quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Memórias de Thanksgiving.

 




No Thanksgiving de 1993, morávamos em San Juan, Porto Rico. Marina e Daniel estudavam na Baldwin School: Daniel já estava no 1st grade e Marina no pre-kinder. 

Na turma da Marina, comemoraram esse dia com uma pequena encenação dos alunos. Marina era uma pilgrim grávida , casada com o pilgrim Diego, aquele menino sentado ao seu lado. Obviamente não me lembro do texto, mas uma das falas da Mari era "...and the baby is coming!" E ela segurava a barriguinha (na foto, infelizmente, não aparece a barriguinha. Eu era PÉSSIMA registradora de eventos!!)

Diego Rosado era  muito bonito. E muito quieto. A mãe era americana e o pai era porto riquenho. Pelo gesto de carinho explicito da Marina na segunda foto, podem ver que ela tinha "a little crush on him" ...

Bem, voltamos para o Brasil em julho de 1994 e Daniel e Marina foram para a Graded School em São Paulo: Daniel ia começar o 2nd grade e Marina o kinder. 

No primeiro dia de aula, em agosto, fui buscá-los e travamos o diálogo típico: "Como foi o primeiro dia?" "Gostaram da professora?" "Já conheceram algum/a amiguinho/a"? Ao que a Mari prontamente respondeu: "Sim, o Diego tá na minha turma." Eu: "Diego quem?" Ela: 'Diego Rosado". Eu: 'Aqui? Em São Paulo?" Ela: "Sim." 

No dia seguinte, procurei a mãe do Diego na escola. Realmente, haviam se mudado para São Paulo, às pressas, por uma transferência de emergência do marido (não me lembro para qual empresa ele trabalhava).E ai, ela me contou, às gargalhadas, que quando o Diego chegou em casa depois do primeiro dia e ela perguntou "How was your day? Made any new friends?", ele começou a chorar dizendo: "I don't want to marry Marina! I don't want to marry Marina!"

Ou seja, o coitado, sem ter ideia do que enfrentaria ao se mudar de país, topou de cara com a minha filha , foi acuado e "forçado" a um compromisso!!!! 

Diego só ficou no Brasil por um ano e depois se mudaram para o México. Para alívio dele, estou certa! 

Resumo da ópera: nenhuma gravidez sai impune! 

HAPPY THANKSGIVING!!!!


domingo, 11 de outubro de 2020

Pós-F.

 "Você não precisa gostar de mim para me enxergar, mas precisa me enxergar para não gostar de mim." (Fernanda Young)





Fernanda Young pulicou a sua primeira obra de não ficção, Pós-F: Para além do masculino e feminino,  em 2018. Relatos autobiográficos nada convencionais, e - sem surpresas,  polêmicos -  contribuem para a reflexão necessária sobre o ser homem e ser mulher nos tempos atuais. O livro virou projeto teatral e seria encenado pela própria Fernanda e  Maria Ribeiro, sob direção de Mika Lins. Infelizmente, a morte inesperada de Fernanda suspendeu o processo.

E então veio a pandemia... E, com ela, a paralização das produções artísticas... E foi em meio a esse cenário tão incerto e adverso que Mika Lins retomou Pós-F, e, respeitosamente, levou Fernanda Young - e Maria Ribeiro -  ao palco criado em nova linguagem para uma nova experiência teatral. 

Confesso ser avessa a lives e afins. Devo ser uma das únicas pessoas que tem atravessado o confinamento imune a essas novas formas de debates e entretenimento. Não tenho a menor paciência. Mas assistir a Pós-F da tela do meu computador  foi uma inesperada  positiva experiência!

Claro que a relação é outra! Claro que a interação é outra! Claro que o envolvimento é outro! Mas é - ou foi, nesse caso - outra BOA! Surpreendentemente boa! E aqui vem o talento da diretora Mika Lins!

Mika não caiu na armadilha de descaracterizar o "fazer teatro", nem na armadilha de "fazer o teatro" tradicional. Ela conseguiu, de uma forma muito eficiente, juntar os dois mundos com o que ambos têm de mais potente! E o resultado foi um teatro renovado, aberto, flexível, inclusivo, atual, sem perder EM NADA aquele encontro mágico entre texto, atores e público que se chama teatro.

O palco foi mantido. Literalmente. Dentro de um teatro. O cenário foi construído com habilidade e pertinência. E minimalista, como é o estilo da Mika. Poucas referências. Apenas as necessárias. Apenas as essenciais. nesse caso, com um toque pessoal e afetivo, pois os desenhos foram feitos por uma das filhas da Fernanda. 





A iluminação foi a grande estrela! Que trabalho de luzes!! Simplesmente arrebatador! 

A grande sacada da Mika foi incorporar as técnicas e instrumentos virtuais à encenação tradicional. Assim, tomadas do alto, por exemplo e em espiral, impossíveis numa encenação presencial, proporcionaram um outro olhar, uma oura sensação. Genial!




A trilha sonora é absolutamente perfeita! De Pepeu Gomes (Masculino e Feminino) a Caetano Veloso (O Quereres), viajamos num tempo musical eclético e poderoso! Fiquei MUITO emocionada ouvindo, depois de tanto tempo, 99 Luftballons, no original alemão! 

Maria Ribeiro foi extremamente habilidosa. Porque tentar ser Fernanda não deve ser nada fácil. E ela não tentou ser. Nem foi. Ela foi Maria Ribeiro, corajosamente tentando encontrar dentro e fora  dela o espaço para, generosamente, deixar Fernanda ser. E o melhor foi o interlocução que ela, Maria Ribeiro, estabelece com o próprio texto, preservando, protegendo, cuidando do que Fernanda faria/diria/pensaria, caso fosse ela, a própria Fernanda, se auto interpretando. Essa alternância entre a atriz e a personagem foi muito especial!

O texto da Fernanda é forte. Forte como ela sempre foi. O texto da Fernanda é corajoso. Corajoso como ela sempre foi. E  o texto da Fernanda é mais desnudo do que ela foi. Fernanda escreveu ficções predominantemente. A ficção te coloca no lugar seguro de ser você não necessariamente sendo você. Mas o texto não ficcional te revela. Não há abrigo, não há refúgio. Fernanda, figura sempre tão polêmica - e tão imensamente talentosa - revela-se nas suas complexidades, fragilidades, certezas, dúvidas, humanidades, maternidades, sexualidades e contradições. Contradições pessoais e metalinguísticas. E essas contradições foram bem selecionadas, trabalhadas e lapidadas no palco real e no palco virtual. Sensacional!

Pós-F foi o 3º monólogo a que assisto da Mika. O primeiro foi Festa no Covil, adaptado do romance do mexicano Juan Pablo Villalobos. A versatilidade de uma única peça de cenário foi impressionante! Além do texto, que é um dos meus preferidos!

O segundo foi Palavra de Rainha, texto de Sérgio Roveri e com a interpretação majestosa de Lu Grimaldi no papel de D.Maria, a louca. O cenário era um único vestido. Negro. Que flutuava no palco e subia paredes à medida que revelava as angústias e desvarios da Rainha. Inesquecível!

O terceiro foi esse, Pós-F. Um monólogo necessário e em uma linguagem atual num mundo pandêmico. Tudo mudou. Nossas certezas mudaram. Nossas possibilidades mudaram. E também o fazer artístico mudou.

Mika me proporcionou uma incrível experiência! E a convicção  de que é possivel, sim, utilizar linguagens de outras artes, sem perder, contudo, a alma do teatro.









quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Cristina. A irmã sanduíche.

Cristina é filha do meio. Filha sanduiche. A terceira de cima pra baixo e terceira de baixo pra cima. 

Dos 5 filhos, foi, disparado, o bebê mais lindo dos meus pais!  Que olhos! Que bochechas! Que rostinho iluminado! 




Aliás, sempre foi linda! E cativante. E sedutora. Por onde passava, deixava rastros. E um séquito de apaixonados. Sociável, centro das festas, imã das atenções. 




Foi o xodó dos irmãos mais novos da minha mãe, que, durante um período, moraram conosco. A irmã mais nova da minha mãe, tia Guanahyra, em especial, adorava a Cristina! E levava-a pra cima e pra baixo, enquanto namorava o que veio a ser o seu marido, nosso querido tio Abelardo!  

Dos 5 filhos, tinha, também, o gênio mais forte. E põe forte nisso! Decidida, questionadora, confrontadora. Era a que enfrentava, a que abria os caminhos, a que se impunha. E metia medo. Mesmo. Nossos amigos tinham medo dela. 

Acho que ela sempre foi muito mais velha do que eu. Muito mais do que os 2 anos e 3 meses que nos separam. Porque ela sempre foi mais à frente! E com presença mais forte. E muito mais segura e dona de si. Eu aproveitava as brechas. As festas que ela me deixava ir. Os amigos que ela deixava chegar perto. E aproveitei! Muito! 

E como era safa! Um das minhas melhores lembranças da nossa adolescência foi uma festa a que fomos na Gávea. Casa de uma amiga minha do Teresiano. Fumávamos escondido nessa época e nossos pais foram nos buscar. Entramos no carro e a mãe logo sentiu o cheiro do cigarro. A mãe disse :"Maria Alice, fala perto de mim!". Eu com aquele bafo de cigarro. "Cristina, fala perto de mim"! Cristina com o hálito limpo. Tinha mastigado folhas do jardim antes de entrar no carro. Resultado; eu fiquei de castigo e ela lépida e solta. Ela era assim. 

É , entre nós, a mais parecida com o DNA da família do meu pai. O que quer dizer isso? Quer dizer que é a mais irônica, ácida, debochada, crítica, bem-humorada e escrachada. Ri com vontade. Nada  - e ninguém - passa desapercebido. 

Mas é também, entre nós, a mais intensa. Cristina é pura emoção. Magoa-se com facilidade. E perdoa de coração aberto. Ri muito. E chora sentida. E doa-se. De corpo e alma. Não há o que não se peça que ela não faça. Não há o que a gente precise que ela não ajude. 

Nem sei dizer tudo o que ela já fez por mim. Corridas prematuras para a maternidade. Decorações de festas infantis. Aliás, maravilhosas! Porque a Cristina é muito talentosa e desenha e pinta muito bem! Ajudas de última hora de trabalhos escolares. Decorações de painéis. Enfeites natalino-judaicos. E a lista segue...

Cristina cuidou da nossa mãe depois que o nosso pai morreu com uma entrega sem medidas. Foi o apoio, o suporte, o anjo protetor. Nada faltava. Olhar atento às menores necessidades. Preocupação com os menores detalhes. Uma leoa. Sempre pronta para atacar, se necessário.



Foi professora de pré-escola toda a vida. E numa linguagem de igual pra igual, com o mesmo espírito confrontador que a define. "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás". 

E é essa ternura endurecida que a faz ser tão especial. Porque ela está sempre perto, sempre disponível. Sempre preocupada. Sempre envolvida. Sempre se interessa, sempre participa. Sempre quer que tudo dê certo. Sempre torce. Sempre vibra. E sofre junto quando algo dá errado. 

E é também por isso tudo que ela é a TINA, a tia querida, muito querida, querida MESMO, de TODOS os sobrinhos e sobrinhos-netos. Cada um dos 11 sobrinhos tem, certamente, histórias incríveis com ela! E também os 8 sobrinhos-netos, de quem ela ajuda a cuidar, assumindo, tantas vezes, de forma generosa e amorosa, o papel de avó. 

Ela hoje mora no Rio. Sua casa é de todos. Portas abertas. Chaves entregues. Pra quem quiser. E tem um cachorro alucinado, Tyrion, um yorkshire que preenche a casa e o coração. Os nossos também.

E hoje, no dia em que ela completa 65 anos, queria dizer que é um enorme privilégio ser sua irmã. Não é fácil ser sua irmã. Mas é bom demais!

Feliz 65! Feliz muitos mais! 






domingo, 5 de janeiro de 2020

História de um Casamento.









"Vou amá-lo para sempre, mesmo que não faça sentido." 
(Nicole - Scarlett Johansson -  em História de um Casamento)


Eu era muito jovem quando assisti ao filme "Cenas de um Casamento", de Ingmar Bergman (1973). Como todos os seus filmes, a densidade das relações humanas, das mais ternas às mais sórdidas, e todos os universos tão bem explorados explorados entre uma extremidade e outra, serviam de matéria prima frutífera para as  grandes questões e discussões existencialistas que marcaram a minha geração. Bergaman foi o maior dos mestres  - jamais superado - das relações humanas. Bergman vasculhava cada cantinho das profundezas das nossas almas. Os olhares penetravam fundo.  Os silêncios gritavam. E incomodavam. Moviam.  Mas esse filme, em especial, na época, era muito distante da minha realidade.  Como toda jovem, romantizava o amor e o casamento "felizes para sempre". E não consegui identificar, naquele contexto, o que viveria - vivemos todos - dentro do casamento.  E, principalmente,  fora dele.

Talvez isso explique o impacto que o filme recente "História de um Casamento" do diretor Noah Baumbach provocou. Acredito que o filme tenha impactado a todos que viveram/vivem as crises inevitáveis de qualquer relacionamento. E, mais ainda, quem passou pelo dolorido processo de separação.

Cito "Cenas de um Casamento" de Bergman como ponto de partida, pois o tributo de Baumbach ao diretor sueco é inegável! Assim como também é inegável o tributo a Woody Allen e seu humor sutil e seu amor a Nova York. As duas referências estão lá, claras, explícitas! E contribuem para a qualidade do filme!

Cenas de um Casamento começa com uma entrevista dos dois protagonistas - Marianne (a fantástica Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) - para uma repórter sobre o segredo de um casamento longevo. História de um Casamento começa com os dois protagonistas escrevendo o que admiram um do outro.  Nesse primeiro momento, os dois inícios se assemelham. Só na sequência percebemos, no segundo filme, que os dois estão diante de um terapeuta e já em processo de separação.

A partir dai, Baumbach percorre o seu caminho individual e desconectado da referência. E o percorre lindamente.Linguagem própria, olhar próprio, atualizado e em linha com as influências das sociedades - em especial, a jurídica - onde está inserido.

Scarlett Johansson (Nicole) e Adam Driver (Charlie) estão estupendos! Não há como destacar as performances individuais, pois a conexão como casal/ex-casal é indissolúvel! Um se reflete no outro, completa o outro e apenas no outro ganha identidade. A sintonia é impressionante!

O trio de advogados também é sensacional! O embate entre o suave Bert  (Alan Alda) e o feroz Jay (Ray Liotta) oferecem a Nora (Laura Dern) o palco para que ela brilhe na defesa da mulher na fragilidade e desigualdade de uma sociedade ainda tão complacente com os homens e tão exigente com a mulher. O seus discurso sobre a comparação entre o mito da figura materna e a Virgem Maria é um dos pontos altos do filme! E ainda tão real! Tão atual!

"História de um Casamento", ao priorizar a questão da custódia do filho menor, apresenta, em paralelo, todos os desgastes, ressentimentos, dúvidas e resquícios do amor constituinte daquela família. Os processos individuais são muito bem construídos. De um casal, lentamente passam a dois indivíduos. Os dois estão errados. Os dois estão certos. Os dois abrem mão de algo. Os dois são egoístas. Os dois são cruéis. Os dois são generosos. Não há lados. Há apenas empatia e simpatia pela dor que ambos vivenciam. E pelo que querem/precisam manter/salvar/resgatar. Juntos e separados.

Para quem já passou por uma separação, não há como não se identificar e se emocionar. Porque, no fundo, o verdadeiro esforço no processo de separação é transformar o amor em outro amor. Esse outro amor tem que surgir fora da concepção amorosa que uniu o casal. Tem que surgir por baixo das mágoas, ressentimentos, frustrações, desamores, e, muitas vezes, raiva que determinaram o fim da relação. E TEM que surgir, porque é impensável que ele desapareça de vez, como se nunca tivesse existido. Só precisa ser outro.

E é na busca desse outro amor que o ex-casal também se busca fora daquela relação. Ver-se só e inteiro.  Ouvir os seus próprios desejos. Retomar os caminhos deixados pra trás. Trilhar novos caminhos. Vencer os medos, as inseguranças.  Aprender a dividir o  que antes era inteiro  e a assumir inteiro o que antes se dividia. Novos espaços, novos tempos, novas funções. E enquanto tudo isso se processa, um misto de alívio - por interromper um relacionamento esgotado - e raiva - por ter que fazer isso. Culpar o outro, vitimizar-se, desculpar o outro, desculpar-se, expurgar até as entranhas, libertar-se, tudo isso faz parte do processo de afastamento, descolamento.

Mas quando esse novo amor é finalmente descoberto, aquele indissolúvel núcleo familiar é mantido e preservado. Como deve ser. E manifesta-se, como bem retratado no filme, em dinâmicas que não se perdem. Como na escolha de uma salada, ou na ajuda para um portão que não fecha, ou num laço de sapatos desfeito.

Ou, no meu caso, em tantos pequenos gestos... Como passar a véspera de Natal no hospital  junto com você com a sua mãe internada. Ou fazer a sobremesa sem leite porque ele é intolerante a lactose. Ou ligar pra desabafar sobre "o SEU filho" ou a "SUA filha". Ou trocar tapetes. Ou sermos capazes, verdadeiramente, de ficarmos felizes um pelo outro. E ainda gostar de estar  um com o outro.

"História de um Casamento" é um filme que ensina muito sobre essa transformação de um amor terminal em outro amor sobrevivente.

Sorte de quem consegue!


sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Dois Papas. Indulgência e Redenção.










"A confissão limpa a alma do pecador, mas não ajuda a vítima." (Jorge Bergoglio, em Dois Papas).


Talvez não haja, em toda a história da humanidade, figura mais simbólica de poder do que o Papa. O Papa abarca  não uma, mas TODAS as esferas de poder. O Papa exerce influência espiritual, política, jurídica, social e até científica. O Papa pode atuar nas questões mais complexas e mediar os conflitos mais inconciliáveis. O Papa pode construir pontes de convivência ou muros de intolerância.

Em volta da figura poderosa do Papa, a Igreja Católica construiu um Império  potente, combatente e suntuoso. Mais  do que qualquer outro! E com ritos de majestade e opulência que sempre impuseram respeito e temor. A Igreja intimida. Faz-nos  frágeis, dependentes,  insuficientes.

A Igreja foi absolutamente competente em manter-se forte e dominante ao longo de 2000 anos. Mesmo às custas de episódios  obscuros e violentos, impôs silêncios, exigiu reconhecimento. Em nome de Deus, tudo era permitido e justificável.

Mas o final do século XX alterou a onipotência inquestionável da Igreja. E, em linha com questionamentos sobre éticas, condutas, abusos, etc, a sociedade moderna passou a criticar - e a cobrar - admissão de culpa e ações contra os abusos financeiros, sexuais e humanitários fartamente conhecidos - e nunca punidos - pelos seus representantes.

Indulgência e Redenção. É nessa dicotomia que Dois Papas se apoia para apresentar um filme, antes de tudo, de uma delicadeza tocante. Delicadeza necessária em tempos tão raivosos. Delicadeza sensível para tratar de temas tão controversos.

O encontro raríssimo entre dois Papas: o que renunciaria e o que o substituiria. O alemão Joseph Ratzinger de um lado, o argentino Jorge Bergoglio de outro. Um conservador e determinado a manter as mesmas bases de poder de um lado, um progressista e disposto a promover mudanças de outro. Um pela indulgência. Outro pela redenção.

O maior mérito do filme é humanizar a figura divinizada dos Papas. Ao mostrar as respectivas motivações, dúvidas, conflitos e limitações, o preto e branco abrem-se em cinzas profundos. A fé em si, o exercício individual dessa fé e o gerenciamento dessa fé ganham nuances contrastantes e compreensíveis.

Papa Bento XVI e Papa Francisco. Dois Papas que vivem a contemporaneidade acelerada e de transformações profundas. Um é contido, solitário, erudito, convicto, inflexível. O outro é expansivo, com senso de humor ("sou argentino. Tango e futebol são compulsórios."), sociável, humilde, flexível. Entre os dois, - em em visões antagônicas -  a responsabilidade e o futuro da Igreja.

Anthony Hopkins e Jonathan Pryce estão simplesmente sensacionais! Mestres da atuação! Que experiência vê-los nas cenas! Impossível não destacar a cena das confissões... Quanta beleza nos olhares e gestos...

Os diálogos são maravilhosos! Que roteiro! Que conteúdos! Quantas reflexões atuais e pertinentes! Tão necessárias!

Que cenários! Jardins, Vaticano, Capela Sistina. Que ambientação! Que reprodução do luxo, da opulência, dos rituais!


















Que referências musicais inesperadas! ABBA, Beatles,  Mercedes Sosa, Besame Mucho, e por aí vai. Que salada mista deliciosa!

Que belíssima  direção do Fernando Meirelles! Madura, sagaz, fluida!

Ainda que a maior parte das situações sejam ficcionais, a pertinência do confronto de ideias, de vocação e de visões abre uma importantíssima porta de discussão. Sobre religião. Sobre política. Sobre humanidades.

E, principalmente, sobre os limites e consequências das nossas atitudes indulgentes e/ou redentoras.



quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Tia Vera.









Tia Vera não era irmã da minha mãe de verdade. Mas era irmã da minha mãe de verdade.  Uma irmã muito próxima, sempre presente, parte indissolúvel da história da minha mãe. Dos meus pais. Da nossa. Da minha.

Tia Vera não era minha tia de verdade. Mas era minha tia de verdade. Uma das maiores referências de tia que tive. E cuja presença me marcou em todas as fases da minha vida.

Tia Vera era linda! Chique. Elegante. Sempre impecável. Dos pés à cabeça. Acordava já arrumadíssima! Nenhum fio de cabelo fora dol ugar. As unhas sempre feitas. A roupa sempre adequada. E sempre com joias. Aliás, acho que não houve casamento mais feliz do que ela e as joias. Completavam-se. Entendiam-se. Uma sempre valorizava a outra.

Tia Vera tem a casa mais linda que já conheci! De um bom gosto incomparável! Cada canto, cada peça, cada objeto, cada detalhe de encher os olhos! Peças belíssimas! Composições de pura arte. Uma casa tão bela quanto acolhedora. Uma casa onde sempre me senti em casa. E que me maravilhava pela beleza e sofisticação.

Tia Vera tinha uma personalidade forte. Muito forte. Marcante. E que se impunha. Suavemente. Pensando bem, acho que nunca ouvi a tia Vera falar mais alto ou mais rispidamente com quem quer que seja. A voz era sempre pausada, tom baixo. Mas com muita autoridade. E de senso humor fino e sempre tão pertinente! Era um prazer estar e conversar com ela!

Tia Vera adorava dar ordens! Ela se auto intitulava general. Ria de si mesma  pela patente conferida. E era mesmo um general. Tudo à sua volta funcionava perfeitamente. Não descuidava de nada e de ninguém. Estava à frente de tudo! Era de uma eficiência absurda!

Tia Vera inventou o empoderamento feminino. Mesmo. Se houve uma mulher empoderada, foi ela! Versátil, mil facetas, mil habilidades, mil competências. Mil de tudo! Sem nunca descuidar da família, das amigas, da religião.

Tia Vera passou por perdas profundas. Perdeu um filho, perdeu um genro muito querido, perdeu um neto, perdeu o marido, meu querido e saudoso tio Orlando. Enfrentou cada perda com a altivez de uma rainha e reinventou-se a cada uma, sempre surpreendendo pela fortaleza e capacidade de manter-se firme, inteira.  Pela e para a família.

Tia Vera e minha mãe são amigas há 70 anos. Uma amizade mais longeva do que a vida de muitas pessoas. Meu pai e meu tio trabalhavam juntos e eram amigos antes mesmo de se casarem. Meus pais se casaram num janeiro e tia Vera e tio Orlando em dezembro do mesmo ano. Meus pais tiveram 5 filhos; eles tiveram 6. E assim crescemos nós, os filhos, construindo, nos laços dessa amizade tão rara, nossos próprios laços de afeto. E assim ganhamos esses primos de vida, a quem amamos profundamente!

Tia Vera foi a porta de entrada na nossa mudança para São Paulo em 1978. Foi a guia da minha mãe. Ensinou o caminho das pedras. E trouxe para a vida da minha mãe outras tantas amigas... Amigas  que também adotamos como tias e de quem também herdamos primos e primas tão queridos!

Tia Vera foi a mão que segurou a mão da minha mãe quando o meu pai morreu. Mão que nunca largou. Nunca se largaram. Nunca. Mãos atadas, preocupadas, confortadoras. Mãos habilidosas que crochetavam incessantemente enquanto teciam e curavam suas dores e saudades.

Passei muitas férias na casa da Tia Vera. Ia com eles pra Campos de Jordão. Namorava o vizinho. Divertia-me com os amigos. Tantas ótimas lembranças... E a minha tia general sempre dando as ordens: "Maria Alice, vista assim, não vista assado." "Maria Alice, precisa fazer com que sua mãe faça isso, ou aquilo." "Andréa, precisa chamar o padre para dar benção à sua mãe." "Andréa, já falou com o padre?" "Maria Alice, falei com a Andréa, mas ela não chamou o padre. Precisa." E agora, mais recentemente, "Andréa precisa cortar o cabelo." "Maria Alice, você não pode deixar o cabelo grisalho." Quem conhece a tia Vera pode até ouvir o tom com que ela fazia esses comentários!

Tia Vera teve um AVC há alguns anos. Recuperou-se, ainda que não totalmente, com a determinação e amor à vida que sempre demonstrou! Minha mãe, por sua vez, cada vez vai ficando mais frágil... E meu coração se enche de amor lembrando-me das duas, principalmente nesses dois últimos anos, visitando-se com todas as limitações físicas e mentais, mas querendo estar juntas, dando-se as mãos nunca desatadas, estando. Estando. Do lado. Ao lado. Onde sempre estiveram. Como sempre estiveram.

Tia Vera nos deixou na última terça-feira. Perdeu uma longa batalha que travava há seis meses. E nossos corações se apertam, tomados de imensa tristeza...

O mundo fica menos chique. Menos elegante. Menos poderoso.

E a mão da minha mãe fica solta... Ela, ainda que não saiba, - felizmente! - perde a sua maior e melhor amiga...

E nós todos, os 5 de cá e os 5 de lá, estendemos os nossos  corações para que essa linda história de amizade se perpetue em nós!












quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Carta para Marcela.

Cecela:

Eu sei que hoje o dia deveria ser só seu. E até é. Em parte. Porque esse dia, na verdade,  é nosso. Egoisticamente, sem qualquer pudor, apodero-me do seu dia porque, nele, no seu dia, no dia 21 de novembro de 1974, no dia em que você nasceu, nasci também. Como tia pela primeira vez. Como sua tia.





O seu nascimento foi um dos momentos mais transformadores da minha vida. Das nossas vidas. De todos nós que te amamos. E que te esperamos tão ansiosamente. E que te recebemos com o amor maior que cabia em nós. Amor que nem coube. Transbordou. Ainda transborda. Todos os dias.

Quando eu soube que você ia chegar, eu estava no programa de intercâmbio nos EUA. Recebi a notícia "oficial" POR CARTA ESCRITA PELO SEU PAI!!! Acredita?? Extra-oficialmente, por cartas da sua mãe e da vovó. Eu fiquei tão feliz!!! Tão feliz!!! E te trouxe roupinhas de bebê e, pasme, fraldas descartáveis, que ainda não estavam disponíveis no Brasil. Poucas, é verdade, pois era o que dava para acomodar na mala, mas um pouquinho deve ter ajudado a sua mãe.

Você chegou numa quinta-feira. Que quinta-feira feliz! Seu avô Darc, por exemplo, subiu correndo as escadas do Silvestre pra te conhecer. Vovó Ieda preparou a sua coleção de vestidinhos bordados. Os mais lindos que já vi.  Tia Eli preparou a notificação do seu nascimento. E nós todos não contínhamos a nossa alegria pela sua chegada. Acho que todo mundo que a gente conhecia sabia que você tinha nascido. Acho que até quem a gente nem conhecia.





E você era tão linda... Moreninha. Olhar atento, observador. O mesmo olhar atento e observador (e crítico!) que se tornou a sua marca registrada.

Acho que fui te ver TODOS OS DIAS durante as primeiras semanas. Não me cansava de olhar aquela bebezinha linda! Minha sobrinha! Minha primeira sobrinha! Adorava ajudar a sua mãe. Adorava cuidar de você. Lembro-me da formatura da sua mãe, apenas algumas semanas depois do seu nascimento. Seu pai, vovó e vovô foram à cerimônia e sua avó Nair ia ficar com você. Fiquei junto. E tinha certeza de que saberia cuidar de você melhor do que ela (cá entre nós, que nem ela e nem seu pai me leiam, cuidava melhor mesmo!)






Com você, conheci esse universo inesgotável das emoções de ser tia. Você me ensinou esse amor que é fruto do amor entre irmãs e que, automaticamente, genuinamente, espontaneamente, se transfere para aquele serzinho frágil e dependente. Mas um amor que, aos poucos, toma forma única, pessoal, independente. E acha a sua própria forma de expressão e emoção.  Amor que cresce e constrói laços, afinidades, memórias.

Sua mãe foi muito generosa nesse sentido. Deu-nos livre acesso e permitiu, sem restrições, que fizéssemos parte da sua vida. Hoje acho que ela era louca. Ou irresponsável. Ou ambos. Porque te levávamos pra cima e pra baixo. De ônibus, à praia, ao circo, e onde mais quiséssemos. E você, pequenininha, se agarrava no nosso colo. E eu derretia de amor...

Com você vivemos todas as primeiras vezes: primeiro banho, primeira papinha, primeira risada, primeiro dentinho, engatinhar, andar, primeiras palavras, primeiro aniversário, primeiro dia de escola (fomos em comitiva!), primeira festa junina, primeiros, primeiros, primeiros! É bem verdade que tivemos que pagar alguns micos também. O mais traumático era empurrar o carrinho vazio pela General Glicério, com as pessoas se virando pra ver o bebê dentro e não ter bebê dentro. O seu carrinho de bebê ficava na casa da vovó, porque era puxado para a sua mãe empurrá-lo na ladeira em que você morava. Na hora do seu passeio, uma de nós levava o carrinho até a descida da Luis Catanhede. E, quando acabava o passeio de Sua Majestade, levávamos o carrinho  - vazio - de volta. Nada divertido!

Mas nada, nada supera a emoção da primeira vez em que você me chamou de Ticinha! Foi na sua casa. Em alto e bom tom. Desse jeitinho certinho com que você pronunciava cada sílaba! TI-CI-NHA!! Meu Deus! Quase morri!!





E você foi crescendo, crescendo, crescendo. E tornando-se essa pessoa tão especial. Tão opinada. Com aquele olhar apertado de quem está elaborando uma nova teoria da relatividade. E tão cheia de surpresas! A maior pesquisadora da internet. A que transita entre sanduíches decorados, bolos confeitados, aulas de árabe e nem sei mais o quê.

Companheira! Ajudou tanto com a minha primeira casa... Esperava comigo a entrega dos eletrodomésticos e móveis. E foi, junto com as suas primas, a minha primeira hóspede! Fizemos bons passeios por   Brasília.  Compramos armações de óculos falsificadas, conhecemos bijuterias de sementes. E aprendi sobre design. Fico CHOCADA com você e seus conhecimentos de arquitetura e decoração de interiores! De onde veio isso??? E adoro quando a gente conversa pelo telefone! Porque você sempre tem novidades! Sempre tem algo que me deixa muda do outro lado. Porque você é sempre imprevisível!

E então, veio o Zé Renato... E vieram os amorecos... Amorecos lindos !! Amorecos deliciosos!! Tales e Laurinha!! Mais uma primeira vez: nossos primeiros gêmeos! Amor multiplicado que a  gente nem sabe como faz pra caber. Mas cabe. Sempre cabe. E sempre cresce.

E hoje, Cecela,  no dia 21 de novembro de 2019, no dia em que você comemora 45 anos, eu desejo que todas as felicidades do mundo sejam suas. Porque você merece TODAS e mais! Porque eu torço para que a sua vida seja colorida, suave, venturosa e surpreendente! Porque eu desejo que você realize tudo o que sonha!

E hoje, Cecela, no dia 21 de novembro de 2109, no dia em que você comemora 45 anos, eu agradeço você ser a minha primeira sobrinha! Agradeço você ter me ensinado esse amor transformador!

E hoje, Cecela, no dia 21 de novembro de 2019, eu comemoro, emocionada, meus 45 anos da Ticinha que eu absolutamente AMO ser!! !!

Amo você. Assim. Tudo.

Feliz aniversário! Pra você! Pra mim! Pra nós!

Ticinha.