"Você não precisa gostar de mim para me enxergar, mas precisa me enxergar para não gostar de mim." (Fernanda Young)
Fernanda Young pulicou a sua primeira obra de não ficção, Pós-F: Para além do masculino e feminino, em 2018. Relatos autobiográficos nada convencionais, e - sem surpresas, polêmicos - contribuem para a reflexão necessária sobre o ser homem e ser mulher nos tempos atuais. O livro virou projeto teatral e seria encenado pela própria Fernanda e Maria Ribeiro, sob direção de Mika Lins. Infelizmente, a morte inesperada de Fernanda suspendeu o processo.
E então veio a pandemia... E, com ela, a paralização das produções artísticas... E foi em meio a esse cenário tão incerto e adverso que Mika Lins retomou Pós-F, e, respeitosamente, levou Fernanda Young - e Maria Ribeiro - ao palco criado em nova linguagem para uma nova experiência teatral.
Confesso ser avessa a lives e afins. Devo ser uma das únicas pessoas que tem atravessado o confinamento imune a essas novas formas de debates e entretenimento. Não tenho a menor paciência. Mas assistir a Pós-F da tela do meu computador foi uma inesperada positiva experiência!
Claro que a relação é outra! Claro que a interação é outra! Claro que o envolvimento é outro! Mas é - ou foi, nesse caso - outra BOA! Surpreendentemente boa! E aqui vem o talento da diretora Mika Lins!
Mika não caiu na armadilha de descaracterizar o "fazer teatro", nem na armadilha de "fazer o teatro" tradicional. Ela conseguiu, de uma forma muito eficiente, juntar os dois mundos com o que ambos têm de mais potente! E o resultado foi um teatro renovado, aberto, flexível, inclusivo, atual, sem perder EM NADA aquele encontro mágico entre texto, atores e público que se chama teatro.
O palco foi mantido. Literalmente. Dentro de um teatro. O cenário foi construído com habilidade e pertinência. E minimalista, como é o estilo da Mika. Poucas referências. Apenas as necessárias. Apenas as essenciais. nesse caso, com um toque pessoal e afetivo, pois os desenhos foram feitos por uma das filhas da Fernanda.
A iluminação foi a grande estrela! Que trabalho de luzes!! Simplesmente arrebatador!
A grande sacada da Mika foi incorporar as técnicas e instrumentos virtuais à encenação tradicional. Assim, tomadas do alto, por exemplo e em espiral, impossíveis numa encenação presencial, proporcionaram um outro olhar, uma oura sensação. Genial!
A trilha sonora é absolutamente perfeita! De Pepeu Gomes (Masculino e Feminino) a Caetano Veloso (O Quereres), viajamos num tempo musical eclético e poderoso! Fiquei MUITO emocionada ouvindo, depois de tanto tempo, 99 Luftballons, no original alemão!
Maria Ribeiro foi extremamente habilidosa. Porque tentar ser Fernanda não deve ser nada fácil. E ela não tentou ser. Nem foi. Ela foi Maria Ribeiro, corajosamente tentando encontrar dentro e fora dela o espaço para, generosamente, deixar Fernanda ser. E o melhor foi o interlocução que ela, Maria Ribeiro, estabelece com o próprio texto, preservando, protegendo, cuidando do que Fernanda faria/diria/pensaria, caso fosse ela, a própria Fernanda, se auto interpretando. Essa alternância entre a atriz e a personagem foi muito especial!
O texto da Fernanda é forte. Forte como ela sempre foi. O texto da Fernanda é corajoso. Corajoso como ela sempre foi. E o texto da Fernanda é mais desnudo do que ela foi. Fernanda escreveu ficções predominantemente. A ficção te coloca no lugar seguro de ser você não necessariamente sendo você. Mas o texto não ficcional te revela. Não há abrigo, não há refúgio. Fernanda, figura sempre tão polêmica - e tão imensamente talentosa - revela-se nas suas complexidades, fragilidades, certezas, dúvidas, humanidades, maternidades, sexualidades e contradições. Contradições pessoais e metalinguísticas. E essas contradições foram bem selecionadas, trabalhadas e lapidadas no palco real e no palco virtual. Sensacional!
Pós-F foi o 3º monólogo a que assisto da Mika. O primeiro foi Festa no Covil, adaptado do romance do mexicano Juan Pablo Villalobos. A versatilidade de uma única peça de cenário foi impressionante! Além do texto, que é um dos meus preferidos!
O segundo foi Palavra de Rainha, texto de Sérgio Roveri e com a interpretação majestosa de Lu Grimaldi no papel de D.Maria, a louca. O cenário era um único vestido. Negro. Que flutuava no palco e subia paredes à medida que revelava as angústias e desvarios da Rainha. Inesquecível!
O terceiro foi esse, Pós-F. Um monólogo necessário e em uma linguagem atual num mundo pandêmico. Tudo mudou. Nossas certezas mudaram. Nossas possibilidades mudaram. E também o fazer artístico mudou.
Mika me proporcionou uma incrível experiência! E a convicção de que é possivel, sim, utilizar linguagens de outras artes, sem perder, contudo, a alma do teatro.