sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Dois Papas. Indulgência e Redenção.










"A confissão limpa a alma do pecador, mas não ajuda a vítima." (Jorge Bergoglio, em Dois Papas).


Talvez não haja, em toda a história da humanidade, figura mais simbólica de poder do que o Papa. O Papa abarca  não uma, mas TODAS as esferas de poder. O Papa exerce influência espiritual, política, jurídica, social e até científica. O Papa pode atuar nas questões mais complexas e mediar os conflitos mais inconciliáveis. O Papa pode construir pontes de convivência ou muros de intolerância.

Em volta da figura poderosa do Papa, a Igreja Católica construiu um Império  potente, combatente e suntuoso. Mais  do que qualquer outro! E com ritos de majestade e opulência que sempre impuseram respeito e temor. A Igreja intimida. Faz-nos  frágeis, dependentes,  insuficientes.

A Igreja foi absolutamente competente em manter-se forte e dominante ao longo de 2000 anos. Mesmo às custas de episódios  obscuros e violentos, impôs silêncios, exigiu reconhecimento. Em nome de Deus, tudo era permitido e justificável.

Mas o final do século XX alterou a onipotência inquestionável da Igreja. E, em linha com questionamentos sobre éticas, condutas, abusos, etc, a sociedade moderna passou a criticar - e a cobrar - admissão de culpa e ações contra os abusos financeiros, sexuais e humanitários fartamente conhecidos - e nunca punidos - pelos seus representantes.

Indulgência e Redenção. É nessa dicotomia que Dois Papas se apoia para apresentar um filme, antes de tudo, de uma delicadeza tocante. Delicadeza necessária em tempos tão raivosos. Delicadeza sensível para tratar de temas tão controversos.

O encontro raríssimo entre dois Papas: o que renunciaria e o que o substituiria. O alemão Joseph Ratzinger de um lado, o argentino Jorge Bergoglio de outro. Um conservador e determinado a manter as mesmas bases de poder de um lado, um progressista e disposto a promover mudanças de outro. Um pela indulgência. Outro pela redenção.

O maior mérito do filme é humanizar a figura divinizada dos Papas. Ao mostrar as respectivas motivações, dúvidas, conflitos e limitações, o preto e branco abrem-se em cinzas profundos. A fé em si, o exercício individual dessa fé e o gerenciamento dessa fé ganham nuances contrastantes e compreensíveis.

Papa Bento XVI e Papa Francisco. Dois Papas que vivem a contemporaneidade acelerada e de transformações profundas. Um é contido, solitário, erudito, convicto, inflexível. O outro é expansivo, com senso de humor ("sou argentino. Tango e futebol são compulsórios."), sociável, humilde, flexível. Entre os dois, - em em visões antagônicas -  a responsabilidade e o futuro da Igreja.

Anthony Hopkins e Jonathan Pryce estão simplesmente sensacionais! Mestres da atuação! Que experiência vê-los nas cenas! Impossível não destacar a cena das confissões... Quanta beleza nos olhares e gestos...

Os diálogos são maravilhosos! Que roteiro! Que conteúdos! Quantas reflexões atuais e pertinentes! Tão necessárias!

Que cenários! Jardins, Vaticano, Capela Sistina. Que ambientação! Que reprodução do luxo, da opulência, dos rituais!


















Que referências musicais inesperadas! ABBA, Beatles,  Mercedes Sosa, Besame Mucho, e por aí vai. Que salada mista deliciosa!

Que belíssima  direção do Fernando Meirelles! Madura, sagaz, fluida!

Ainda que a maior parte das situações sejam ficcionais, a pertinência do confronto de ideias, de vocação e de visões abre uma importantíssima porta de discussão. Sobre religião. Sobre política. Sobre humanidades.

E, principalmente, sobre os limites e consequências das nossas atitudes indulgentes e/ou redentoras.



quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Tia Vera.









Tia Vera não era irmã da minha mãe de verdade. Mas era irmã da minha mãe de verdade.  Uma irmã muito próxima, sempre presente, parte indissolúvel da história da minha mãe. Dos meus pais. Da nossa. Da minha.

Tia Vera não era minha tia de verdade. Mas era minha tia de verdade. Uma das maiores referências de tia que tive. E cuja presença me marcou em todas as fases da minha vida.

Tia Vera era linda! Chique. Elegante. Sempre impecável. Dos pés à cabeça. Acordava já arrumadíssima! Nenhum fio de cabelo fora dol ugar. As unhas sempre feitas. A roupa sempre adequada. E sempre com joias. Aliás, acho que não houve casamento mais feliz do que ela e as joias. Completavam-se. Entendiam-se. Uma sempre valorizava a outra.

Tia Vera tem a casa mais linda que já conheci! De um bom gosto incomparável! Cada canto, cada peça, cada objeto, cada detalhe de encher os olhos! Peças belíssimas! Composições de pura arte. Uma casa tão bela quanto acolhedora. Uma casa onde sempre me senti em casa. E que me maravilhava pela beleza e sofisticação.

Tia Vera tinha uma personalidade forte. Muito forte. Marcante. E que se impunha. Suavemente. Pensando bem, acho que nunca ouvi a tia Vera falar mais alto ou mais rispidamente com quem quer que seja. A voz era sempre pausada, tom baixo. Mas com muita autoridade. E de senso humor fino e sempre tão pertinente! Era um prazer estar e conversar com ela!

Tia Vera adorava dar ordens! Ela se auto intitulava general. Ria de si mesma  pela patente conferida. E era mesmo um general. Tudo à sua volta funcionava perfeitamente. Não descuidava de nada e de ninguém. Estava à frente de tudo! Era de uma eficiência absurda!

Tia Vera inventou o empoderamento feminino. Mesmo. Se houve uma mulher empoderada, foi ela! Versátil, mil facetas, mil habilidades, mil competências. Mil de tudo! Sem nunca descuidar da família, das amigas, da religião.

Tia Vera passou por perdas profundas. Perdeu um filho, perdeu um genro muito querido, perdeu um neto, perdeu o marido, meu querido e saudoso tio Orlando. Enfrentou cada perda com a altivez de uma rainha e reinventou-se a cada uma, sempre surpreendendo pela fortaleza e capacidade de manter-se firme, inteira.  Pela e para a família.

Tia Vera e minha mãe são amigas há 70 anos. Uma amizade mais longeva do que a vida de muitas pessoas. Meu pai e meu tio trabalhavam juntos e eram amigos antes mesmo de se casarem. Meus pais se casaram num janeiro e tia Vera e tio Orlando em dezembro do mesmo ano. Meus pais tiveram 5 filhos; eles tiveram 6. E assim crescemos nós, os filhos, construindo, nos laços dessa amizade tão rara, nossos próprios laços de afeto. E assim ganhamos esses primos de vida, a quem amamos profundamente!

Tia Vera foi a porta de entrada na nossa mudança para São Paulo em 1978. Foi a guia da minha mãe. Ensinou o caminho das pedras. E trouxe para a vida da minha mãe outras tantas amigas... Amigas  que também adotamos como tias e de quem também herdamos primos e primas tão queridos!

Tia Vera foi a mão que segurou a mão da minha mãe quando o meu pai morreu. Mão que nunca largou. Nunca se largaram. Nunca. Mãos atadas, preocupadas, confortadoras. Mãos habilidosas que crochetavam incessantemente enquanto teciam e curavam suas dores e saudades.

Passei muitas férias na casa da Tia Vera. Ia com eles pra Campos de Jordão. Namorava o vizinho. Divertia-me com os amigos. Tantas ótimas lembranças... E a minha tia general sempre dando as ordens: "Maria Alice, vista assim, não vista assado." "Maria Alice, precisa fazer com que sua mãe faça isso, ou aquilo." "Andréa, precisa chamar o padre para dar benção à sua mãe." "Andréa, já falou com o padre?" "Maria Alice, falei com a Andréa, mas ela não chamou o padre. Precisa." E agora, mais recentemente, "Andréa precisa cortar o cabelo." "Maria Alice, você não pode deixar o cabelo grisalho." Quem conhece a tia Vera pode até ouvir o tom com que ela fazia esses comentários!

Tia Vera teve um AVC há alguns anos. Recuperou-se, ainda que não totalmente, com a determinação e amor à vida que sempre demonstrou! Minha mãe, por sua vez, cada vez vai ficando mais frágil... E meu coração se enche de amor lembrando-me das duas, principalmente nesses dois últimos anos, visitando-se com todas as limitações físicas e mentais, mas querendo estar juntas, dando-se as mãos nunca desatadas, estando. Estando. Do lado. Ao lado. Onde sempre estiveram. Como sempre estiveram.

Tia Vera nos deixou na última terça-feira. Perdeu uma longa batalha que travava há seis meses. E nossos corações se apertam, tomados de imensa tristeza...

O mundo fica menos chique. Menos elegante. Menos poderoso.

E a mão da minha mãe fica solta... Ela, ainda que não saiba, - felizmente! - perde a sua maior e melhor amiga...

E nós todos, os 5 de cá e os 5 de lá, estendemos os nossos  corações para que essa linda história de amizade se perpetue em nós!