Todas as religiões lidam com o conceito de pecado, arrependimento e perdão. E nem poderia ser diferente, pois todas as religiões buscam aproximar o homem imperfeito da perfeição do divino.
Dentro dessa visão, o pecado - que prefiro chamar de transgressão - enfraquece a conexão mais íntima e profunda entre o transgressor e Deus. Ao mesmo tempo, o sentimento de afastamento remete imediatamente ao retorno, possibilitando um arrependimento sincero que re-estabeleça a integridade e intensidade do vínculo.
A minha formação católica estabelece como transgressão tudo o que vai contra os mandamentos de Deus, os ensinamentos de Jesus e os dogmas da Igreja. A comunhão com Deus se manifesta na sua plenitude através da comunhão, onde a hóstia (corpo de Cristo) nos é oferecida se formos absolvidos de nossas transgressões. Essa absolvição se dá através da confissão e arrependimento diante do representante da Igreja que nos dá a penitência compatível com a gravidade da transgressão. Esse processo de arrependimento/perdão é individual e praticado a qualquer tempo e a qualquer hora. Não há na religião católica um período dedicado a uma reflexão coletiva daquela comunidade sobre os fundamentos e práticas da nossa fé no que diz respeito a pecado, arrependimento e perdão. Questiono a minha religião nesta prática, pois impõe um intermediário entre o homem e Deus. Um intermediário que, ao colocar-se como juiz que sentencia, condena ou absolve, cria distanciamento entre a natureza humana e o divino.
O judaísmo propõe uma noção mais ampla de pecado e de perdão, atribuindo-lhe polaridades diferentes: a do homem em relação ao homem e a do homem em relação a Deus.O primeiro polo deriva da vida cotidiana e das interações sociais. É do universo dos homens e ai mesmo precisa ser resolvida, sem a intervenção de Deus. Já o segundo polo deriva do centro da alma e da consciência. Essas transgressões serão perdoadas dentro do universo da religião e da relação homem/Deus.
O vínculo entre o homem e Deus complementa-se em três níveis. O primeiro nível, semelhante ao católico ou a qualquer outra religião, refere-se ao lado "mecânico" da prática religiosa: seguir os mandamentos, respeitar os rituais e honrar os escritos sagrados. Peca quem não observar essas práticas. O arrependimento, também semelhante ao catolicismo, manifesta-se a qualquer momento e o perdão é concedido. O segundo nível, que também se aproxima da minha religião, refere-se à fé mais íntima e profunda e, portanto, também pessoal. É acreditar e viver plenamente aquela religião e estabelecer com Deus um relacionamento que norteia as ações. Ao pecar, esse relacionamento enfraquece e homem e Deus se afastam. O arrependimento e consequente perdão restabelecem prontamente esse vínculo e também podem se manifestar e ser concedidos a qualquer tempo, dependendo apenas do empenho e consciência de cada um. O terceiro nível - e ai não encontro analogia na minha religião - une a essência judaica a essência de Deus. Essa união é intrínseca à alma judaica e, portanto, não pode ser afetada pela ação do homem, pois ele e Deus se complementam. A noção de que as transgressões cometidas não afetam essa união e que esse vínculo é intocável e sem obstáculos não encontra correspondência na minha formação.
E só assim encontro sentido na celebração do Yom Kipur, que sempre me pareceu prático demais: dedicar um dia para zerar todos os pecados, obter o perdão e virar a página. Hoje percebo esse período como um tempo real de reflexão da comunidade como um todo, embora, paradoxalmente, cada judeu seja único e absoluto na comunhão plena com Deus.
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