domingo, 18 de setembro de 2022

Carta às mulheres

 




São Paulo, 18 de setembro de 2022.


Queridas mulheres:

A história do mundo foi/é/tem sido contabilizada, quase que exclusivamente, sob a equivocada ótica do universo masculino. Força, lutas, conquistas, dominação, subjugo, vaidades, egolatria e sacralização peniana foram/são/têm sido os fios condutores que determinaram/determinam a jornada e feitos da humanidade.

Coube a nós, mulheres, no entanto, a missão mais nobre. Mais importante. Mais essencial. Somos nós, e não os homens, as responsáveis por gerar vidas. O escritor moçambicano Mia Couto, no seu livro "A confissão da leoa", diz, num dos trechos mais lindos da literatura, que "Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde milênios, vão tecendo esse infinito véu. Quando seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar".

Somos também nós, e não os homens, as responsáveis, por contar e preservar as memórias de mundo.  Cada mãe que nina o seu filho conta uma história de mundo. E lhe assegura que o mundo é bom. E que ele será sempre protegido. Cada mãe, avó, tia, prima, irmã, sobrinha, professora  que conta uma história, faz um afago, consola, enaltece, sorri largo e derrama carinho, conta mais histórias do mundo. Histórias belas, nobres, que fazem acreditar muito além do que se vê e se sente. Histórias que fazem ser possíveis outros mundos, outros destinos, outras e outras histórias. 

E somos também nós, e não os homens, que criamos e desenvolvemos a arte de fiar e tecer. Fios e bordados, reais e simbólicos, tão frágeis quanto potentes, teceram/tecem/têm tecido as tradições, memórias, desejos e fantasias. Verdadeiros guardiões das histórias construídas, mal construídas e desconstruídas.

E é justamente em nome da nossa missão insubstituível que convoco todas vocês, em união cúmplice e solidária, para, juntas, interferirmos na desordem caótica em que estamos todos mergulhadas e reestabelecermos a ordem funcional que garanta a preservação das vidas. Gerar e preservar. Preservar e contar. Essa é a nossa natureza. Essa é a nossa essência. 

Há quatro anos,  vivemos o invivível. Temos sido silenciadas, maltratadas, mutiladas, estupradas, mortas. Nossos filhos estão  diariamente em risco. Feliz é a mãe que, aliviada, coloca o seu filho para dormir em casa todas as noites. Muitas, infelizmente, não têm a mesma sorte e choram os seus filhos nos seus caixões. Vidas e vidas interrompidas por balas aleatórias deliberadamente cedidas a quem extermina quando deveria proteger.

Há quatro anos, os  nossos filhos estão cada vez mais orfãos da pátria acolhedora, gentil, cuidadora. Não há vozes ternas; há apenas vozes raivosas. Não há caminhos de luz; há apenas trevas. Não há futuro esperançoso; há apenas o presente incerto. Não há liberdade; há apenas o poder impostor. Não há a alegria e descontração; há apenas a tristeza que nem sabemos  bem por quem carregamos. Não há o futuro de terra nossa que nos permita continuar a respirar; há apenas cinzas e o fogo que consome e sufoca. Não há país para todos; há apenas para poucos, muito poucos. Não há conhecimento; há apenas a ignorância galopante. Não há cultura, arte, beleza, sublimação; há  apenas  a supressão de tudo o que seja criativo e transformador. Não há o direito das  minorias; há apenas o preconceito e perseguição. Não há a fé espontânea, que vem de dentro e procura ser sempre melhor; há apenas a nojenta manipulação dos ingênuos. Não há preocupação com o sustento; há apenas a fome que dói, que imobiliza, que mata. Não há valorização da vida; há apenas o culto satânico à morte. 

Há quatro anos, encolhemos. Minguamos. De vergonha, de horror, de impotência. Assoladas por estratégias de crueldades nunca antes pensadas possíveis, paralisamos. Incrédulas, silenciamos. Deixamos de contar a história, porque nos recusamos a perpetuar a história tão indigna, tão baixa; tão contrária.

Mas essa infeliz história pode ser revertida. Somos 52,65% de eleitoras. E,  em 2 de outubro, podemos, não contar, mas FAZER HISTÓRIA! Não assistir, mas protagonizar.  Podemos dar o basta. E determinar, ao toque de uma tecla, a nossa escolha pela vida. 

Somos mulheres. De fragilidade forte, sensível, atenta, intuitiva. É absolutamente contrário à nossa natureza aceitar o inaceitável. Conviver com a  violência, com a boçalidade, com a falta de liberdade, com a perda da doçura, com o medo, com os lutos infinitos, com a fé que fere o bem e o bom, com a injustiça, com a dor de cada uma  que se torna a  dor de todas é um verdadeiro estupro ao nosso SER MULHER. 

Somos mulheres. E repudiamos tudo e todos que nos afastam do sorriso orgulhoso, do coração transbordante de orgulho, da compreensão maior do mundo, da capacidade de cuidar, proteger, viver e deixar viver. Não precisamos dos discursos e narrativas do oposto. Devemos ouvir os nossos corações. Sem medo de errar, DEVEMOS seguir a nossa intuição.

Somos 52,65%. Vamos juntas. Vamos confiantes. Vamos convictas. O que está em jogo é o mais básico: A SOBREVIVÊNCIA. E ninguém melhor do que nós, as que geramos vidas, para entender o valor de ver essa vida germinar e florescer. 

Peço a cada um de vocês que reflita. Muito. E sem amarras. Sem  ideias ultrapassadas. Com a clareza do ver mais profundo do que a superfície rasa que ilude, confunde. Pensem nas outras mulheres que fazem parte das suas vidas. Pensem que voz vocês querem dar a elas. Pensem nas histórias que elas terão orgulho em contar. Pensem no mundo que podemos, agora,  fazer ser um pouquinho melhor. 

As mulheres da minha vida estão aqui: minhas irmãs, sobrinhas, sobrinhas-netas. E, principalmente, a minha filha - aranha, que já tem tecido lindas histórias de mundo!

Termino com essa imagem e com um provérbio africano: "Quando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar um leão"! 

Obrigada a todas!

Com carinho, imensa admiração e irrestrita cumplicidade,

Maria Alice




quinta-feira, 8 de setembro de 2022

"God save our gracious Queen."

 



Quem me conhece sabe o quanto sou admiradora da Rainha Elizabeth! Eu costumava dizer que quando o mundo - e  também  o meu mundo particular -  parecia caótico e sem sentido, ter certeza da presença dela era a ordenação necessária para que tudo voltasse ao normal possível e suportável.

Her Majesty. Setenta anos de reinado. A primeira coroação transmitida pela TV. Testemunhou as grandes transformações do seu tempo. Viveu os períodos das maiores mudanças. Elo entre o passado glorioso e o presente incerto. 

Her Majesty. Digna. Altiva. Elegante. Discreta. Gentil. Alegre. Admirada. Respeitada. Reverenciada.  

E acho que é por isso tudo que sou súdita leal e assumida. Preciso de mitos que elaborem o que a lógica nem sempre explica. Preciso de mitos que assegurem que tudo tem o seu momento, o seu lugar, a sua linguagem. Não é essa, afinal, a função dos mitos?   

A Rainha Elizabeth personificou os protocolos e os cerimoniais. Com eles, o apaziguamento de conflitos e o despojamento dos interesses e vaidades. Nos rituais rígidos e metódicos, a estabilidade, a segurança, a normalidade. Na sua majestade, a capacidade de adaptar-se aos tempos sem fraquejar e sem deixar de cumprir o seu papel.

O mundo perde hoje a sua Rainha absoluta e insubstituível. Uma Era se encerra. Gloriosa, vitoriosa, digna. Em tempos tão difíceis e com tantas indignidades e falta de grandeza, o exemplo da Rainha fará muita falta.  Uma nova Era  se inicia. Diferente, incerta, frágil.

E eu? Particularmente? Perco Mi Reina, My Queen. E sinto uma certa vertigem. Medo de pisar no chão cambaleante, daqui por diante, e tatear a  sua não-presença para me garantir que tudo segue bem no  mundo.   

Encerro com um dos seus maiores ensinamentos: "It has been women who have breathed gentleness and care into the harsh progress of mankind." .