sábado, 30 de setembro de 2017

Traduttore, Traditore.



Johannes Bramhs compôs Concerto para  Violino -  seu único, e considerado entre os 4 melhores da música alemã - em 1878. 125 anos depois, o pianista croata Dejan Lazic dedicou-se a traduzir este concerto para  piano. O projeto levou 5 anos e tive o privilégio de ver/ouvir o resultado na Sala São Paulo há alguns anos.

Fico maravilhada com essa habilidade tão especial que torna possível traduzir linguagens. Toda e qualquer linguagem. Conhecer tão profundamente técnicas, significados, esquemas simbólicos e modalidades de sentido capazes de preservar o conteúdo, emoção e intenção da criação original, mesmo incluindo conteúdos, emoções e intenções absorvíveis pela linguagem traduzida.

Traduzir é permitir conhecer, entender e vivenciar outras linguagens, outros códigos, outras culturas, outras influências, outras sensações.

Traduzir é construir pontes que transpõem barreiras de comunicação,   aproximam, encurtam distâncias.

Traduzir é fazer o mundo caber nas mãos!


quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Rosh Hashaná.






Rosh Hashaná, o ano novo judaico, celebra a criação do homem. É  tempo de reflexão e observância. Despertar, ao toque do shofar, a consciência sobre o direito de existir à imagem e semelhança a Deus, conferindo ao homem o poder divino de mudar o mundo, seja para construí-lo cada vez melhor e mais bonito, seja para destruí-lo. Livre arbítrio: que nos diferencia de todas as criações.

Atribuir ao livre arbítrio a expressão máxima do Rosh Hashaná significa  assumir responsabilidade sobre as próprias decisões. Para que mais decisões corretas sejam tomadas, é fundamental que cada um se conheça íntima e intensamente  como ser individual com ideias, pensamentos e desejos próprios e escute as aspirações da alma. Nossa alma é o nosso verdadeiro eu e seremos mais ou menos felizes quanto mais atentos e leais formos aos seus anseios.

O livre arbítrio também permite reavaliar decisões que não sejam mais válidas, ainda que já tenham sido um dia. Perdoar e perdoar-se. Começar novo, limpo, inteiro, entregue. Tantas vezes quanto necessárias para a paz interior e para o engrandecimento da existência.

Em Rosh Hashaná, Deus abre o Livro da Vida. Ser inscrito/reinscrito é a verdadeira comunhão da essência judaica!

Não há  imagem mais inspiradora e libertadora! Livros são guardiões. Confinam palavras e ideias no espaçamento de suas páginas. Guardam e registram fatos e pensamentos. Mas, ao mesmo tempo, rompem todas as barreiras! Criam mundos, inventam palavras, multiplicam-se em sentidos e significados inusitados e transgressores. E é nessa dualidade entre o limite e o ilimitado que o ato de escrever/inscrever contém e resiste à ordem e ao aleatório.

Entender as histórias - individuais e coletivas - ensina erros e aponta novos caminhos de acertos. Construir histórias - individuais e coletivas - explora potenciais, ensina limites  e oferece oportunidades. Poder escolher boas histórias para viver e escrever é o maior presente e também o  maior desafio.

E ainda que Rosh Hashaná seja uma celebração intrinsecamente judaica, seus símbolos podem inspirar momentos coletivos de reflexão e inspiração. Reflexões e renovações mais do que necessárias diante das turbulências sombrias que temos atravessado como humanidade.

Que novas e nobres  histórias sejam inscritas no Livro da Vida - de vidas! Doces, como sempre devem ser.


Shaná Tová Umetuká!






quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Alice que me dizendo há 2 anos!








Alice Que Me Disse nasceu em 13 de setembro de 2015. Era um projeto antigo, embora sem pressa,  só tornado possível, diante do meu total analfabetismo digital,   pela minha amiga Maysa Torres.  Dois anos e 150 textos publicados depois, manter o blog tem sido muito prazeroso. E fonte de  muitos aprendizados.

Aprendi, por exemplo, que blog é  propriedade egoísta e egocêntrica. O prazer de escrever e pelo que se escreve não é objeto do leitor, mas exclusivo de quem escreve. Aprendi também que não é fácil imprimir identidade  quando os interesses são muitos ou quando o objetivo é apenas expressar-se. Sem foco, sem tema, sem alvo. Aprendi que blog tem pouco alcance e pouca sintonia com a instantaneidade em que vivemos. Blog é lento, pausado. E aprendi, sobretudo, os monólogos que pautam a nossa comunicação atual.

Nesses dois anos, registrei algumas das profundas transformações políticas que atravessamos. Assisti a alguns filmes, shows e peças de teatro.  Acompanhei a Rio 2016. Filosofei em cima do nada. Ou de alguns tudos. Dividi lutos e alegrias. Compartilhei memórias. Corujei meus filhos. Homenageei família e amigos. Ensaiei minicontos. Sem qualquer pretensão literária, escrevi o que vinha de dentro, da emoção.

Penso nesses 2 anos como em 2 vidas. Tanto aconteceu, que parece outro mundo. Relações suspeitas, valores questionáveis. Difícil absorver, apreender, depurar, elaborar. Mais difícil ainda é reconhecer o quanto regredimos como pessoas, como humanidade. Tantas barbaridades, tantas desumanidades.

Hoje estamos divididos em multiplicações frenéticas. Inventamos inverdades, adaptamos fatos, julgamos sem perdão. Tornamo-nos especialistas absolutos sem qualquer respaldo teórico. Não permitimos discordâncias. Ressentimos dissonâncias. Rejeitamos confrontos. Polarizamos inconciliáveis. E embrutecemos, endurecemos. Atos de gentileza ou de elegância são fragilidades, não qualidades. Protegemo-nos no pseudo anonimato, crescemos na virtualidade. O coletivo engoliu a individualidade, a particularidade. Perdemos identidades para tornarmo-nos selfies. A palavra selfie esvaziou-se, tornou-se a negação de si mesma.

E é  justamente na palavra que o Alice Que Me Disse me mantém conectada, atenta, curiosa, esperançosa. Quanto menos dialogamos, mais a palavra ganha importância. Quanto mais monologamos, surdos e alheios, mais a palavra redime. Quanto mais nos angustiamos e desiludimos, mais a palavra salva. Não  há outro caminho que não seja pela palavra.

Mas não a palavra vã, deformada ou subtraída de seus significados e significantes. Resgatar a palavra na  sua essência mais primitiva e na sua natureza mais cristalina é o repouso para as nossas almas cansadas. A palavra é, na sua origem, pura poesia.  Há ato mais poético do que nomear coisas, pessoas, emoções? A palavra tudo pode, tudo permite, tudo desafia. A palavra cria, inventa, constrói, transforma e desafia. E depois faz todo o caminho inverso. Infinitas vezes.

E por que, então, perdemos o valor da palavra? Por que deixamo-la contaminar, desgastar, infectar, adoecer, sucumbir? Por que nos fechamos, surdos, cegos e mudos em grunhidos inaudíveis e insensíveis?  Em que momento a palavra  tornou-se  um fardo? Distanciou-se intangível e inacessível? Tornou-se literal? Descartável? Reciclável?

Sonho com a revolução incontrolável das palavras! A recuperação avassaladora da poesia que emocione, abrande, acalme. O levante incontido do que argumente, ouça, pondere, ecoe, engrandeça e transponha. Além, muito além. E mais além ainda. O além que tangencie o princípio. E que eles se confundam, até não sabermos mais qual é qual.

Nesses 2 anos do Alice Que Me Disse, celebro o poder absoluto, inquestionável e soberano da palavra. Celebro os diálogos. As composições improváveis. As metamorfoses linguísticas. O imponderável. As transgressões O mergulho alucinado  nos universos simbólicos. E, por fim, o descanso merecido em aliterações e assonâncias suaves e reparadoras.

E tenho dito!







quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Imaginai. O imperativo essencial.



Vivenciar a experiência teatral na sua plenitude é, acima de tudo, entregar-se à imaginação. Entregar-se verdadeiramente. Sem resistência. Sem escrúpulos.

Se, na  fração do tempo imensurável entre  a cortina se abrir e o palco ganhar vida, a imaginação não assumir o protagonismo absoluto  sobre os nossos filtros de realidade e distanciamento, a mágica do teatro não se dá.  A cumplicidade  entre público e palco é determinante para que, naquele espaço, tudo caiba, tudo possa, tudo permita.

Fechar os olhos, suspender a respiração, aguçar os sentidos e  e mentalizar o mantra "Imaginai! Imaginai!" é a porta de entrada  para o ritual teatral na sua mais primitiva essência.

Como, portanto,  imaginar nome mais perfeito para a obra recém lançada sobre o Teatro de Gabriel Villela? O teatro do Biel é o mais indecoroso convite à lascívia da imaginação. Imaginai o inimaginável! E  o palco o revelará!

O livro organiza, de forma impecável, a trajetória criativa do Gabriel. De "Você vai ver o que você vai ver" (1989)  a Boca de Ouro (atualmente em cartaz), são 28 anos de carreira! São 43 peças, das mais clássicas a textos atuais e mais populares, além de shows e óperas. E, a cada produção, o limite da imaginação é desafiado e, com muita competência, atravessado.

Dib Carneiro Neto e Rodrigo Audi reuniram depoimentos e fotos, além  de memórias  e percepções do próprio Gabriel para produzir esse compêndio barroco. Que trabalho incrível! Que travessia convidativa! Que resultado fantástico!

O livro chama atenção pela potência visual. Como o próprio Rodrigo Audi colocou, os fotógrafos de palco são os responsáveis pelos registros perpetuados das produções teatrais. Sem o seu olhar preciso, atento, além, detalhista, sensível e emotivo, a mágica do palco não conseguiria ser capturada, capsulada, e, reverencialmente, eternizada. Cada uma das belíssimas fotos tem alma de palco, de texto, de atores, de figurinos, de cenários, de iluminação, de maquiagem, de música, de ensaios, de estudo, de leituras, de adereços, de medo, de frio na barriga, de euforia. E de direção. Os olhos ardem de tanta beleza.  Os olhos ajustam suas miopias febris para experimentar as  texturas, temperaturas e sensações.

Imaginai!! Os bastidores de cada uma das 42 peças organizadas! Imaginai! As fotos escolhidas para cada uma delas! Imaginai! Relatos e depoimentos deliciosos  de colegas, atores, críticos e parceiros profissionais! Imaginai! Está quase tudo ali.Aqui. Nas minhas mãos.

Conheci o Biel - e o seu teatro - em 1990 com "Vem buscar-me que ainda sou teu". Uma montagem que me provocou inquietude por ser tão fora dos padrões a que estava acostumada. Mas não a inquietude incômoda ou desconfortável, mas sim, a inquietude curiosa. E cautelosa, por não saber exatamente a que me abria.

Acho que só entendi realmente a magnitude do talento criativo do Biel depois que conheci a sua casa em Carmo do Rio Claro. E o seu atelier. Não me esqueço da minha primeira estadia lá! O cenário é tão arrebatador, as referências são tão abundantes, o contágio barroco é tão inevitável, que tudo passa a fazer sentido. Ou justamente o contrário! Mas que é, no fim, a mesma coisa. Pelas mãos do Biel, conheci a igrejinha do Itaci e a restauração dos anjinhos barrocos. Conheci as tecelagens carmelitanas.  Conheci as docerias artesanais. Entendi que terceiras margens não são para todos. E ouvi histórias locais e universais.

Há uma história que não está em Imaginai!, mas que vive na minha memória. Em algum momento que não sei precisar, lançaram uma coletânea de músicas do Chico Buarque e alguns artistas foram convidados a produzir alguma coisa sobre elas para a exposição de seu lançamento. Ao Gabriel, coube Com Açucar com Afeto. Ele, então, escreveu toda a letra da música nos doces caseiros locais, colocou tudo num tacho mineiro e lá foi pra exposição. O engraçado da história é que os visitantes entenderam que os doces eram pra ser comidos e acabou tudo. Não me lembro se deu tempo para reporem para os próximos dias ou se a exposição ficou mesmo desfalcada! Amo essa história! E amo imaginar a  doçura dos doces carmelitanos associados ao açúcar do meu compositor favorito!

Desde então, sou fã assumida e rendida. Surpreendo-me a cada nova produção! Emociono-me a cada nova montagem. Aprendo. Muito. Desequilibro-me. Acho chãos.

Passou e repasso essas páginas com a cumplicidade pelas peças que tive a sorte de ver! E com o arrependimento pelas que não vi. Assim é o teatro. O que foi, foi. Ficou ali, no palco silencioso e à espera.

Imaginai! é  apropriação egoísta. Mas justificada pela imaginação realizada em mão dupla. E endossada pela alegria e orgulho das últimas páginas também já contarem um pouco a trajetória do meu filho!

Imaginai! Imperativo. Essencial.









domingo, 3 de setembro de 2017

A alquimia de Bingo - O Rei das Manhãs.

"Tem gente que nasceu para ser formiga, tem gente que nasceu para ser cigarra. Nós nascemos para ser mariposas. Adoramos a luz." (Bingo - O rei das Manhãs)



Bingo - o Rei das Manhãs - é um filme alquímico.  O editor Daniel Rezende (Cidade de Deus, Tropa de Elite, Árvore da  Vida) fez-se diretor.  Bonzo virou  Bingo, SBT virou TVP,  Rede Globo virou Mundial, Xuxa virou  Lulu,  Marcia de Windsor virou Marta Mendes e Arlindo Barreto , o Augusto Mendes, tornou-se um dos melhores personagens já produzidos pelo cinema brasileiro!

Os bastidores da tv brasileira nos tresloucados anos 80 são o pano de fundo  para a trajetória de Augusto Mendes, o palhaço que revolucionou as manhãs infantis! Uma trajetória permeada de comicidade, ternura, afetos, desafetos, decepções, vícios e perdas. Sem pretensões de potencializar o cômico ou o trágico, as alternâncias são reais e críveis. Partes inseparáveis de quem viveu dentro da arte e que apenas conhece os holofotes como validação de identidade. Na medida certa.

Dizem que o Brasil não é para principiantes. Bingo confirma a tese. Só mesmo no Brasil, um ator de pornochanchadas viraria o ídolo de milhões de  crianças. Só mesmo aqui, o formato hermético do sucesso americano cederia à  transgressão de Gretchen, em roupas mínimas, rebolar Conga Conga Conga em pleno horário matutino! E só aqui um ator reabilitado do abuso das drogas, após o auge da fama, encontraria o  seu verdadeiro palco na religião evangélica.

Bingo é um filme de camadas. Camadas que, ainda que intencionalmente leves, são  tão densas e intensas quanto às máscaras que o anonimato obrigatório esconde. Por trás dos quilos de cores, as fragilidades humanas. Por trás das roupas e cabelos extravagantes, as inseguranças e limitações. Por trás da briga pela audiência, as vaidades e sordidez dos números que determinam sucessos e derrotas. Um filme que orgulha o cinema nacional!

O elenco, ainda que majoritariamente coadjuvante, está afinado e alinhado! Leandra Leal dá show! Que grande atriz! Ana Lucia Torre está ótima como a mãe amarga e decadente... O menino Cauã Martins emociona como Gabriel. Tainá Muller é a ex-mulher e Emmanuelle Araújo encarna uma Gretchen perfeita!  A emoção maior fica por conta de Domingos Montagner como mentor circense de Bingo. Sua morte trágica ainda é recente e vê-lo como palhaço, como início mesmo de sua carreira, é tocante.

Vladimir Brichta está perfeito no papel! Desaparece atrás do nariz de palhaço para aparecer, sem a maquiagem, com todas as suas humanidades. Sopros de leveza e  apertos de tristeza.

A trilha sonora impecável é uma viagem no tempo! Assim como a perfeita ambientação e figurinos!

Engraçada essa coisa de palhaço... No dicionário dos símbolos, o palhaço representa o reverso da medalha da realeza, opondo-se à soberania com irreverência; ao temor com o riso; ao sagrado com o profano. Palhaços provocam reações extremas, que oscilam da admiração ao medo. Mas jamais indiferença! Alguns transpiram alegria genuína; outros, melancolia. Seja como for, são determinantes na formação do nosso imaginário e na nossa percepção das mazelas humanas como objeto de riso.

Bingo vai além dos exageros e superlativos que encenam o trivial. E revela a vida oculta atrás dos trajes e trejeitos inusitados. Vidas mariposas, sempre à busca de luz.