"Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum." (Salmo 23:4)
O enfrentamento da morte não é tema inédito no cinema e quase sempre oscila naquele limbo perigoso da pieguice e da obviedade.
O diretor catalão Cesc Gay, com muita competência, traz um filme equilibrado entre a densidade e a leveza; o drama e a comédia; a crueza e delicadeza. E até mesmo os poucos clichês se justificam justamente por serem usados na perfeição do seu sentido.
Talvez a principal razão do sucesso tenha sido delegar à iminência da morte o papel de fio condutor da trama, e não o protagonismo. Como um rio principal, ela (trans) corre ao longo dos 106 min, mas revela seus afluentes que, estes sim, discutem os temas importantes e fundamentais de quem se confronta com o inevitável.
Assim, temas polêmicos surgem com extremo objetivismo e praticidade o que, dentro do nosso conservadorismo latino-cristão, certamente causa estranhamento. Estranhamento aliviado pelo brilhantismo dos atores ao imprimir dramaticidade e comicidade calculadas e pertinentes.
Ricardo Darín, a cada projeto, se confirma como o talento superlativo ibero-americano! Sua capacidade de tornar-se comum diante das situações mais incomuns é surpreendente! Que prazer é vê-lo dar vida a Julián, ator argentino radicado em Madri e que, após um ano lutando contra um câncer, decide abandonar o tratamento e aceitar a sua morte. Com esse conflito superado nos primeiros momentos do filme, o carisma de Darín é emprestado para tornar Julián ao mesmo tempo afetuoso e ácido, altivo e humilde, maduro e infantil. Tudo na dosagem certa! Impossível não se comover com o seu destino e suas tentativas de amarrar as pontas soltas de sua vida.Que coragem para enfrentar a decisão solitária do fim que é sempre solitário!
Javier Cámara, seu amigo Tomás que vive no Canadá e vem passar 4 dias com ele diante desse quadro dramático, é o contraponto perfeito para as reflexões inevitáveis e para as oscilações compreensíveis de humor. Javier Cámara impõe equilíbrio sereno e ponderado com gestual e facial geniais! Os seus espantos são rapidamente assimilados e incorporados com a naturalidade estranha ao seu repertório. Sua lealdade e generosidade comovem. às lágrimas!
E esse passa a ser, no final, o viés raro no cinema: a relação de amizade entre dois homens. Com toda as contenções características desse universo e tão diferentes da altas temperaturas da mesma relação entre mulheres!
Julián e Tomás protagonizam uma das mais belas e profundas relações de amizade do cinema recente! E justamente diante de uma situação extrema! A dramaticidade argentina de um lado x a contenção espanhola/canadense de outro. Um presente vê-los desenhar as nuances dessa amizade e criar o conforto necessário - para ambos - para o enfrentamento de suas respectivas perdas. Delicado, sincero, verdadeiro, intenso. E tão imbuído da objetividade e pragmatismo tipicamente masculinos!
Dolores Fonzi, a prima Paula, entra como o elemento feminino necessário para imputar alguns extremos que aliviam a tensão e não possíveis dentro da relação Julián/Tomás.
E o Truman? É o cachorro, leal companheiro e que precisa de um novo lar para quando o seu dono se for. Até mesmo a escolha do nome do filme reforça a opção da morte como condutora, e não determinante. Determinado já está! Os aspectos práticos da decisão, tão doloridos, entre eles cuidar do futuro do cachorro, são as pulsões emocionais das ações.
Um fato curioso é que o cachorro Truman, na vida real, se chamava Troilo. Ricardo Darín queria manter o nome por remeter a Anibal Troilo, um famoso compositor de tango argentino e que agregaria a "argentinidade" que vem com a dramaticidade e a sentimentalidade do tango. Cesc Gay manteve Truman. O triste é que Troilo morreu apenas algumas semanas após a filmagem.
Um filme que surpreende pela leveza inesperada diante da temática tão forte. A comoção é tão inevitável quanto o riso.
A melhor síntese? "Se você quiser chorar, venha ver essa comédia!".
Ai Maria Alice você tem toda razão o que mais me comoveu neste filme foi a amizade masculina tão cheia de particularidades, tão diferente da nossa.
ResponderExcluirVi muitos dos meus amigos em situações diferentes, mas mesmo em momentos de muito sofrimento, sacavam uma piada, uma sacanagem que fazia rir e chorar ao mesmo tempo. Foi uma delicia chorar nesta comédia . rss
Que bom que sentimos igual, Monica! Achei incrivel, pois a nossa dinâmica feminina é tão diferente... Essa forma de relacionamento masculina não é muito explorada e eles o fizeram brilhantemente!
ResponderExcluirMaria Alice adorei o texto. Esse filme é uma homenagem à amizade! Tendo a morte, um tema tão difícil de se lidar, como viés, mostra um pouco do universo masculino, onde a dor e a fragilidade são combinadas à ironia e ao humor. Tudo em um tom perfeito, sem exageros!!
ResponderExcluirOs atores incorporam os personagens com um brilhantismo comovente. Esse filme é de uma doçura impar, e me fez pensar em tantas coisas... E a relação do Julian com o cachorro?? Tão suave, tão linda!!! Ai amei tudo!
Maysa, tbm amei tudo! Sem surpresas, sentimos os mesmos pontos! E nos emocionamos com as mesmas coisas... Tom certo pra um tema tão denso. Brilhante! Bjs
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