"Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados de sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos esses movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-o-lá de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?"
(A República de Platão - Cap VII: O Mito da Caverna)
A escritora irlandesa Emma Donoghue, baseando-se na escabrosa história do austríaco Josef Fritzl - que manteve a própria filha em cativeiro por 24 anos e com quem teve 7 filhos - , produziu o livro que inspirou o filme mais impactante dessa temporada.
O diretor também irlandês Lenny Abrahamson, ciente da importância em preservar a essência do enredo , em ato não comum no meio cinematográfico, convidou a própria escritora para assinar a adaptação do roteiro. Decisão acertada!
Pela narrativa do pequeno Jack (Jacob Trembley), que acaba de completar 5 anos, somos apresentados ao pequeno quarto onde ele e sua mãe Joy (Brie Larson) vivem em confinamento, dispondo apenas de uma cama, uma mesa e duas cadeiras, um armário, uma pia, um vaso sanitário e uma claraboia, por onde entra luz e o céu. A extensão do cativeiro é introduzido aos poucos, e sempre pelo olhar inocente e otimista do menino, que, afinal, nunca conheceu outra vida fora aquelas paredes.
A ternura da relação mãe/filho dentro dessas condições tão restritivas emociona. Manter a normalidade, instigar criatividade e conhecimento, exercitar a imaginação e criar um ambiente seguro e amoroso são desafios que só o instinto de sobrevivência exacerbado da maternidade explica. A naturalidade e segurança do menino lembram o belíssimo La Vita è Bella, onde o pequeno Giosuè,em pleno campo de concentração, vivia alheio e protegido daqueles horrores!
Uma vez fora do cativeiro, o mundo do pequeno Jack cresce e deslumbra, ao mesmo tempo em que o mundo da mãe sufoca e angustia. O mundo fora do confinamento requer adaptações e aprendizados difíceis e sofridos.
E é no confronto entre os dois mundos que o Mito da Caverna de Platão se impõe como referência inquestionável! Entender o mundo fora da caverna e aprender o que é ou não real. Alternar as possibilidades da liberdade com a segurança do conhecido. A filosofa platônica é a linha condutora dos ritos de passagem da mãe e do filho.
O maior mérito do filme é manter a ternura natural - e não com a intenção piegas - acima dos horrores por trás do relacionamento mãe/filho. Isso deve-se, sobretudo , ao acerto em manter o foco narrativo no menino e, com isso, trazer lirismo e poesia. O sucesso deve-se também à perfeita caracterização do pequeno Jack como criança normal, sem a armadilha de fazê-lo especial ou mais maduro. Ele é natural, espontâneo, grita, chora, faz birra, tem medos. Uma criança como qualquer outra de 5 anos.
Brie Larson está maravilhosa e emociona com a sua entrega para uma interpretação impecável! E o pequeno Jacob Trembley compõe o seu personagem com uma maturidade artística que impressiona! Que ator!! Que dupla sintonizada e generosa um com o outro! Que acerto na escolha dos atores!
Impossível assistir a esse filme com indiferença e sem transformação e reflexão.
O Quarto de Jack é um soco no estômago! Mas um soco acompanhado de um sorriso que não abandona os cantinhos da boca. E conseguir esse efeito é raro. Muito raro. E, portanto, digno de louvor, reconhecimento e agradecimento!
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