segunda-feira, 18 de julho de 2016

Pampulha.

"Não é o ângulo reto que me atrai, nem a curva reta, dura, inflexível criada pelo homem, o que me atrai é a curva livre e sensual que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos rios, das ondas do mar, no corpo da mulher preferida, de curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein." (Oscar Niemeyer)





 Quando eu era pequena e morava em Belo Horizonte, meu pai resolveu comprar um terreno na Pampulha. Era um terreno de esquina, cercado por arame farpado, e a algumas quadras da lagoa. O plano era construir uma casa lá em algum momento. Naquela época, a Pampulha, embora ainda afastada, já era uma extensão viável da cidade e morar lá já não soava como um absurdo.

Íamos muitas vezes, nos fins de semana, passear na Pampulha e visitar o terreno.  Lembro-me de uma vez em que  encontramos um ninho de passarinho num galho de arbusto! Foi o primeiro ninho que vi na vida e uma descoberta fenomenal! A partir dai, nossa expectativa era de sempre encontrar um novo ninho, o que, lamentavelmente, nunca aconteceu. Mas não importava. Descer do carro e correr à procura de um ninho valia a  visita!

Visitar a Igrejinha e correr e brincar ao seu redor às margens da lagoa e tomar caldo de cana na pracinha em frente era o ritual.  A gente adorava ver as tiras de cana sendo prensadas para extrair o caldo. A gente adorava também chupar o caldo direto das canas cortadas!

Na minha ignorância infantil, aquele lugar nada mais era do que nosso passatempo de fim de semana! Não podia imaginar, ao correr e brincar ao redor da Igrejinha ou recostar-me nos seus azulejos, estar diante de uma obra arquitetônica de tal magnitude! Essa consciência veio anos depois, apenas muitos anos depois!

Ontem o Conjunto Arquitetônico da Pampulha foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade. Idealizado pelo então prefeito Juscelino Kubitschek nos anos 40, o projeto era transformar a lagoa urbana represada de pequenos córregos em centro de lazer e turismo: um cassino, um clube, uma casa de bailes, uma igreja e um hotel. Do projeto inicial, apenas o hotel não foi construído.

O arrojado projeto foi encomendado ao jovem arquiteto Oscar Niemeyer e contou com as participações criativas de Burle Marx e Candio Portinari.  A modernidade das curvas e do uso do concreto causou um enorme impacto na época e constituiu-se como marco da arquitetura mundial.

O cassino, desativado em 1946 com a proibição de jogos no Brasil, hoje abriga o  Museu  de Arte da Pampulha. O Iate Cube, simplesmente PIC na minha infância, ainda é um dos clubes principais e sua desapropriação está sendo discutida. A Casa do Baile, palco de festas da alta sociedade, é hoje um Centro que discute Arquitetura, Urbanismo e Design.

Mas, sem dúvida, o maior legado é a Igreja de São Francisco de Assis, mais conhecida como Igrejinha da Pampulha e que de Igrejinha não tem nada! Igrejão como poucos! Com suas curvas, seus azulejos, e seus painéis impressionantes! Incrível pensar ter ficado tantos anos proibida ao culto pelo tradicionalismo das autoridades eclesiásticas...

A manutenção do título, no entanto, depende de algumas exigências nos próximos 3 anos. Entre essas exigências, a conservação das construções originais e a limpeza da lagoa. Sem muita tradição na reservação dos nossos acervos e diante da crise que vivemos, difícil acreditar que  essas exigências serão atendidas. Apenas recentemente os painéis  da Igrejinha, por exemplo, foram vandalizadas.

Torço pelo sucesso dos esforços! Torço pela preservação do nosso patrimônio! Torço pela consciência da nossa excelência criativa!

E encho-me de orgulho pela Pampulha que permanece intacta  na minha memória com encantamentos de  ninho de passarinho, gosto de cana e brincadeiras infantis!






quarta-feira, 13 de julho de 2016

It is only rock 'n 'roll (But I like it).

 "Quem é ele?... Quem é ele?... Esse tal de Roque Enrow!... Um planeta, um deserto... Uma bomba que estourou... Ele!... Quem é ele?... Isso ninguém nunca falou!..." 

(Esse Tal de Roque Enrow - Rita Lee)






Em 13 de julho de 1985, o primeiro Live Aid, organizado por Bob Geldof, aconteceu simultaneamente no Wimbley Stadium em Londres e no JFK Stadium na Filadélfia e   foi, certamente, o maior show de rock da história!

Os maiores nomes do rock mundial se reuniram em 16 horas de show televisionadas para 140 países, com cerca de 2 bilhões de espectadores. Mais de 150 milhões de dólares foram arrecadados e revertidos para fundos de combate à fome e à miséria na África.

As memórias ainda ecoam  com o  coro das centenas de milhares de vozes acompanhando Joan Baez em Amazing Grace. E com Sir Paul McCartney e Sir Elton John cantando juntos. E com Queen abrindo o seu show com Bohemian Rhapsody sob ovação eletrizante. E com Bob Dylan partindo a corda de sua guitarra e Ronnie Wood cedendo a sua, continuando a tocar, ele próprio, air guitar. Como esquecer o fechamento em Londres com "Do They Know It's Christmas?" e nos EUA com "We Are The World"? Um daqueles momentos que agradeço - de joelhos - ter testemunhado!

Irônico pensar que justamente o transgressor estilo musical , tantas vezes chamado de "música do diabo" , tenha sido o mobilizador - entre artistas e público - para talvez a maior atitude de solidariedade e humanidade de todos os tempos!

Independente de todas as variações, fusões, difusões, confluências e influências sofridas desde a sua origem nos anos 50, o bom e velho Rock 'n' Roll continua a formar gerações e nunca perdeu o seu vigor! Ainda é o estilo que continua a mudar o mundo. Acordes, instrumentos, comportamentos. Ousa e experimenta. Rompe, desconstrói, reconstrói. Continua indefinido, inspirador e polêmico. E nem sempre compreensível.

Mas sempre rolling. E rocking.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Carta para Daniel.

São Paulo, 11 de julho de 2016.

Daniel, meu filho:

Hoje você completa 29 anos. Repito esse número várias vezes para que ele se torne real. Porque, na verdade, não sei quando e como esses 29 anos passaram.

E sinto uma urgência que nunca senti antes ao comemorar os seus aniversários anteriores...Acho que é porque 29 é  o último antes dos 30. E por alguma razão que não sei explicar, acredito que tudo muda aos 30!   Bobagem, eu sei. Mas sinto assim. E então reviro nossa história, nossas histórias, aflita, procurando incompletudes. Tento esgotar o que ainda não se esgotou. Será que te ensinei tudo o que importava? Será que te contei tudo que queria? Ou que precisava?

E então me dei conta que talvez não tenha te contado justamente os detalhes do dia em que você nasceu. Não de propósito. Muito menos  por esquecimento. Apenas porque nunca me pareceram mais importantes  do que  todo o resto do que você já viveu. Nós já vivemos. Ou, pensando melhor,  talvez egoisticamente,  por achar que  os detalhes desse dia me pertenciam. A mim apenas. Mas hoje percebo que são tão seus quanto meus. E eles iniciam e determinam a nossa história juntos.

Que você nasceu em 11 de julho, você bem sabe. 1987. Mas algum dia te contei que era um sábado?

Naquele sábado, 11 de julho de 1987, José Sarney era presidente do Brasil, Orestes Quércia era governador de São Paulo e Jânio Quadros era prefeito. Que trio, não? Talvez explique eu ter vomitado religiosamente todos os dias da gravidez.

Mas naquele dia em especial, eles não tinham a menor importância e nem me lembrei deles quando acordei cedinho e percebi que você ia nascer. Muito antes da hora. Fiquei tão nervosa!

Naquele sábado, 11 de julho de 1987, a inflação anual chegava a 186%. Você consegue imaginar isso?

Mas o que me preocupava e me fez chorar todo o caminho até o São Luiz era você não ter enfeite de porta ou lembrancinhas de  maternidade. Ainda não tinha  comprado e você chegou tão antes da hora... O desespero pelo enfeite e pelas lembrancinhas escondiam o meu medo que algo te acontecesse...  Felizmente, a Tina providenciou tudo e você teve um lindo balão colorido pendurado na porta e lindos pirulitos coloridos de lembrancinhas.! Acho que foi nesse momento que a Tina passou a sempre te ajudar em tudo que você deixa pra última hora!

Naquele sábado, 11 de julho de 1987, Nelson Piquet fez o melhor tempo no treino do circuito de Silverstone na  Fórmula 1. Na corrida mesmo, no dia seguinte, ele ficou em 2º lugar e Ayrton Senna já liderava o campeonato.

Mas eu esperava você nascer, contração após contração. E você não nascia... Até que depois de algumas horas, e para evitar mais perda de líquido, foi necessário fazer uma cesárea. Não que eu me importasse. Eu queria o que fosse  melhor pra você. Além, te confesso, de implorar por  uma anestesia fulminante!

Naquele sábado, 11 de julho de 1987, comemorava-se 50 anos da morte de George Gershwin.

Mas a música que eu ouvia  no centro de obstetrícia era o falatório  e os risos da equipe. Ouvia falarem comigo, mas não lembro o que. Tudo parecia muito distante. Lembro que era tudo muito claro e com muitas luzes. Lembro do anestesista atrás de mim, afagando a minha cabeça e me acalmando. Ele tinha uma voz tranquila e me fez sentir bem. E ouvia o Arnaldo, o meu obstetra, narrar a sua chegada. Não sei se respondi alguma coisa ou só ouvi. Só sei que foi rápido. Muito rápido.

E você nasceu! Às 16:00 hs. Em ponto. Assim.  Como consta na sua certidão de nascimento. Sempre achei essa precisão extremamente significativa. Não te parece que  não ter minutos na sua hora de nascimento significa alguma coisa importante?

Ainda ouço o seu choro. Ficou gravado pra sempre nos meus ouvidos. Lembro do Arnaldo confirmando que era um menino (a gente já sabia pelo ultrassom). Lembro do anestesista me tranquilizando que você estava bem. Colocaram você do meu lado e pude ver o seu rostinho.   E eu chorei. De alegria. De imensa alegria. De nervoso.  De medo de você ter algum problema. Você era tão pequenininho... 44 cm. 2,240 kg. Alguém da equipe te levou. O anestesista, ainda me acalmando, explicou que tinham mesmo que te levar pra pesar, medir, e limpar. Não me lembro o nome dele. Queria me lembrar. Mesmo. Em alguns momentos ele segurou a minha mão. Acho horrível não lembrar o nome de quem segurou a minha mão quando o meu filho chegou ao mundo.

E foi então que aconteceu o que você talvez não saiba. Ou talvez saiba. Ou ninguém saiba. Não que seja segredo jurado. Mas é segredo tácito. Assimilado. Herdado. Só as mães sabem. Ou só eu sei. Eu e o Arnaldo. Não sei  sobre as outras mães e seus médicos. Mas sei sobre mim e o Arnaldo.

Naquele sábado, 11 de julho de 1987, no momento em que você nasceu,  algo muito misterioso aconteceu naquele centro obstétrico. Mágico. Mais mágico do que misterioso.  Eu não lembro claramente, porque estava sob efeito da anestesia e tomada por tanta emoção. Por muito tempo, achei que tinha sido imaginação. Ou cisma. Ou alucinação. Talvez aquele anestesista tenha colocado algum alucinógeno na composição. Será que todos colocam? E é por isso que a gente lembra-mas-não-lembra?

Mas há algo nas salas de parto que escapam da compreensão. Não, nada de sobrenatural. Muito menos de magia negra. Não, nada disso. Mas obstetras, anestesistas e bebezinhos quando nascem têm um combinado. Tenho certeza disso.  Você não precisa confirmar nada. Basta ficar em silêncio e saberei que é verdade. Ou não. Não diga nada. Nem sinalize. Não preciso saber. Eu sei.

Acho  que todo bebê quando nasce traz lá de onde vêm olhos novos de presente pras suas mães. Entrega pro obstetra e o obstetra faz a troca. E acho que é o bebe que traz mesmo. Duvido que o obstetra tenha um banco de novos olhos. Porque só aquele bebê sabe como gostaria que sua mãe passasse a ver o seu mundo. Só pode ser , porque nunca mais vi as coisas da mesma forma. Na verdade, passei a ver tudo como se estivesse vendo pela primeira vez. Tudo que eu via e sabia antes era outra coisa. Outras cores, outro mundo, outras importâncias.  Passei a ver perigos. Muitos. E encantamentos. Muitos. Esses meus novos olhos eram muito mais atentos, mas muito mais chorosos. Queriam ver tudo à frente, mas sempre embaçados. Olhos exageradamente protetores. Até demais. E demasiadamente  derretidos. Até demais. E foram esses novos olhos que aprenderam a ver esse novo mundo junto com você. Não sei o que fizeram com os meus olhos antigos. Não sinto falta deles. O meu novo olhar me fez/faz  muito mais feliz e, ainda que nem sempre veja o mesmo que você, ou como você, por mais que eu tente,  o que vejo é muito mais belo!

Mas o mais impressionante mesmo que transcorre naquela sala é o transplante de coração.  Não vi e nem senti, por isso não posso jurar, mesmo porque nem tenho cicatriz, mas tenho certeza absoluta que transplantaram o meu coração. Não, não ria. E nem me olhe com esse seu ar de deboche. OK, pode não ser exatamente transplante.Mas algum tipo de extensão. E wireless ainda por cima! Com esse fio invisível enorme. Esticado de dar volta ao mundo. Várias vezes. E sem romper. Não tento mais entender. Só sei que é assim. Foi assim. Pois desde aquele momento em que ouvi o seu choro, e te colocaram pertinho de mim, e te levaram para pesar, medir e limpar, meu coração nunca mais bateu no meu peito. Exagero? Sim, eu sei que ainda fiquei com um coração. Ou algum substituto. Bem genérico. Que bate, compassa, me mantém viva. Mas o coração mesmo, aquele que se alegra, se entristece, aperta, vibra, sente raiva, dor,  orgulho, aumenta, alarga, expande, inunda,  e ama, ama, ama, passou a bater fora de mim. Em você. Com você e por você. Nunca mais foi meu.

E tem sido assim desde então. Esse coração fora de mim não tem sossego. Mas, ao mesmo tempo, tem serenidades indizíveis. Um coração heroico. Sobrevivente. Mas acho que tem um dedinho de anjo da guarda também, porque acho que sozinho ele não dava conta. Um coração que vai tão longe quanto mais longe você também vai. E fica esperando, torcendo, tentando sentir igual. Ou pelo menos, entender. Acompanhar sua independência. Deixar ir, afastar. Mas nunca tanto. Só o suficiente. Claro que mais por mim do que por você. Mas não te parece justo?

E olhando essa nossa foto juntos, penso nos seus 29 anos. E  que a partir dos 30 tudo muda. Bobagem, eu sei.  Mas sinto assim. E então desejo que você e eu lembremos, sempre, de todas as nossas conversas mudas. As que nunca precisaram de palavras. As que vêm  desses olhos que você me trouxe quando nasceu. As que fluem pelo fio invisível do meu coração transportado. As que falam amor e cuidado. As que sentem mais do que verbalizam. As que contam, dentro de nós, nossos 29 anos juntos. Os mais felizes da minha vida! Da sua também, claro, pois afinal a sua vida começou ali! Mas eu, que já vivia muita vida antes daquele sábado, dia 11 de julho de 1987, te asseguro: são, sim, os 29 anos mais felizes de todas as existências!

Parabéns, meu filho! Te desejo mais anos de  imensas felicidades ! Te desejo alegrias, realizações, conquistas! Te desejo amigos, quereres, amores! Te desejo  palcos, luzes, aplausos! Te desejo todas as vidas que você conseguir viver e emocionar!

E te desejo, sobretudo,  um pouquinho de toda a  mágica que tomou o nosso mundo naquele sábado, dia 11 de julho de 1987...

Com amor, sempre e para sempre.





domingo, 10 de julho de 2016

Julieta. Dores e cores.

"No te vayas... No quiero que te vayas...  Por que si tu te vas... En  ese mismo instante... Muero... Muero yo..."

(Si No Te Vas - Chavela Vargas)

A escritora canadense  Alice Munro,  primeira  autora de contos a receber o Nobel de Literatura (2013), tem se destacado no cenário literário internacional como uma das mais eficientes tradutoras da alma feminina. Suas protagonistas são, em geral, mulheres simples das pequenas cidades do Canadá e que, a partir de alguma súbita transformação (cultural, circunstancial, morte ou doença), mudam o seu destino ou visão de mundo. Poucas escritoras conseguem, no restrito universo do conto, explorar tão profundamente os contrastes e extremos do turbilhão emocional feminino.

Não é de se estranhar, portanto, que Almodóvar tenha se inspirado em Alice Munro para levar, mais uma vez para as telas,  a sua  já reconhecida tradução do mesmo universo. Com suas fortes cores. Com suas dores. Com sua inegável assinatura.

Em Fugitiva (2004), três dos oito contos de Alice Munro relatam momentos diferentes da mesma protagonista: Julieta. Almodóvar costura os três contos, harmoniza os três momentos e converte as narrativas curtas e fragmentadas em um longa denso, tenso e intenso. Uma jovem professora de filologia  clássica conhece seu futuro parceiro e pai de sua única filha numa viagem de trem.  Ele morre numa tempestade no seu barco de pesca e ela, mergulhada em depressão, vê sua filha se afastar até deixarem de se falar por 12 anos. Adapta-se a essa nova vida ainda que com tristeza contida, até que, ao encontrar uma amiga de infância de sua filha, revive todos as suas culpas, perdas e lutos sem conseguir mais mantê-los na zona do esquecimento salvador.

Almodóvar chegou a cogitar fazer Julieta em inglês e no Canadá. Ainda bem que optou pela Espanha! O colorido latino suavizou a narrativa sombria, além de colocar-nos no conforto da familiaridade com o diretor. Sofremos! Mas em terreno conhecido.

Além do mais,como comparar a potência  sonora de "Voy a contarte todo" com qualquer tentativa de correspondência na língua inglesa? O espanhol de Almodóvar traz  muito mais por trás das  palavras.  Há todo um conjunto de intenções, sotaques, musicalidade, entonações pessoais que contribuem para outros conteúdos complementares à "Voy a contarte todo".

Três décadas desfiam as perdas, sofrimento e amadurecimento de Julieta em narrativa não linear, mas que, ao mesmo tempo, não esconde  nem confunde os mistérios voluntários e involuntários da protagonista. Morte, luto, culpa. Mas em sequências de experiências que não determinam desesperança ou desamparo. Há a convivência do trágico com o possível para a sobrevivência. Há recaídas. Há momentos de felicidade permitida.

Essas alternâncias são brilhantemente  potencializadas pela também alternância entre a madura Julieta (Emma Suaréz) e a jovem Julieta (Adriana Ugarte). Duas atrizes no máximo de sua entrega e com elegância raramente tão óbvia em Almodóvar.  Aliás, elegância talvez seja a palavra que define o filme. Elegância no seu sentido mais amplo. E que abraça o feminino como nenhum outro feminino anterior de sua obra.

Há um quê de Hitchcock  na  líndíssima  e tão emblemática  cena do trem e do cervo, que, no conto original, era um lobo prateado característico do Canadá.

Há um quê de Bergman na conturbada e central relação mãe e filha. Mas o conflito se dá pela ausência e não pela presença. Os silêncios falam muito mais do que qualquer diálogo. Julieta não se assemelha a nenhuma mãe anteriormente construída por Almodóvar. E a maternidade  - seus mitos e também suas dores - se (des)constrói  a partir das fragmentos aos poucos compartilhados. A sombra de Antía é a força vital do filme.

Há muito da identidade do diretor. A começar pela vitalidade dos vermelhos que permeiam o filme. A cena inicial é bela e forte. E já explicita, sem véus,  cor e forma da feminilidade latente, vibrante, pulsante e  fluida de vida. Reconhecemos também Almodóvar nas confissões escritas e de cunho tão pessoal. E a atuação de Rossy de Palma como governanta é outro presente!

Julieta  é uma jornada épica  aos mares da dor, do abandono, das perdas. Não por acaso, o mar é personagem coadjuvante  e um dos elementos simbólicos das tragédias de Julieta. Como Ulisses, Julieta enfrenta seus obstáculos internos e introspectivos para encontrar-se em si mesma.

 Julieta aperta o coração. Suspende a respiração. Solidariza-se na tristeza inevitável que a maturidade contabiliza. E emociona com a belíssima música final!