Ali ali só ali se se alice ali se visse quanto alice viu e não disse se ali ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da alice só alice com alice ali se parece (Paulo Leminski)
segunda-feira, 26 de agosto de 2019
Marmitas.
Já me despedi do Daniel centenas de vezes. Pequenas despedidas quando, em pequeno, dormia na casa de amigos ou viajava com suas famílias. Ou quando, já adolescente, viajava sozinho com amigos. A primeira separação efetivamente doída foi quando passou o Ano Novo longe de nós pela primeira vez. Nessa época, alugávamos casa em Juquehy e Daniel e Marina chamavam amigos para ficarem conosco. Naquele ano, eles alugaram uma casa na praia vizinha: ele e os amigos lá; nós cá. A partir daí, foram sequências de despedidas. Daniel viajava muito com os amigos. Sabe-Deus-Por-Onde. Carnavais, férias, reveillons. Sempre em alegrias. Sempre em preocupações.
Os intercâmbios também foram despedidas marcantes. Três meses em La Rochelle e oitos meses em Paris. Crescimentos indescritíveis. Pra ele e pra mim. Conviver com a ausência física, encarar o quarto vazio e entender que não saberia, nunca mais, exatamente o que ele via, vivia e sentia. Todas as experiências deixavam de me pertencer. Eram dele, só dele. E estabeleceu a posição marginal que tive que aprender a ocupar.
A separação mais determinante foi quando ele saiu de casa em definitivo. Arrumar a nova casa, tentar reproduzir, minimamente naquele novo espaço, organização e rotinas do espaço anterior, original. Na garagem, depois de deixar as últimas malas levadas de cá pra lá, choramos. Eu e ele. A ruptura é forte.
Daniel morou em três casa desde então. E participei ativamente de todas as mudanças, tentando colocar em cada arrumação, em cada cantinho, um pouco da maternidade que sobra depois que eles saem de casa.
Esse amor maternal "excedente" é diferente, muito diferente da depressão da tal "síndrome do ninho vazio". Não tive/tenho tristeza alguma pelos meus filhos saírem de casa. Pelo contrário. Acho saudável, revigorante e, na verdade, evita o desgaste da relação entre adultos que dividem o mesmo espaço. Os laços familiares são outros. Não há mais o "educar", "ensinar", "cuidar para sobreviver". Há apenas o amor acima de tudo. E esse amor, de ambos os lados, precisa de espaço para crescer e se modificar.
Mas, ainda assim, esse amor maternal não se acalma nem esgota. E procura pequenas brechas para se infiltrar e fazer-se presente, necessário. Não invasivo nem sufocante. Mas ali. Atento. E pronto. E lava roupas, compra agrados, controla-se para não ligar todo dia, tenta acompanhar, aprende assuntos novos. E faz marmitas.
Marmitas. Horas na cozinha preparando sopas, feijão, carnes, frangos, lasanhas. Cuidadosamente separadas em embalagens individuais e sacolas térmicas que demoram a voltar. Quando voltam. A certeza absoluta de que, sem elas, as marmitas, ele não sobreviveria. A garantia da comida que alimenta , sem dúvidas, mais o amor maternal excedente do que o estômago propriamente dito do filho.
Sábado, despedi-me, mais uma vez, do Daniel. Ele foi para Nova York fazer um curso na área de teatro. A princípio, por dois anos. Mas impossível prever o que acontecerá a partir dessa experiência e das oportunidades que surgirão. Espero que muitas!!!
Educamos Daniel e Marina na mais absoluta convicção de que eles podem ser tudo o que quiserem. E que o mundo é pequeno ou grande somente através de seus olhares. Não educamos filhos atados ou inseguros. Vê-los arriscar, ousar, enfrentar é bom e motivo de muito orgulho. E de igual preocupação.
A despedida foi aos poucos. Doses homeopáticas. Preparada. Da confirmação do curso ao aeroporto. Da documentação necessária ao desmonte do apartamento. Revirar com ele, cada papel, cada peça de roupa, cada memória. Decidir o que levar, o que doar, o que guardar. A dificuldade dele em abrir mão das memórias que ele construiu naquele apartamento juntamente com a minha dificuldade com as minhas próprias memórias. Reais e simbólicas. Um apartamento vazio. E tão cheio.
Claro que choramos no aeroporto. Eu e ele. Claro que não foi fácil vê-lo cruzar o portão e sair das minhas vistas. E, ao mesmo tempo que vibro por ele, já pressinto o espaço vazio. O espaço dos almoços às quartas-feira, dos feriados, dos aniversários, dos Natais, Páscoas, etc. Não conheço ainda esse vazio. E, ainda que - GRAÇAS A DEUS!!! - vivamos em épocas de whatasapp e facetime, já o temo.
E por mais que negue ser o tipo de mãe que "sofre" a ausência dos filhos, acordei domingo com dor de garganta e dor no corpo. E com um oco na barriga. E olhei o armário onde guardo todas as embalagens das marmitas que preparava pra ele. E o oco da barriga aumentou. Esse deve ser o oco da fome.
sábado, 10 de agosto de 2019
Tutankáton. "Tudo já existiu alguma vez".
"Deixai que o espírito do tempo se instale esta noite entre nós, abandonai-vos à sua magia e a seu comando inexorável."
E é com esse convite irrecusável que voltamos ao Egito Antigo de 1300 a.C., durante o reinado do faraó Tutankáton.
O "Faraó Menino" era filho de Akenaton, o faraó que instituiu a primeira experiência monoteísta da História. Sob sua rígida determinação, o politeísmo foi extinto e Áton, o disco do Sol, passou a ser o deus único do Egito.
Tutankáton herdou de seu pai um Egito fragilizado militarmente e em meio a grande insatisfação de todos so segmentos do poder, extendendo-se ao povo que não abandonava sua tradição politeísta. Epidemias, revoltas, invasões e tragédias pessoais, atribuídas à vingança dos 2000 deuses renegados, fizeram com que o faraó retomasse o politeísmo e promovesse Amon a deus dos deuses.
De Tutankáton a Tutankamon. E passou, assim, à História, como o maior dos faraós e em cuja tumba foram encontrados tesouros intactos capazes de reconstituir parte da história egípcia.
Otávio Frias Filho escreveu Tutankáton cinco anos após a queda do Muro de Berlim e o colapso do socialismo soviético. Trinta anos depois, o texto impressiona pela modernidade e pertinência às questões atuais.
A alegoria do Egito Antigo provoca a reflexão sobre o risco e horror da História Única. Questiona muros atuais, intolerâncias, extremos, preconceitos e manipulações. Alerta, sobretudo, sobre o perigo de se apagar a História e impor outra, escolhida como verdadeira e absoluta. E não é o que temos vivido?
"Que os velhos livros sejam lançados ao oceano, que ardam todas as relíquias! Edifiquemos pirâmides de ponta-cabeça e inventemos até mesmo uma nova forma de andar, se necessário, para que em nossos filhos não reste sequer um traço a recordar o passado."
A diretora Mika Lins , amiga pessoal do Otávio Frias Filho, homenageia o dramaturgo com a montagem de sua peça inédita, e nos presenteia com um belíssimo passeio pelo deserto do Egito Antigo!
A Mika tem uma capacidade incrível de produzir cenários e figurinos minimalistas e absolutamente potentes! Na impecável montagem, o cenário é assinado por Laura Vinci e composto apenas por caixotes de madeira de vários tamanhos e formatos. Alguns acomodam sugestões de obras de arte cuidadosamente embaladas, em referência ao cuidado com que esses tesouros foram protegidos contra guerras e bombardeios. Espalhados ao longo do palco, reproduzem as grandes distâncias impostas pelo deserto, e situam o público dentro de um museu. Assim, o espaço físico ganha uma solução eficiente e instigante.
O figurino também segue o estilo da Mika. A figurinista Joana Porto apresenta referências egipcias e africanas em estampas belíssimas e sem contrastes de cor. Tudo é sóbrio, monocromático. Destaque para o lindíssimo adorno de cabeça da Rainha Ankesen. A maquiagem é muito discreta e os dourados espalhados cuidadosamente pelos corpos e, principlamente dedos, remetem à riqueza e luz. Lindo efeito!
A iluminação de Caetano Vilela é de um efeito solar impressionante!
O grupo de atores, todos negros e de faixas etárias variadas, é muito talentoso e de dramaticidade correta. Tanto no gestual quanto no verbal, o tom é coerente e uniforme. Respeitoso. Percebe-se um respeito ao texto, cujo estilo clássico situa-se no limite entre declamação e interpretação. Vence a interpretação, ainda que com toques declamatórios. Mika foi extremamente feliz em atingir esse equilíbrio nada fácil.
Menção especial à atriz Bete Coelho, a vidente cega ao melhor estilo Tirésias de Odisseia. Atravessando toda a extensão do palco enquanto profere suas trágicas profecias, Bete dá um show de talento! E estabelece a linha condutora entre o real e o profético. Que personagem!
Tutankáton é uma aula de História e de como se contar uma história. Com palavras e no palco.
Essa é a beleza maior do teatro. Produzir palcos. No palco, tudo é verdade. Sagrada. Como divindades. Uma ou 2000. Melhor 2000. Verdades únicas são mentiras.
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