Canterbury, cidade ao sudeste da Inglaterra, é o principal centro religioso do Reino Unido e sua catedral, Patrimônio da Humanidade, abriga o líder espiritual da Igreja Anglicana, o arcebispo de Canterbury.
Sua relevância histórica e cultural foi imortalizada por Geoffrey Chaucer nos famosos The Canterbury Tales, escritos entre 1380 e 1400. A coletânea de contos descreve a viagem de peregrinos de todas as classes sociais de Londres a Canterbury para visitar o túmulo de St. Thomas Becket, arcebispo decapitado em 1170. A importância dessa obra é enorme, pois foi a partir dela que o inglês foi consolidado como língua literária em substituição ao francês e ao latim, idiomas predominantes naquela época.
Assim, não há como pensar em qualquer evento religioso dentro da Família Real sem a condução do arcebispo de Canterbury.
Costumo brincar - seriamente - que a Rainha Elizabeth é o meu reconhecimento de mundo. Em meio ao caos ou sucessão de preocupações pessoais e/ou coletivas, saber que ela ainda existe me dá chão e norte. Após a cerimônia de casamento do príncipe Harry, vou um pouco mais além: reconheço-me no mundo sob a presença da Rainha e a benção do arcebispo de Canterbury!
Anacronismos à parte, ideologias à parte, feminismos à parte e demais "às partes" cabíveis, a realeza inglesa exerce inegável fascínio! E casamentos reais ingleses reativam todos os mitos e arquétipos de príncipes, princesas e finais felizes. O mundo para. Assiste. Emociona-se. Torce, ainda que torça o nariz. Quem não?
Assisti, arrebatada, aos três casamentos mais importantes das últimas décadas! Cada um com suas particularidades. Em seu contexto. Com seu apelo. Em seu alcance.
O mundo apaixonou-se por Lady Di em 1981! Um casamento dos sonhos na belíssima Catedral de St.Paul's! ! A princesa de todos! Suave e linda no vestido que entrou para a história criado por David e Isabel Emanuel, com a tiara da família Spencer em ouro e diamantes colocados em prata, e um buquê enorme que nem imagino quanto pesava.
Príncipe William e Kate Middleton casaram-se na Abadia de Westminster em 2011. Como não se emocionar com o futuro rei tão parecido com sua mãe? Como não desejar que ele construísse a sua própria família e perpetuasse o legado? Kate já era amada e aprovada para preencher o vazio que sua sogra havia deixado! Segura e delicada, usou um lindíssimo vestido de renda desenhado por Sarah Burton (Alexander McQueen), tiara Cartier que havia sido dada a Elizabeth II pela Rainha Mãe, e buquê mais modesto, composto por várias flores típicas da Inglaterra e muguet, símbolo de boa sorte.
O casamento do príncipe Harry com Meghan Markle na maravilhosa St.George's Chapel não carregou o peso da hereditariedade da coroa dos dois anteriores, mas estabeleceu, certamente, um divisor de águas. Em tantos sentidos. Em tantos pequenos detalhes. A elegância do vestido minimalista criado por Clare Waight Keller (Givenchy) dividiu protagonismo com o véu absolutamente espetacular com suas 53 flores bordadas à mão representando os 53 países do Commonwealth. Grande simbolismo para uma noiva nascida em um país que foi colônia da Inglaterra! A tiara de 100 diamantes foi da Rainha Mary, avó da Rainha Elizabeth. O buquê, também discreto e simples, foi confeccionado a partir de flores colhidas pelo próprio príncipe Harry.
A espontaneidade, ainda que dentro do rígido protocolo, marcou a cerimônia. A caminhada dos dois irmãos até a entrada da Capela trouxe à memória os mesmos dois meninos caminhando ao lado do pai no funeral de sua mãe. Quem não se lembrou daquele momento? Quem não desejou que a insubstituível Princesa Diana pudesse ver os seus meninos homens feitos? Meghan percorreu sozinha, poderosa, a primeira parte da nave central, sendo só então conduzida por seu sogro. Sua mãe cativou pela emoção incontida durante toda a cerimônia! Os olhos marejados eram os olhos de todas as mães que torcem pela felicidade de seus filhos. Lady! E a inesperada resposta "I hope" a invés de "I will" arrancou risadas.
A música foi, sem dúvida, a marca do casamento! Sublimes solos de vozes e solos de violoncelo (aqui vale uma pequena explicação do Ronaldo Miranda, compositor brasileiro que tenho o privilégio de conhecer há muitos anos: a escolha do violoncelo não foi por acaso. Além do talento inquestionável do jovem músico de apenas 19 anos e de quem o casal se tornou admirador, o violoncelo é o instrumento que guarda maior similitude com voz humana)! O tradicional coral de crianças ao lado do inusitado coral Gospel entoando Stand By Me deu vontade de cantar junto e sair dançando! E, para encerrar, o hino britânico God Save the Queen. It was a royal wedding, after all! Magistral!
Volto à Rainha. Elegante e moderna com um vestido estampado em verde-limão e roxo. 92 anos. Nos seus 66 anos de reinado, tem presenciado mudanças sociais que confrontam a rigidez da pesada coroa que ostenta. Questionamentos sobre a sobrevivência da realeza no mundo contemporâneo, popularidades em gangorras, escândalos e divórcios no núcleo mais central. Humanidades que não podem mais se esconder atrás de palácios impenetráveis. Fragilidades reconhecidas que aproximam mais do que distanciam. E a sabedoria de tentar acompanhar as escolhas pessoais que lhe foram negadas, mas que ela, aparentemente, permite à sua sucessão. Concessões impensáveis há apenas algumas décadas. Mas que apontam para relações construídas em bases mais reais - literais e metafóricas - e que apontam a possibilidade de convivência entre a tradição que define o Reino Unido e a modernidade que não pede permissão e nem precisa se curvar diante de sua monarca.
E volto aos arcebispos de Canterbury. Robert Runcle celebrou o casamento de Charles, recepcionando o primeiro cardeal católico a participar de uma cerimônia religiosa desde o rompimento de Henrique VIII com Roma. Rowan Williams celebrou o de William, num evento festivo e promissor de superação ao funeral de Lady Di na mesma abadia. E Justin Welby celebrou o de Harry, cedendo espaço para o bispo americano Michael Curry. Sem duvida, um momento importante de protagonismos compartilhados. Enquanto um manteve-se fiel aos rituais tradicionais, o outro trouxe irreverência, coloquialismo e um quê de Broadway que destoou, num certo sentido, da natureza de seus anfitriões.
Contos de fadas jamais deixarão de fazer parte da construção do nosso imaginário. Reis, rainhas, príncipes e princesas serão sempre arquétipos necessários. Mudarão belezas, sonhos, ambições, atitudes. Terão escolhas. Serão iguais. Terão vozes. Mudarão vozes. Terão novos papéis, novas missões. Serão modelos de outras ideologias. Ainda bem.
Mas a monarquia inglesa sempre será referência. Sempre inspirará finais felizes. God save the Queen. Com a benção dos arcebispos de Canterbury. Amém.
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