "O Primeiro Hamlet", espectros de árvores, em referência à devastação ambiental, dialogam com os espectros das personagens. Tristemente sensacional!




Nem sei mais como descrever a criatividade dos figurinos! O contraste das cores sóbrias predominantes com o leve colorido reforçam a sobriedade dos temas. Destaque para a leveza do figurino de Ofélia. Destaque também, SEMPRE, para a  maquiagem voltada para o circense. E, COMO SEMPRE, a composição das tradicionais golas elizabetanas. É um verdadeiro deslumbramento!

Impossível dissociar as produções do Gabriel da seleção musical absurdamente envolvente! Em "O Primeiro Hamlet", ele optou por uma linha mais linear e homogênea, priorizando canções MARAVILHOSAS em latim, criando polifonias que tocam fundo, muito fundo na alma! Parabéns aos responsáveis! Que presente!



Por fim, quero falar desse elenco mais do que talentoso! Chico Carvalho, como Hamlet, nos arrasta para o que há de mis trágico no enredo! Seu monólogo do "Ser ou Não ser" é de uma beleza teatral que define o fazer teatral!!! Luciana Carnieli, como a Rainha Gertred (Gertrudes), está estupenda. Claudio Fontana, como Rei Claudius se superou nas expressões faciais! Que versatilidade! Que comicidade drmática! E a dobradinha Claudio Fontana e Elias Andreato continua rendendo ótimas performances! Aliás, o Elias, como Corambis (Polonius) parecia estar se divertindo muito! E nos levou à mesma diversão! Que talento! Aliás, todo o elenco está afinado e uniforme! E queria, aqui, destacar a qualidade vocal de TODOS!!! Absolutamente impressionante a sintonia vocal que compõe cada cena! 

O teatro de Gabriel Vilella é inspirador, renovador, instigador! Não se sai de qualquer uma de suas peças sem o coração transbordante de tanta beleza e sem a reflexão crítica que nos provoca!

E, por isso, escolhi a frase que mais me remete a Hamlet: "The rest is silence". A polissemia da palavra "rest" em Inglês traduz o meu sentimento:  "rest" pode ser "resto" ou "descanso". Ao fechar das cortinas, só resta o silêncio. Mas também a nossa absorção individual e introspectiva precisa desse silêncio!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Ubu Rei. Delírio Tropical.


 "E o direito ilegítimo que eu tenho? Não vale nada?"





Alfred Jarry, dramaturgo francês e um dos maiores inspiradores do surrealismo e do teatro do absurdo, estreou "Ubu Roi", sua principal obra, em Paris, em 1896.  A atonicidade com a proposta tão fora do padrão foi tamanha, que as vaias e repúdio do público mantiveram a encenação fora dos palcos por 10 anos!  

Tive a imensa sorte de assistir à  primeira montagem da peça no Brasil em 1985! Ubu/Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes, do grupo Onitorrinco, foi protagonizada por Cacá Rossetti. Cenário e figurino assinados por Lina Bo Bardi. Com  linguagem ousada, irreverente, transgressora e instigante, a peça ficou em cartaz por anos e sucesso absoluto de crítica e premiações. O bordão "Eu não tô legal" fez parte de toda essa geração! Que experiência teatral! 

Rei Ubu tornou-se personagem famoso no cenário paulistano da época. A melhor história foi durante o plesbicito de 1993, ao apresentar-se como defensor a Monarquia e exigir que o Príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança, não sem tumulto e constrangimento, aceitasse o encontro entre os dois Chefes de Estado. 

Tive também a imensa sorte de assistir à  magistral interpretação de  Marco Nanini  na pele do Rei  Ubu,  na celebração dos 50 anos de sua carreira, em 2017 A proposta dessa montagem foi menos transgressora,  e mais revestida de humor refinado e frescor revigorante. A modernidade do texto permitiu , sem qualquer esforço, um passeio leve, sagaz, ácido e análogo à sordidez e mesquinharia do poder corrompido e corruptor. "Pelos chifres que carrego na cabeça" foi o bordão que marcou essa montagem de celebração!

E tive, por fim, a imensa sorte de assistir, ontem, à surpreendente montagem de Ubu Rei com o grupo Os Geraldos e direção de Gabriel Villela! 





O texto atemporal e visionário de Alfred Jarry parece ter sido escrito sob medida para testar as possibilidades e a genialidade do Gabriel!  O cenário histórico de preocupante regressão a governos totalitários, extremistas e antidemocráticos é um convite ao deboche e escracho tão bem dimensionados no palco. O absurdo da realidade é fonte inesgotável para o absurdo do  teatro! E cada nuance, cada brecha e cada descuido são  explorados e deliciosamente oferecidos! O resultado é uma experiência de leitura do nosso tempo mais típica da crônica, mas temperada pelo humor caricato que quase nos liberta dos tempos sórdidos ainda tão recentes! 

A assinatura do Gabriel está em tudo! O cenário é montado e desmontado pelos próprios atores, sinalizando a mudança de cada ambiente com muita eficiência e pontuando o caráter ficcional da obra. 




Os figurinos, como sempre, são personagens vivos e ativos! São tantos detalhes! São tantas referências!  As golas elizabetanas estão sempre presentes! Destaco o trabalho em crochê por baixo das roupas do Pai Ubu! Tão mineiro! Tão "manual"!




E, claro, a trilha sonora que sempre encanta e costura o enredo,  e flui, como águas caudalosas dos rios mineiros, para revolver as  nossas emoções! "Disparada" abre, seguida de "Viola enluarada". Quase chorei! Lindo demais! E segue até "Bella Ciao" e  "El pueblo unido jamás será vencido"! Cancioneiro de riqueza incalculável!

Não conhecia o trabalho de Os Geraldos! Que grupo maravilhoso! Que atores talentosos! Quantas habilidades!!! Destaque especial para a atuação do "Bostadura", que interpreta a forma de falar do nosso ex-presidente com perfeição!




O maior mérito da montagem do Gabriel foi ambientar a Polônia no Brasil. E adaptar o texto original aos desmandos do último governo e todos os absurdos que tivemos que engolir! O casal Ubu em lutas antiéticas e antidemocráticas para tomar o poder e instaurar a barbárie é o espelho do que vivemos. Tudo de forma sarcástica, exagerada, crítica! As personagens obscuras da nossa política recente estão todas lá! Dos 4 filhos do ex-presidente à deputada Carla Zambelli. 




Gostaria, ainda, de destacar dois elementos. O primeiro é a caracterização do Pai Ubu e a Mãe Ubu de forma altamente sexuada! Os enormes orgãos genitais à mostra fazem o ponto, constroem o simbólico principal definido pelo diretor. O segundo elemento é o empoderamento da Mãe Ubu e a "bestialização" do Pai Ubu. Mãe Ubu não é submissa! Defende-se, opõe-se, situa-se, cobra, inferioriza, ocupa. Essa faceta é nova quando comparada às montagens anteriores. 





E, por fim, queria destacar o momento lírico e tão belo... A morte da consciência. A consciência personificada como mulher, como fauna e flora tropical, desprotegida... E que sucumbe... Um lindo momento poético e melancólico... 




E viva  o teatro!  E viva a sua missão alegórica, fantasiosa e profana de cruzar as linhas da imaginação, da identidade e da emoção!







sábado, 5 de novembro de 2022

Ana Maria Whitaker. Nossa eterna embaixatriz.



Conheci a Ana em 1992 em San Juan, Porto Rico. O Christiano, marido dela, era o cônsul do Brasil em Porto Rico e, quando fomos nos registrar no consulado, ele, muito gentilmente, sentou-se conosco para saber quem éramos, o que fazíamos, nossos filhos, etc. Christiano fez um ótimo trabalho em reunir os brasileiros que estavam morando ali e, pelas afinidades, e, principalmente, pela proximidade da idade dos filhos, formamos um grupo muito especial. 

Quando a conheci, fiquei muito impressionada. Porque ela era MESMO uma consulesa! E depois virou embaixatriz! Um porte, uma altivez, uma presença! Acho que "presença" é a palavra que melhor a define.  A Ana chegava e ocupava o espaço. Mesmo sem querer.  Chique, elegante, discreta. Mas com muita personalidade! 

A Ana era muito sagaz! Sem dizer uma palavra, os olhos percorriam tudo e todos. Um senso crítico apuradíssimo! Uma capacidade de síntese como poucos! Uma habilidade para decifrar como nunca vi. E os olhos... Que percorriam... Entendiam... Decifravam... Um humor daqueles bem ácidos, diretos, certeiros. Como eu gostava do humor dela! E ela não ria solto. Ria baixo, cortado. Ria quase sem rir. Mas ria. E muito! 

A  Ana tinha uma casa linda! LOTADA de objetos de todos os tamanhos, formatos e materiais possíveis. Objetos lindos! Verdadeiras relíquias acumuladas ao longo do tempo, e vindos de todos os  países em que moraram. Nem sei mais listar quantos ou quais, mas foram muitos! Cada um dos quatro filhos nasceu em um país diferente. E ela mantinha todas essas lembranças e obras de arte de todos os tipos. Era um prazer admirá-los!

A Ana costurava. Fazia aulas de costura em Porto Rico com a professora mais famosa da ilha: Begônia. Ela e a Christina, outra brasileira do nosso grupo que também tinha o maior talento. Fiz aulas também com a mesma professora. Resultado: fracasso total. Definitivamente, não dou pra coisa. Mas a Ana e a Christina... Como costuravam bem!

A Ana também cozinhava. E como!! Pratos maravilhosos! Uma organização que dava até raiva! Lembro, em especial,  um jantar de 24 de dezembro, dia do aniversário do Christiano, que passamos com eles. Uma ceia MARAVILHOSA!!! Nada parecia dar trabalho, tudo parecia simples, fácil, normal. Lembro-me também de uma outra vez em que fui ao Rio e almocei com eles. O almoço todo pensado, calculado, todo arrumado num carrinho de chá que era só levar para a mesa. Era assim. Tudo perfeito como um relógio suíço!

Mas o mais típico da Ana eram as benditas bolas de Natal que ela passava o ANO TODO preparando! Ela forrava as bolas com retalhos e levava a cesta das bolas para onde ia! Sentava enquanto conversávamos...  E dá-lhe bolas! Falava e forrava! Centenas! 

De um número razoável de brasileiros em Porto Rico, acabamos formando um grupo menor. Menor em tamanho, mas ENORME em afeto e afinidades.  Chamamo-nos de AMIGUITAS! E amiguitas somos há exatos 30 anos! De Porto Rico, eu e a Carmen, ambas cariocas, viemos para São Paulo. Bel, paulista, foi pra Recife e depois voltou pra São Paulo. A minha xará, Maria Alice, foi pro Uruguai e depois voltou pra São Paulo. Christina foi pra Alemanha, pra França e hoje mora na Flórida. Fátima foi pra República Dominicana e hoje mora na Guiana. E a Ana foi pro Vietnã, pra Namíbia e depois voltou para o Rio de Janeiro. Mas NUNCA deixamos de nos falar, de nos procurar, e de estar juntas sempre que possível! E conseguimos muitas vezes! E  cada vez era uma festa! E muito prosecco! E muita bobagem! E muitas risadas! Uma vez, fomos a um restaurante aqui em São Paulo e fizemos tanto estardalhaço que os garçons nos olhavam a ponto de sentirmos vergonha! Eram assim os nosso encontros... Era assim a nossa vontade de estar juntas... Era assim que éramos as amiguitas... A foto abaixo retrata um dos nossos momentos juntas. Conseguimos reunir quase todas, faltando apenas a Fátima, que inclui na montagem para registrar todas nós! 




De tudo que a Ana tinha de especial, acho que o ouvir era o principal. Pelo menos pra mim. Quando eu precisava desabafar, ou de um conselho sobre algum assunto mais sério, era a ela que recorria. Isso porque, nesses casos, eu não precisava de alguém dizendo que tudo ia dar certo. Eu precisava mesmo era de alguém que ouvisse até o que eu não estava falando. Atentamente. E, sem meias palavras,  olhando bem dentro do meu olho, ela dizia tudo o que eu precisava ouvir. E nunca mais tocava no assunto! E precisei dela algumas vezes... Com tantas dúvidas... Tantas incertezas... E sempre tive dela o olhar firme e os ouvidos atentos. E por isso, entre tantas coisas, sou imensamente grata.

A  Ana nos deixou no dia 30 de outubro. Embora ela já não estivesse bem, a sua partida nos pegou desprevenidas. Porque é muito difícil pensar num mundo sem ela. Quase impossível pensarmos como amiguitas sem ela. Ela era o centro do nosso grupo. A nossa matriarca sábia, ponderada, ácida, generosa, atenta. Estamos sem chão... Um vazio doído... Uma vontade de voltar o tempo e estar mais vezes, ouvir mais, aprender mais... Dizer o quanto ela era querida, apreciada, reconhecida, admirada... 

E o meu carinho se estende infinito ao Christiano, Clara (minha querida, que tbm me ajudou num momento de transição muito especial!), Daniel (sempre tão carinhoso!), Camila (minha querida florida!), Renato (o caçulinha que se juntou à criançada!), Aninha, Lia, Petra, Vinicius...

A Ana SEMPRE dizia, em TODAS as vezes em que estávamos juntas: "O que temos é muito especial!" E era mesmo. E é mesmo! E sempre será!

Ana, que falta você vai fazer... Que falta... 



sábado, 29 de outubro de 2022

A política e o poder de perdoar.






Amanhã encerraremos o longo e triste período eleitoral para a escolha do presidente que governará o Brasil pelos próximos quatro anos.  

Longo, porque não se ateve aos três meses normalmente concedidos para as campanhas, mas que se mantém ativo e vigoroso desde a campanha de 2018. Verdade seja dita, o atual presidente NUNCA deixou de ser candidato. NUNCA assumiu a presidência e NUNCA governou para todos. Todo o exercício do seu mandato foi voltado única e exclusivamente para os seus apoiadores, excluindo, explicitamente, quem não o apoia.

Triste, porque presenciamos, nesses quatro anos, atos de barbárie indescritíveis e inimagináveis. O atual presidente promoveu, de todas as formas possíveis, o ódio em todas as suas possíveis facetas. Dividiu o país de forma quase irreversível. Armou a população de forma leviana e irresponsável. Atacou e menosprezou as instituições democráticas construídas com tanta luta. Impôs sigilos ao invés de promover a transparência. Levou 780 mil brasileiros à morte durante a pandemia da Covid-19 com toques de crueldade jamais vistos. Desmontou todas as políticas de preservação ambiental. Reduziu a Educação e a Cultura a patamares difíceis de serem galgados outra vez. Ignorou todas as ações de proteção a minorias. Entregou o orçamento ao Centrão. Atacou a imprensa de forma implacável. Promoveu o negacionismo. Trouxe  de volta doenças erradicadas. Usou a mentira como principal arma presidencial. Disseminou fake news como nem pensávamos possível. Agrediu países parceiros. Tornou o Brasil um país pária no mundo. Contaminou a laicidade do Estado, atiçando verdadeiras guerras santas. Cercou-se de ministros e conselheiros cínicos, oportunistas e ignorantes. Criou gabinetes paralelos. E expôs comportamentos e discursos indignos, baixos e vis. Em nosso nome, mas sem o nosso consentimento.

Amanhã, seja qual for o  resultado, encerraremos esse interminável cabo de guerra. Estamos todos cansados, exaustos, exauridos, combalidos.

Amanhã, um dos lados comemorará. Amanhã, o outro lado lamentará. O lado da civilidade, se ganhar, comemorará com profundo alívio e muita esperança. Se perder, será um lamento enlutado, dolorido, fundo e profundo. Já o lado da incivilidade, se ganhar, será estrondosa, espaçosa, alardeante. Se perder, será reativa, agressiva, violenta, armada, perigosa. 

Mas temos que tirar, desse horror que temos vivido, alguma lição. Temos que encontrar conforto. E, principalmente, temos que encontrar alguma maneira de reconciliação. Caso contrário, não sobreviveremos como nação soberana, unificada e compromissada.

E foi pensando nisso que busquei alguma inspiração que me ajudasse a  vislumbrar o caminho de retorno depois do resultado amanhã. Seja ele qual for.

E foi nessa busca que recorri a Hannah Arendt, uma das mais conceituadas filósofas políticas do século XX. Para ela, é a atividade política que diferencia o ser humano dos outros seres vivos,  pois é através de atos e palavras que os homens se revelam. Nessa visão, a política é baseada na liberdade e espontaneidade, revelando, assim, as incoerências a pluralidade dos homens. E é aqui que entra o seu conceito de "perdão". Para Arendt, o  "agir" é imprescindível e a imprevisibilidade da ação não deveria ser um empecilho. O "perdão" desempenharia o papel de "remédio" para as ações que não podem ser desfeitas, mas podem, sim, ser perdoadas.  O perdão libertaria e impulsionaria a capacidade de agir, mesmo considerando toda a imensa área de incertezas das eventuais  consequências. 

O oposto do perdão é a vingança, a reação natural e previsível. O correlato do perdão é a punição, que, como o perdão, põe fim a algo que poderia vir a prosseguir indefinidamente. A pergunta que se põe, então  é: conseguimos perdoar qualquer tipo de ação para a qual não há punição? 

Os atos do presidente, dos seus ministros, de governadores, prefeitos, vereadores, deputados, senadores,  dos administradores e funcionários públicos e  dos demais colaboradores podem ser punidos.

Mas e nós? Como sociedade? Como prosseguiremos, depois de amanhã, com os nossos atos de oposição uns aos outros, para o quais não há punição? Não podemos ser punidos por escolher um ou outro caminho. Não podemos ser punidos por defender ideologias antagônicas, inconciliáveis. Mas, no entanto, estamos, sim,  nos punindo metaforicamente pelo que defendemos. Implacáveis, irredutíveis, acusativos.

Por mais que tenhamos valores cristalizados e inegociáveis, se não dermos um passo  em direção ao perdão  ao que nos opomos tão veementemente, não nos reconciliaremos, não teremos como construir  o país que queremos e merecemos. Não colocaremos fim ao cabo de guerr.

Amanhã um dos lados sairá "vencedor". Espero, do fundo do meu coração, que seja o lado da civilidade. Esse lado será capaz de unir, acolher e, sim, perdoar o que parece  imperdoável. O outro lado, se ganhar, pelo seu histórico,  infelizmente, fortalecerá seus ressentimentos, seus ódios e sua exclusão.  




domingo, 18 de setembro de 2022

Carta às mulheres

 




São Paulo, 18 de setembro de 2022.


Queridas mulheres:

A história do mundo foi/é/tem sido contabilizada, quase que exclusivamente, sob a equivocada ótica do universo masculino. Força, lutas, conquistas, dominação, subjugo, vaidades, egolatria e sacralização peniana foram/são/têm sido os fios condutores que determinaram/determinam a jornada e feitos da humanidade.

Coube a nós, mulheres, no entanto, a missão mais nobre. Mais importante. Mais essencial. Somos nós, e não os homens, as responsáveis por gerar vidas. O escritor moçambicano Mia Couto, no seu livro "A confissão da leoa", diz, num dos trechos mais lindos da literatura, que "Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde milênios, vão tecendo esse infinito véu. Quando seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar".

Somos também nós, e não os homens, as responsáveis, por contar e preservar as memórias de mundo.  Cada mãe que nina o seu filho conta uma história de mundo. E lhe assegura que o mundo é bom. E que ele será sempre protegido. Cada mãe, avó, tia, prima, irmã, sobrinha, professora  que conta uma história, faz um afago, consola, enaltece, sorri largo e derrama carinho, conta mais histórias do mundo. Histórias belas, nobres, que fazem acreditar muito além do que se vê e se sente. Histórias que fazem ser possíveis outros mundos, outros destinos, outras e outras histórias. 

E somos também nós, e não os homens, que criamos e desenvolvemos a arte de fiar e tecer. Fios e bordados, reais e simbólicos, tão frágeis quanto potentes, teceram/tecem/têm tecido as tradições, memórias, desejos e fantasias. Verdadeiros guardiões das histórias construídas, mal construídas e desconstruídas.

E é justamente em nome da nossa missão insubstituível que convoco todas vocês, em união cúmplice e solidária, para, juntas, interferirmos na desordem caótica em que estamos todos mergulhadas e reestabelecermos a ordem funcional que garanta a preservação das vidas. Gerar e preservar. Preservar e contar. Essa é a nossa natureza. Essa é a nossa essência. 

Há quatro anos,  vivemos o invivível. Temos sido silenciadas, maltratadas, mutiladas, estupradas, mortas. Nossos filhos estão  diariamente em risco. Feliz é a mãe que, aliviada, coloca o seu filho para dormir em casa todas as noites. Muitas, infelizmente, não têm a mesma sorte e choram os seus filhos nos seus caixões. Vidas e vidas interrompidas por balas aleatórias deliberadamente cedidas a quem extermina quando deveria proteger.

Há quatro anos, os  nossos filhos estão cada vez mais orfãos da pátria acolhedora, gentil, cuidadora. Não há vozes ternas; há apenas vozes raivosas. Não há caminhos de luz; há apenas trevas. Não há futuro esperançoso; há apenas o presente incerto. Não há liberdade; há apenas o poder impostor. Não há a alegria e descontração; há apenas a tristeza que nem sabemos  bem por quem carregamos. Não há o futuro de terra nossa que nos permita continuar a respirar; há apenas cinzas e o fogo que consome e sufoca. Não há país para todos; há apenas para poucos, muito poucos. Não há conhecimento; há apenas a ignorância galopante. Não há cultura, arte, beleza, sublimação; há  apenas  a supressão de tudo o que seja criativo e transformador. Não há o direito das  minorias; há apenas o preconceito e perseguição. Não há a fé espontânea, que vem de dentro e procura ser sempre melhor; há apenas a nojenta manipulação dos ingênuos. Não há preocupação com o sustento; há apenas a fome que dói, que imobiliza, que mata. Não há valorização da vida; há apenas o culto satânico à morte. 

Há quatro anos, encolhemos. Minguamos. De vergonha, de horror, de impotência. Assoladas por estratégias de crueldades nunca antes pensadas possíveis, paralisamos. Incrédulas, silenciamos. Deixamos de contar a história, porque nos recusamos a perpetuar a história tão indigna, tão baixa; tão contrária.

Mas essa infeliz história pode ser revertida. Somos 52,65% de eleitoras. E,  em 2 de outubro, podemos, não contar, mas FAZER HISTÓRIA! Não assistir, mas protagonizar.  Podemos dar o basta. E determinar, ao toque de uma tecla, a nossa escolha pela vida. 

Somos mulheres. De fragilidade forte, sensível, atenta, intuitiva. É absolutamente contrário à nossa natureza aceitar o inaceitável. Conviver com a  violência, com a boçalidade, com a falta de liberdade, com a perda da doçura, com o medo, com os lutos infinitos, com a fé que fere o bem e o bom, com a injustiça, com a dor de cada uma  que se torna a  dor de todas é um verdadeiro estupro ao nosso SER MULHER. 

Somos mulheres. E repudiamos tudo e todos que nos afastam do sorriso orgulhoso, do coração transbordante de orgulho, da compreensão maior do mundo, da capacidade de cuidar, proteger, viver e deixar viver. Não precisamos dos discursos e narrativas do oposto. Devemos ouvir os nossos corações. Sem medo de errar, DEVEMOS seguir a nossa intuição.

Somos 52,65%. Vamos juntas. Vamos confiantes. Vamos convictas. O que está em jogo é o mais básico: A SOBREVIVÊNCIA. E ninguém melhor do que nós, as que geramos vidas, para entender o valor de ver essa vida germinar e florescer. 

Peço a cada um de vocês que reflita. Muito. E sem amarras. Sem  ideias ultrapassadas. Com a clareza do ver mais profundo do que a superfície rasa que ilude, confunde. Pensem nas outras mulheres que fazem parte das suas vidas. Pensem que voz vocês querem dar a elas. Pensem nas histórias que elas terão orgulho em contar. Pensem no mundo que podemos, agora,  fazer ser um pouquinho melhor. 

As mulheres da minha vida estão aqui: minhas irmãs, sobrinhas, sobrinhas-netas. E, principalmente, a minha filha - aranha, que já tem tecido lindas histórias de mundo!

Termino com essa imagem e com um provérbio africano: "Quando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar um leão"! 

Obrigada a todas!

Com carinho, imensa admiração e irrestrita cumplicidade,

Maria Alice




quinta-feira, 8 de setembro de 2022

"God save our gracious Queen."

 



Quem me conhece sabe o quanto sou admiradora da Rainha Elizabeth! Eu costumava dizer que quando o mundo - e  também  o meu mundo particular -  parecia caótico e sem sentido, ter certeza da presença dela era a ordenação necessária para que tudo voltasse ao normal possível e suportável.

Her Majesty. Setenta anos de reinado. A primeira coroação transmitida pela TV. Testemunhou as grandes transformações do seu tempo. Viveu os períodos das maiores mudanças. Elo entre o passado glorioso e o presente incerto. 

Her Majesty. Digna. Altiva. Elegante. Discreta. Gentil. Alegre. Admirada. Respeitada. Reverenciada.  

E acho que é por isso tudo que sou súdita leal e assumida. Preciso de mitos que elaborem o que a lógica nem sempre explica. Preciso de mitos que assegurem que tudo tem o seu momento, o seu lugar, a sua linguagem. Não é essa, afinal, a função dos mitos?   

A Rainha Elizabeth personificou os protocolos e os cerimoniais. Com eles, o apaziguamento de conflitos e o despojamento dos interesses e vaidades. Nos rituais rígidos e metódicos, a estabilidade, a segurança, a normalidade. Na sua majestade, a capacidade de adaptar-se aos tempos sem fraquejar e sem deixar de cumprir o seu papel.

O mundo perde hoje a sua Rainha absoluta e insubstituível. Uma Era se encerra. Gloriosa, vitoriosa, digna. Em tempos tão difíceis e com tantas indignidades e falta de grandeza, o exemplo da Rainha fará muita falta.  Uma nova Era  se inicia. Diferente, incerta, frágil.

E eu? Particularmente? Perco Mi Reina, My Queen. E sinto uma certa vertigem. Medo de pisar no chão cambaleante, daqui por diante, e tatear a  sua não-presença para me garantir que tudo segue bem no  mundo.   

Encerro com um dos seus maiores ensinamentos: "It has been women who have breathed gentleness and care into the harsh progress of mankind." .





domingo, 21 de agosto de 2022

Pundonor. Pontos de honras.

 

Pundonor, em espanhol,  quer dizer ponto de honra, aquilo do que não se pode abrir mão. 

E é justamente a defesa dessa honra que serve de base para o monólogo dirigido por Bernardo Bibancos, um jovem diretor de apenas 25 anos, mas com um olhar sensível, cuidadoso e muito profissional; e protagonizado por Lu Grimaldi,  que dispensa apresentação pela sua carreira coroada por grandes personagens! 

O texto é da dramaturga argentina Andrea Garrote, o que lhe rendeu vários prêmios, inclusive o de "melhor monólogo da década"!

Monólogos não são fáceis dentro da dramaturgia. A falta de interação entre personagens, a ausência de falares diferentes e de particularidades individuais podem tornar-se cansativas para o público e muito desgastante para o ator. O monólogo EXIGE um texto primoroso, impecável, interessante, coeso e de grande poder de identificação. Ao mesmo tempo, o monólogo EXIGE cenários assertivos, iluminação cuidadosa e um ator/uma atriz de ENORME talento de corpo e voz. Sem essa combinação perfeita, o monólogo torna-se um desafio. 

Tenho, como referência, dois monólogos a que assisti e me impactaram muito. O primeiro, na década de 70 e eu, ainda adolescente, foi "Apareceu a Margarida", numa interpretação inesquecível de Marilia Pera! Arrebatadora! Desconcertante! O texto falava sobre uma professora que, em plena sala de aula, fazia de seus alunos  interlocutores para mostrar a sua visão de mundo, discutir autoritarismo, poder e sexo. Aos poucos, na sua empolgação e abstração, a professora subia na mesa, gritava, ria histericamente, chorava, uma mistura incrível de emoções! 

O segundo foi "Palavra de Rainha", com Lu Grimaldi numa apresentação magistral que, ainda que única atriz, dividia o palco com um dos cenários mais sensacionais que já vi! O enorme vestido preto de D.Maria cobria cada centímetro e movia-se, como ondas, na mente tortuosa da Rainha Louca. Tenho uma afeição especial por esse monólogo, pois o meu filho teve a honra de participar desse projeto como assistente de direção da diretora Mika Lins. Lu Grimaldi encarnou D.Maria de forma tão absurda que, depois disso, só consigo vê-la como "majestade"! A peça fala sobre a "loucura" da rainha atormentada pela morte de seus filhos e pelo medo do desconhecido. O que eram fatos racionais e lógicos, passam a ser sensações e intuições. Uma peça belíssima que traz toda a tragédia da mulher, mãe e soberana numa mente fragilizada, amedrontada e melancólica. 

Pundonor reúne, num certo sentido, as trajetórias e vozes das duas mulheres que a antecederam. Na pele de Claudia, professora de sociologia especializada em Michel Foucault, o conceito de loucura, opressão e dominação são aprofundados e atualizados. Claudia volta à sala de aula após um afastamento imposto. Ainda bastante abalada pelos acontecimentos e por  todo o julgamento, acusações e rótulos impostos, ela usa a teoria de Foucault para externar a sua visão da modernidade e do papel que a sociedade ainda destina à mulher. Loucura e descontrole sempre foram atribuídos às mulheres ao longo da História, quando não correspondiam ao comportamento esperado, ou melhor, definido para elas. Ao confrontar os próprios alunos quanto às suas atitudes, principalmente  quanto ao uso das redes sociais, Claudia questiona o que pode ser considerado normal ou anormal, e o quanto esse conceito muda de acordo com o tempo e os padrões sociais. 




A personagem parece ter sido escrita especialmente para a Lu Grimaldi! Que controle de palco! Que controle de corpo! Que controle de voz! Que controle de olhar! A Lu consegue, com maestria, mesclar a densidade do tema com a leveza e o humor que sustentam o texto. O nervosismo de estar sendo julgada é equilibrado com o "foda-se" e controle de seus pensamentos e convicções. A loucura é uma linha tênue... E tão fácil de ser diagnosticada! E tão difícil de ser compreendida e acolhida... 




Uma das coisas legais dessa peça é o espaço escolhido! Não é teatro. É um anfiteatro dentro da Unisa, Assim, a criação do ambiente de sala de aula é criado de forma natural e não cenográfica!

O primoroso trabalho de iluminação também merece aplausos!  Algumas poucas luminárias espalhadas pela "sala de aula" servem de âncora e de apoio para Claudia. Em uma das cenas, todas são deitadas no chão... Que efeito!

E destaco , para finalizar, a frase do  texto MUITO apropriada para os tempos atuais: "Há muitas pessoas sem inteligência, mas que têm a sua ignorância muito bem organizada."