terça-feira, 27 de março de 2018

Circo.





Aquele era o seu mundo. Não conhecia qualquer outro. Por quantas cidades passavam, pra ela dava no mesmo. Não arriscava nem uma olhadinha pra fora. Mas dentro, ah...Só ali dentro era ela. Conhecia cada palmo do picadeiro, cada luzinha da ribalta, cada remendo da lona. E após cada espetáculo, com a vassoura na mão, limpava as terras de chãos após chãos e ousava ser além dela mesma. Varria. E tornava-se corajosa como o domador, engraçada como o palhaço e graciosa como a trapezista. Varria. Imaginava-se nas roupas coloridas e repetia cada fala e cada gesto que sabia como ninguém. Varria. E ouvia as crianças gargalharem e o público aplaudir de pé. Era a estrela. E varria. E esquecia que nem tinha nome, nem idade, nem passado. Tinha apenas as roupas velhas doadas aqui e ali. E um colchão no chão perto da jaula de elefante. E uma caneca e prato só dela, com uma rosa entalhada que um antigo malabarista tinha feito especialmente pra ela. E tinha a vassoura na mão todas as noites. E as terras de chãos que ela varria junto com o futuro que ela nem sonhava que existia.

(Publicado no Grupo Minicontos em 25.05.2014. Palavra-chave: PALHAÇO)

sexta-feira, 23 de março de 2018

Cunhado não é parente.








Quando moramos em Belo Horizonte, íamos à Ouro Preto toda Semana Santa. Uma das simpatias locais  era entrar em sete igrejas e, na última, ao sair, dar esmola a um dos inúmeros meninos pedintes que rondavam os visitantes e perguntar-lhe o nome: aquele seria o nome do seu futuro marido! Em uma dessas visitas, minha irmã mais velha, já adolescente, cumpriu o ritual e o nome do menino era Homero de Jesus. Ela não se casou com um Homero de Jesus, mas com um Darc Antônio, o que, para efeitos práticos, é quase a mesma coisa!

A Beth conheceu o Darc num ônibus quando já estávamos de volta ao Rio. Ele, estudante da PUC e morador do Cosme Velho. Ela, estudante do CAp-UFRJ e moradora da Rua General Glicério em Laranjeiras. 

O Darc morava numa casa dessas coloniais na Rua Cosme Velho. Seu pai, OBVIO, também se chama Darc. Darc Francisco. Um senhor alto, com cara de bravo, mas de grande coração. O tratamento carinhoso era "macaca" e brincava sempre que tinha acabado de passar pela banca do Seu Mario, figura mais do que conhecida na General Glicério, para ver a última revista  que falasse do Chico (ele mesmo, o Buarque), só pra implicar comigo ( eu já era chiquete assumida naquela época!). Sua mãe era Nair, o que nos rendeu trotes sem fim, em gargalhadas que não conseguíamos conter, inspiradas no personagem do Jô Soares que ligava sempre para "Nair, sua vaca, capivarona",etc."Ele tinha 2 irmãos, Paulinho e Ivan, e uma irmã, Monica. 

Eu tinha 12  e a Andréa 10 anos na época do namoro. Íamos sempre pra fazenda do pai dele, no Vale das Videiras, na época, uma aventura com direito a atoleiros, lamaçais e luz de lampião. A diversão favorita era o famoso jogo do copo, com espíritos que vinham nos visitar e revelar segredos. Uma vez, o Paulinho e seu amigo Jorginho fizeram várias gravações de correntes se arrastando, redes rangendo, portas batendo e puseram no nosso quarto. Quando fomos dormir, ouvimos os barulhos e, muito impressionadas com o jogo, saímos gritando e chorando pela casa! Fizemos também um filme épico, a feiticeira do Salém, em que a Andréa aparecia em vários pontos da fazendo com os seus feitiços. A Andréa, uma vez, ganhou um pintinho. Polegarina. O desgraçado piava sem parar e quando cresceu o suficiente para um apartamento, foi levado para a fazenda. Toda vez que chegávamos, a Andréa corria para ver a Polegarina! Dna. Nair sempre apontava uma das galinhas e a Andréa acreditava piamente que ela viveu anos e anos, quando, provavelmente, já tinha virado canja há tempos! Tenho ótimas lembranças dessa época!

Darc e Beth  casaram em 1972. Em 1974 nasceu, segundo suas próprias palavras, a decepção Marcela. Em 1976, ainda segundo suas próprias palavras, a grande decepção Flavia. Apenas em 1979 ele foi devidamente presenteado com o sonhado varão Eduardo. 

Vocês tinham que conhecer o Darc pra entender minimamente a figuraça que ele é. Impulsivo, intempestivo e reativo. Levantar da mesa contrariado é lugar comum. Desconfiômetro zero! Visões políticas muito particulares e controversas. Apaixonado por causas, dedicado a projetos até às últimas consequências. Agregador e articulador. Nacionalista. Leitor voraz e dono de uma das bibliotecas mais completas e diversas que conheço, com cada livro cuidadosamente catalogado.  Fluminense, claro. E vaidoso como poucos. Gosta de ternos, de casacos, de chapéus. Folião nos áureos tempos, adorava ir ao centro durante o carnaval. Consta nos autos da família que era figura frequente no Bola Preta... Provedor, cuidador, preocupado. Cheio de recursos, não se aperta nem se intimida. Uma das melhores foi quando a sogra norueguesa da Flavia veio ao Brasil e ele soube que ela estava gripada. Não titubeou: "do you have the grips?" E são tantas e tantas pérolas ao longo dessas quase 5 décadas de convivência!!

Mas o Darc é, sobretudo, generoso. Como poucos. Acolhedor. Como poucos. Adora a casa cheia, a mesa cheia, a família reunida. A fazenda do pai, agora dele, tem portas e coração abertos para quem quiser. Tem sido o local preferido das celebrações de Ano Novo e foi crescendo, crescendo, crescendo para acomodar a família que também não pára de crescer. Não há limites para o que ele proporciona para essas temporadas. 

Tornou-se um avô incrível! São 4 netos e 1 neta. Os netos noruegueses, loirinhos, são a cara dele, claro! O filho do filho é o TRONCO! E com  os gêmeos, de urros e choros como se vissem o bicho papão à convivência amorosa que ele sempre constrói. Ele não dá o braço a torcer, não! Visita os netos, leva aos jogos de futebol, ajuda com os estudos, conversa, se emociona. 

Mas o mais fantástico dessa figura que é o meu cunhado é o universo paralelo em que ele vive. Quem o conhece sabe o que estou dizendo. Costumo brincar dizendo quem na minha próxima encarnação, quero nascer nesse mundo. Que mundo fantástico! Lá, ele não é o amigo do rei. Ele é o próprio rei! Príncipe das Astúrias Negras. Tudo é sobre ele, para ele, com ele, dele. Lá, ele está sempre certo. Sempre é ovacionado, reconhecido, admirado.  E é sempre assediado. Dos tempos de adolescência no Cosme Velho aos dias atuais, a mulherada não dá trégua. Minha irmã não imagina o que ele passa! Aliás, minha irmã é a mulher mais feliz do mundo e não tem ideia da sorte que tem  pela vida fácil que ele luta para proporcionar. ! A dele é que é dura, difícil. E, acreditem, os suspiros profundos geram empatia!

Essa figura está completando 70 anos! 70 anos que lhe rendem um considerável legado. Uma família unida e estruturada. Uma carreira consolidada. Amizades duradouras. Interesses e projetos diversos que lhe garantem ocupação, diversão e conhecimentos renovados.

Mas a maior sorte da sua vida foi, sem dúvida, pegar aquele ônibus voltando da PUC. Não só conheceu a mulher mais incrível do mundo, como ganhou, de quebra, as melhores cunhadas!!

É certo que  cunhado não é parente. Mas após quase 5 décadas de convivência, o Darc chega bem perto do parentesco.  Muito bom tê-lo em nossas vidas! Aliás, não há nem como imaginar as nossas vidas sem ele!

Pelos 70 bem  vividos e todos os anos ainda por vir: SAÚDE, ALEGRIAS E QUE O SEU MUNDO PARTICULAR SEMPRE CRESÇA E FLORESÇA!