sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Tudo pela família. Que família?

Murphy Brown foi um dos primeiros seriados da TV americana que acompanhei. Ainda é, na minha opinião, uma das melhores séries de todos os tempos! Estrelada pela maravilhosa Candice Bergen, contava a história de uma jornalista de investigação recuperando-se do alcoolismo. Em um dado momento, Murphy Brown decide levar a cabo a sua gravidez como mãe solteira. O nascimento do bebê no seriado coincidiu com a campanha presidencial americana de 1992. O então vice-presidente Dan Quayle repudiou publicamente o seriado e culpou a personagem pelo péssimo exemplo de incentivar gestações fora do casamento e contribuir para a dissolução dos valores familiares. O assunto gerou enorme polêmica na época e a resposta da produção da série foi gravar emergencialmente um episódio - um dos melhores da tv que tenho memória - onde Murphy Brown pergunta ao vice-presidente, ao lado de várias composições familiares "não tradicionais", o que seria a verdadeira definição de família americana e se ele, oficialmente, não reconhecia aquelas composições como família e, portanto, não governaria para elas. Isso, no início dos anos 90!

A discussão chegou tardiamente ao Brasil e, infelizmente, não beneficiada pelos avanços já consolidados em outros países. Não encurtamos caminhos. Pelo contrário, pegamos a via mais longa e recortada por desvios moralistas, doutrinários e retrógrados, tão dissonantes dos movimentos igualitários e discriminatórios que gritam pelos quatro cantos do mundo.

Ontem, com 17 votos favoráveis e 5 votos contrários, a comissão na Câmara dos Deputados que discute o famigerado Estatuto da Família, aprovou o texto básico que define família como: a  união entre homem e mulher por meio do casamento ou união estável, ou a comunidade formada por qualquer um dos pais junto com os filhos. Pela regra, o projeto segue diretamente para o Senado sem precisar da votação em plenário da Câmara.  O Estatuto definirá, portanto, nessa definição familiar, os direitos e diretrizes das políticas públicas para garantir atendimento às ditas entidades familiares em áreas como saúde, segurança e educação.

As discussões acaloradas deixam aflorar as aberrações dos parlamentares que legislam (??) a nosso (?? favor. Alegações de "homem com homem e mulher com mulher não geram" ou "o afeto não pode ser considerado construtivo de uma relação para a constituição de família" conflitam com qualquer mínimo senso do que efetivamente constitui uma relação familiar funcional e saudável.  O cinismo em reconhecer os direitos e garantir  proteção às relações homoafetivas, mas exclui-las da "base da sociedade" desanima e explicita, sem qualquer pudor, o pensamento predominante e preconceituoso que define a nossa sociedade.

O último Censo Demográfico do IBGE já aponta 50,1% dos domicílios com constituição familiar "não tradicional". Pais divorciados, guarda da mãe, guarda do pai, guarda compartilhada, novos casamentos com famílias agregadas, produções independentes, mães solteiras por opção ou  por falta de opção, mulheres abandonadas, casais sem filhos,  adoções, relações homoafetivas e sei lá que outras estruturas existem por ai. Todas válidas. Todas funcionais. Todas compondo  oque chamamos de país. Estruturadas na verdade, na realidade, da forma que der, da forma que for. Mas, basicamente, estruturadas no  cuidado, no amor.

E é esse, e apenas esse conceito que deve prevalecer como  definição de família: qualquer núcleo que crie - mais do que gere -  crianças amadas, queridas, respeitadas, cuidadas e que possam conhecer e reconhecer  ambientes amorosos e seguros e que lhe ampliem a visão de mundo, do outro, dos outros.

O dever do Estado é o de promover políticas públicas que garantam proteção e direitos a esses núcleos, e NÃO o de definir quais são esses  núcleos  baseados na sua visão curta, equivocada, preconceituosa e excludente.

É, Murphy Brown... Vinte e três anos depois e continuamos empacados.






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