A bailarina constitui um dos universos simbólicos mais potentes. Força, persistência, equilíbrio e precisão em simbiose indissolúvel com delicadeza, leveza, fragilidade e graciosidade. A perfeição em suspensão etérea, capaz produzir movimentos só possíveis nos mistérios não revelados das fitas, tules e gazes.
A potência da música, por outro lado, com cordas, sopros e teclados em urgências de unidades de expressividade,complementa esse universo como nenhum outro! O maestro, único capaz de decifrar e harmonizar acordes nem sempre toantes e previsíveis, surge, portanto, como a sustentação e segurança para as experiências sensoriais provocadas pelo casamento música/dança.
Pulsões, texto de puro lirismo de Dib Carneiro e direção cuidadosa de Kika Freire, desorienta o público ao trazer para o palco um espaço indefinido e lúdico para expor as fragilidades secretas e intocadas desses dois símbolos de perfeição - até então - inquestionável.
Pulsões desconexas de dança e música revelam a obscuridade do inconsciente e seus caprichos incontroláveis e mantêm a sua comunicabilidade apenas sob a condução do afeto e amor curador e salvador.
"A loucura está profundamente ligada ao desamor. Só o amor salva alguém da loucura". (Nise da Silveira - psiquiatra cujo trabalhou inspirou o texto)
O cenário, lindamente construído, mas ardiloso quanto às suas intenções, revela aos poucos o terreno desconhecido e que brinca com os fragmentos do belo e não belo, da aceitação e rejeição, do delicado e do sórdido, da memória e do esquecimento - voluntário ou não. Móbiles róseos de extrema delicadeza , caixinhas de música e pequenas bailarinas em posições e deformidades diversas nos suspendem do chão que nos escapa em lindíssimas mandalas.
Ao fundo, um piano e um violoncelo, pontuando com beleza indescritível a alternância entre realidade e delírio, conflito e calmaria. De Trenzinho Caipira a Bachianas nº 5 de Villa-Lobos, e percorrendo diversas cantigas de roda do acervo de nossa memória infantil, a música entra como o personagem capaz de resgatar Maestro e Bailarina do risco de se perderem irremediavelmente nos abismos de suas patologias.
O figurino, lindíssimo, traz concretude possível ao abstrato que nos desorienta. Ao mesmo tempo em que nos oferece a caracterização que encontra a nossa expectativa coletiva, distrai com as palavras inesperadas tatuadas nas roupas e corpos.
Bailarina e Maestro, num jogo cênico que emociona pela plasticidade perfeita tanto quanto angustia pela busca contínua pelo equilíbrio que faça a existência tolerável, são fragmentados pela ausência de lógica de linearidade dos seus inconscientes individuais e/ou compartilhados. A atemporalidade daquele espaço "onde não há mais essa contagem" confunde, mas ainda assim permite as conexões, ainda que efêmeras, com o tempo e o espaço "lá fora".
E é justamente no esforço permanente por equilíbrio das pulsões individuais de um e outro - dança e música - que dá-se o encontro amoroso que sugere a possibilidade de cura.
A cada encontro, o conforto do reconhecimento e acolhimento. A cada cura, redenção das inúmeras mortes anteriores. "Aliás, quando foi a última vez que você morreu"?
Bravo!
ResponderExcluirÊeeeee!!!
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