segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Ubu Rei. Delírio Tropical.


 "E o direito ilegítimo que eu tenho? Não vale nada?"





Alfred Jarry, dramaturgo francês e um dos maiores inspiradores do surrealismo e do teatro do absurdo, estreou "Ubu Roi", sua principal obra, em Paris, em 1896.  A atonicidade com a proposta tão fora do padrão foi tamanha, que as vaias e repúdio do público mantiveram a encenação fora dos palcos por 10 anos!  

Tive a imensa sorte de assistir à  primeira montagem da peça no Brasil em 1985! Ubu/Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes, do grupo Onitorrinco, foi protagonizada por Cacá Rossetti. Cenário e figurino assinados por Lina Bo Bardi. Com  linguagem ousada, irreverente, transgressora e instigante, a peça ficou em cartaz por anos e sucesso absoluto de crítica e premiações. O bordão "Eu não tô legal" fez parte de toda essa geração! Que experiência teatral! 

Rei Ubu tornou-se personagem famoso no cenário paulistano da época. A melhor história foi durante o plesbicito de 1993, ao apresentar-se como defensor a Monarquia e exigir que o Príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança, não sem tumulto e constrangimento, aceitasse o encontro entre os dois Chefes de Estado. 

Tive também a imensa sorte de assistir à  magistral interpretação de  Marco Nanini  na pele do Rei  Ubu,  na celebração dos 50 anos de sua carreira, em 2017 A proposta dessa montagem foi menos transgressora,  e mais revestida de humor refinado e frescor revigorante. A modernidade do texto permitiu , sem qualquer esforço, um passeio leve, sagaz, ácido e análogo à sordidez e mesquinharia do poder corrompido e corruptor. "Pelos chifres que carrego na cabeça" foi o bordão que marcou essa montagem de celebração!

E tive, por fim, a imensa sorte de assistir, ontem, à surpreendente montagem de Ubu Rei com o grupo Os Geraldos e direção de Gabriel Villela! 





O texto atemporal e visionário de Alfred Jarry parece ter sido escrito sob medida para testar as possibilidades e a genialidade do Gabriel!  O cenário histórico de preocupante regressão a governos totalitários, extremistas e antidemocráticos é um convite ao deboche e escracho tão bem dimensionados no palco. O absurdo da realidade é fonte inesgotável para o absurdo do  teatro! E cada nuance, cada brecha e cada descuido são  explorados e deliciosamente oferecidos! O resultado é uma experiência de leitura do nosso tempo mais típica da crônica, mas temperada pelo humor caricato que quase nos liberta dos tempos sórdidos ainda tão recentes! 

A assinatura do Gabriel está em tudo! O cenário é montado e desmontado pelos próprios atores, sinalizando a mudança de cada ambiente com muita eficiência e pontuando o caráter ficcional da obra. 




Os figurinos, como sempre, são personagens vivos e ativos! São tantos detalhes! São tantas referências!  As golas elizabetanas estão sempre presentes! Destaco o trabalho em crochê por baixo das roupas do Pai Ubu! Tão mineiro! Tão "manual"!




E, claro, a trilha sonora que sempre encanta e costura o enredo,  e flui, como águas caudalosas dos rios mineiros, para revolver as  nossas emoções! "Disparada" abre, seguida de "Viola enluarada". Quase chorei! Lindo demais! E segue até "Bella Ciao" e  "El pueblo unido jamás será vencido"! Cancioneiro de riqueza incalculável!

Não conhecia o trabalho de Os Geraldos! Que grupo maravilhoso! Que atores talentosos! Quantas habilidades!!! Destaque especial para a atuação do "Bostadura", que interpreta a forma de falar do nosso ex-presidente com perfeição!




O maior mérito da montagem do Gabriel foi ambientar a Polônia no Brasil. E adaptar o texto original aos desmandos do último governo e todos os absurdos que tivemos que engolir! O casal Ubu em lutas antiéticas e antidemocráticas para tomar o poder e instaurar a barbárie é o espelho do que vivemos. Tudo de forma sarcástica, exagerada, crítica! As personagens obscuras da nossa política recente estão todas lá! Dos 4 filhos do ex-presidente à deputada Carla Zambelli. 




Gostaria, ainda, de destacar dois elementos. O primeiro é a caracterização do Pai Ubu e a Mãe Ubu de forma altamente sexuada! Os enormes orgãos genitais à mostra fazem o ponto, constroem o simbólico principal definido pelo diretor. O segundo elemento é o empoderamento da Mãe Ubu e a "bestialização" do Pai Ubu. Mãe Ubu não é submissa! Defende-se, opõe-se, situa-se, cobra, inferioriza, ocupa. Essa faceta é nova quando comparada às montagens anteriores. 





E, por fim, queria destacar o momento lírico e tão belo... A morte da consciência. A consciência personificada como mulher, como fauna e flora tropical, desprotegida... E que sucumbe... Um lindo momento poético e melancólico... 




E viva  o teatro!  E viva a sua missão alegórica, fantasiosa e profana de cruzar as linhas da imaginação, da identidade e da emoção!