domingo, 5 de janeiro de 2020

História de um Casamento.









"Vou amá-lo para sempre, mesmo que não faça sentido." 
(Nicole - Scarlett Johansson -  em História de um Casamento)


Eu era muito jovem quando assisti ao filme "Cenas de um Casamento", de Ingmar Bergman (1973). Como todos os seus filmes, a densidade das relações humanas, das mais ternas às mais sórdidas, e todos os universos tão bem explorados explorados entre uma extremidade e outra, serviam de matéria prima frutífera para as  grandes questões e discussões existencialistas que marcaram a minha geração. Bergaman foi o maior dos mestres  - jamais superado - das relações humanas. Bergman vasculhava cada cantinho das profundezas das nossas almas. Os olhares penetravam fundo.  Os silêncios gritavam. E incomodavam. Moviam.  Mas esse filme, em especial, na época, era muito distante da minha realidade.  Como toda jovem, romantizava o amor e o casamento "felizes para sempre". E não consegui identificar, naquele contexto, o que viveria - vivemos todos - dentro do casamento.  E, principalmente,  fora dele.

Talvez isso explique o impacto que o filme recente "História de um Casamento" do diretor Noah Baumbach provocou. Acredito que o filme tenha impactado a todos que viveram/vivem as crises inevitáveis de qualquer relacionamento. E, mais ainda, quem passou pelo dolorido processo de separação.

Cito "Cenas de um Casamento" de Bergman como ponto de partida, pois o tributo de Baumbach ao diretor sueco é inegável! Assim como também é inegável o tributo a Woody Allen e seu humor sutil e seu amor a Nova York. As duas referências estão lá, claras, explícitas! E contribuem para a qualidade do filme!

Cenas de um Casamento começa com uma entrevista dos dois protagonistas - Marianne (a fantástica Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) - para uma repórter sobre o segredo de um casamento longevo. História de um Casamento começa com os dois protagonistas escrevendo o que admiram um do outro.  Nesse primeiro momento, os dois inícios se assemelham. Só na sequência percebemos, no segundo filme, que os dois estão diante de um terapeuta e já em processo de separação.

A partir dai, Baumbach percorre o seu caminho individual e desconectado da referência. E o percorre lindamente.Linguagem própria, olhar próprio, atualizado e em linha com as influências das sociedades - em especial, a jurídica - onde está inserido.

Scarlett Johansson (Nicole) e Adam Driver (Charlie) estão estupendos! Não há como destacar as performances individuais, pois a conexão como casal/ex-casal é indissolúvel! Um se reflete no outro, completa o outro e apenas no outro ganha identidade. A sintonia é impressionante!

O trio de advogados também é sensacional! O embate entre o suave Bert  (Alan Alda) e o feroz Jay (Ray Liotta) oferecem a Nora (Laura Dern) o palco para que ela brilhe na defesa da mulher na fragilidade e desigualdade de uma sociedade ainda tão complacente com os homens e tão exigente com a mulher. O seus discurso sobre a comparação entre o mito da figura materna e a Virgem Maria é um dos pontos altos do filme! E ainda tão real! Tão atual!

"História de um Casamento", ao priorizar a questão da custódia do filho menor, apresenta, em paralelo, todos os desgastes, ressentimentos, dúvidas e resquícios do amor constituinte daquela família. Os processos individuais são muito bem construídos. De um casal, lentamente passam a dois indivíduos. Os dois estão errados. Os dois estão certos. Os dois abrem mão de algo. Os dois são egoístas. Os dois são cruéis. Os dois são generosos. Não há lados. Há apenas empatia e simpatia pela dor que ambos vivenciam. E pelo que querem/precisam manter/salvar/resgatar. Juntos e separados.

Para quem já passou por uma separação, não há como não se identificar e se emocionar. Porque, no fundo, o verdadeiro esforço no processo de separação é transformar o amor em outro amor. Esse outro amor tem que surgir fora da concepção amorosa que uniu o casal. Tem que surgir por baixo das mágoas, ressentimentos, frustrações, desamores, e, muitas vezes, raiva que determinaram o fim da relação. E TEM que surgir, porque é impensável que ele desapareça de vez, como se nunca tivesse existido. Só precisa ser outro.

E é na busca desse outro amor que o ex-casal também se busca fora daquela relação. Ver-se só e inteiro.  Ouvir os seus próprios desejos. Retomar os caminhos deixados pra trás. Trilhar novos caminhos. Vencer os medos, as inseguranças.  Aprender a dividir o  que antes era inteiro  e a assumir inteiro o que antes se dividia. Novos espaços, novos tempos, novas funções. E enquanto tudo isso se processa, um misto de alívio - por interromper um relacionamento esgotado - e raiva - por ter que fazer isso. Culpar o outro, vitimizar-se, desculpar o outro, desculpar-se, expurgar até as entranhas, libertar-se, tudo isso faz parte do processo de afastamento, descolamento.

Mas quando esse novo amor é finalmente descoberto, aquele indissolúvel núcleo familiar é mantido e preservado. Como deve ser. E manifesta-se, como bem retratado no filme, em dinâmicas que não se perdem. Como na escolha de uma salada, ou na ajuda para um portão que não fecha, ou num laço de sapatos desfeito.

Ou, no meu caso, em tantos pequenos gestos... Como passar a véspera de Natal no hospital  junto com você com a sua mãe internada. Ou fazer a sobremesa sem leite porque ele é intolerante a lactose. Ou ligar pra desabafar sobre "o SEU filho" ou a "SUA filha". Ou trocar tapetes. Ou sermos capazes, verdadeiramente, de ficarmos felizes um pelo outro. E ainda gostar de estar  um com o outro.

"História de um Casamento" é um filme que ensina muito sobre essa transformação de um amor terminal em outro amor sobrevivente.

Sorte de quem consegue!