domingo, 15 de julho de 2018

Vestiários.






Seu Artur era quem cuidava do vestiário feminino  quando eu jogava vôlei no Botafogo, na década de 70, no Rio de Janeiro. Era um velhinho baixinho, bem baixinho, encolhido. Tinha as pernas arqueadas, usava sempre o mesmo sapato de amarrar marrom e andava engraçado, desequilibrado. A boca  murcha era preenchida pela dentadura com a qual brincava de tirar e colocar  a maior parte do tempo. Era quase careca, e tinha uma boina-boné que era a sua marca registrada. E o sorriso mais doce de que tenho lembranças.

A entrada para o vestiário era pelas escadas que saiam por baixo da arquibancada. Era pequeno e escuro. Um banco grande, onde nos trocávamos, e um pequeno corredor com os chuveiros e sanitários. O Seu Artur ficava bem na entrada, fechado atrás do balcão que guardava os nossos  uniformes.

Tínhamos uniformes de treino e uniformes de jogo: calção preto, camiseta listrada preta e branca com o emblema do botafogo no lado esquerdo, meias brancas, tênis e joelheiras. Ele mantinha todos separados e arrumados com o maior cuidado! À medida que chegávamos, ele nos entregava a pilha individual e, no final do treino ou do jogo, devolvíamos o uniforme e ele nos entregava o "vale sanduíche - suco" a que tínhamos direito na lanchonete.  Ele mesmo lavava e passava os nossos uniformes e estavam sempre impecáveis! Havia também um código secreto para quando precisávamos de absorvente: biscoito. Sim, ele também nos provia com "biscoitos" para aqueles" dias.

Seu Artur era também responsável por levar as bolas de treino para a quadra. Ele as colocava dentro de um saco de couro enorme que arrastava com dificuldade, pois era quase o seu tamanho. O mesmo saco era levado quando tínhamos jogos fora, pois as usávamos para o aquecimento.

Parece pouco, mas era de grandiosidade indescritível! Porque há algo de sagrado no ritual do vestiário. Naquele espaço, entramos em outra sintonia. Não somos quem somos fora dele ou fora da quadra e convertemo-nos numa equipe, em números e funções. Vestir o uniforme é estabelecer comunhão, união. É incorporar, a cada peça, algo de dentro, fundo e único. Focar num objetivo, fazer mais e melhor, superar, ultrapassar. Despir o uniforme , por outro lado, é vibrar com vitórias ou amargar derrotas. E, a cada peça, voltar a ser quem se é fora dali.

Nessa visão, ser o guardião desse santuário tem uma importância enorme! O guardião mantém o mistério, a referência, a deferência. Ele, ao cuidar de cada pequeno detalhe, impõe respeito, ordem, concentração. Mais ainda, lembra o respeito àquele manto sagrado, ao legado, à herança,à história. Não consigo pensar em guardião mais fiel e eficiente o que o Seu Artur! Não há como descrever o seu orgulho e alegria a cada vitória nossa! Era como se fossem a energia e amor infiltrados, impregnados em cada uniforme os verdadeiros responsáveis pelo resultado. O segredo está ali: no vestiário.

Lembrei-me do seu Artur ao pensar nos vestiários de cada jogo dessa Copa do Mundo. E pensei em cada um dos guardiões daqueles santuários antes de cada jogo. No cuidado obstinado por cada uniforme de cada jogador. Na atenção para que tudo estivesse perfeito. Na ordenação para as melhores energias. Porque cada jogo começou ali.

Imaginei, sobretudo, a sensação esfuziante de quem preparou o vestiário para a seleção da França hoje. Cada uniforme pendurado, cada chuteira arrumada, cada garrafa de água. Esperança, torcida, orgulho, respeito. Perguntei-me se têm a noção de sua imensurável importância. E se sabem que são, também, em parte, donos daquela taça erguida.

E emocionei-me pensando em cada um deles. Em cada um de cada vestiário de cada jogo dessa Copa.

E tomei-me de  carinho transbordante e de saudades docemente doloridas do Seu Artur!








terça-feira, 10 de julho de 2018

As lições da caverna.








"Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos."  (Platão -  A República - Livro VII - O Mito da Caverna)



O Mito da Caverna, presente na obra "A República" de Platão, talvez seja um dos textos mais conhecidos e debatidos da humanidade.

Platão imaginava um grupo de pessoas  presas numa caverna, desde o nascimento, com braços, pernas e pescoços acorrentados  e forçadas a olhar unicamente para a parede ao fundo da caverna. Atrás dessas pessoas, e sem que elas pudessem ver, havia uma fogueira que projetava sombras e sons de objetos e seres  fora da caverna. Para os prisioneiros, obviamente, essas projeções constituíam a sua construção de realidade. Em dado momento, uma dessas pessoas conseguiu se libertar das correntes e sair da caverna. No início, ofuscado pela luz do sol e por  cores e formas desconhecidas, teve o ímpeto de voltar para a caverna. No entanto, com o passar do tempo, encantou-se com todas as descobertas e aprendizados. E quis, imediatamente, compartilhá-los com os seus companheiros de confinamento. Esses, no entanto, expostos apenas às sombras projetadas, não acreditaram nos relatos e sentiram-se profundamente  ameaçados pela "insanidade" do indivíduo que tinha conseguido sair e "inventar" outras realidades.

A caverna de Platão talvez nunca tenha sido tão bem representada como pela caverna da Tailândia, onde os 12 meninos e seu instrutor ficaram presos por dezoito longos dias. E as alegorias para sensação x razão, ignorância x conhecimento , pré-conceito x senso crítico ou qualquer outra dicotomia aplicável ao mito  nunca foram tão atuais.

A caverna da Tailândia trouxe lições e legados valiosos e necessários. Cada adversidade enfrentada - e superada - abriu caminhos  pelos nossos coletivos tortuosos e engessados.

Em primeiro lugar, destaco a empatia. Se há um sentimento que pode mudar  - e efetivamente muda! - as endurecidas relações humanas é a empatia. A mudança de solidariedade para empatia é pela dor. E isso faz toda  diferença! A solidariedade aproxima, mas mantém-se fora da linha divisória. É uma relação desigual entre quem tem e quem precisa. A empatia derruba essa linha e estabelece a igualdade que gera a dor, e, pela dor, a capacidade de verdadeiramente colocar-se no lugar do outro. Pensar naquelas crianças presas por tantos dias comoveu até os limites empáticos. Pelos pais - quem é pai/mãe sofreu imensamente; pelos jovens - crianças que se imaginavam na mesma situação; pelos professores/instrutores/educadores/técnicos/etc - quem está/esteve na situação de comando/orientação e se  reconheceu na imensa responsabilidade envolvida;  e pelos socorristas - que sabem as dificuldades e riscos  que toda a equipe de resgaste corria.

Em segundo lugar, destaco a prontidão generosa de todos os que, de alguma forma, podiam contribuir com seu conhecimento e experiência pelo sucesso do resgate. A disponibilidade espontânea que derruba barreiras geográficas, religiosas e políticas a serviço de vidas. Mergulhadores de tantas nacionalidades e técnicos de tantas especialidades unidos pelo mesmo objetivo. A morte de um dos mergulhadores  ganha uma simbologia gigante por abarcar todas as outras que puderam - felizmente - ser evitadas.

Em terceiro lugar, destaco a organização impecável, precisa e responsável. Que orquestração perfeita! Que planejamento minucioso! Cada passo, cada risco, cada detalhe que pudesse comprometer o sucesso! Desde a localização do grupo, passando pelos contatos, pela orientação básica de mergulhos, pela avaliação do clima, do horário, das idas e vindas até o percurso ser melhor conhecido e os obstáculos removidos, a administração emocional fora e dentro, e, principalmente, não exceder o limite físico e emocional que pusesse meninos e socorristas em risco, tudo calculado, revisado, ajustado. E centralizado por quem detinha conhecimentos, e não por captação pessoal, mediática ou política.

Aliás, a discrição e controle da mídia chamou a atenção. Em tempos tão imagéticos e de enorme visibilidade digital, não ceder à tentação da exposição é louvável! E indica o respeito às vidas muito maior do que a  vaidade virtual. Comparado ao resgate dos mineiros chilenos, por exemplo, a diferença é gritante! A exposição demasiada, a exploração da mídia e a interferência de tantos setores alheios à operação em si conturbam e perturbam e, de algum forma, contaminam as reais motivações. Tragédias são notícias, mas vidas não são produtos. Devem ser protegidas, respeitadas e preservadas. No sentido mais amplo e abrangente!

Por fim, destaco o treinador Ake, de quem já nos sentimos íntimos e admiradores. Se houve ou não imprudência de sua parte, esclarecimentos e averiguações oportunas dirão. Mas é fato que, dentro da situação de EXTREMA adversidade e complexidade, ele soube manter o grupo são, unido, sereno, funcional e apto a vencer limitações, medos e ajudar no seu próprio resgate. Esse será um elo eterno, jamais esquecido pelos meninos e inspirador para tudo o que venham a enfrentar no futuro.

Volto à caverna de Platão. E penso no quanto o conhecimento efetivamente ilumina, fortalece, amplia e desloca. E o quanto a ignorância obscurece, enfraquece, encolhe e engessa. E penso no quanto o conhecimento é capaz de dosar a razão sensitiva e a sensação racional. E penso no quanto o senso crítico transforma e provoca mudanças. E penso que o sucesso dessa operação deveu-se, sobretudo,  à troca de conhecimentos e aprendizados entre os que  estavam  dentro e os que estavam fora da caverna.

Penso, sobretudo, no quanto o BEM sobrevive, latente e pungente, em nossas cavernas submersas em lodo e estreitos atingíveis!

Salve, Tham Luang!




terça-feira, 19 de junho de 2018

Chico. 74 anos. Eternamente...











"Esta canção não é mais que mais uma canção... Quem dera fosse uma declaração de amor..." (Yolanda - Chico Buarque)

Chico Buarque completa hoje 74 anos de idade!!!

 Dos seus 54 anos anos de carreira, acompanho, ativa e apaixonadamente, 52. Chico é, desde a infância, a minha referência absoluta!

Com Chico aprendo música, letra e a voz inconfundível. Aprendo política e o olhar de mundo crítico e preciso. Aprendo o amor em todas as suas formas de amar. Aprendo a poesia, a prosa e a dramaturgia. Tem artista mais completo? Ou tão máximo em tudo?

Chico tem me proporcionado as melhores memórias culturais. Não perdia Pra Ver a Banda Passar, seu programa na TV com Nara Leão. Tive o privilégio de participar dos shows no Teatro Opinião (quantos autógrafos! Sim, quem ia comigo sabia que depois tinha que correr atrás de autógrafos!), shows memoráveis no Canecão (incluindo o inesquecível show com a Maria Bethânia), alguns raríssimos no João Caetano e o show arrebatador  com Pablo Milanes (foi ali que tomei-me caudalosamente de Yolanda! Anseio por uma neta com esse nome!), além dos mais recentes. Vi Gota d'Água om Bibi Ferreira, Os Saltimbancos na montagem original e a Ópera do Malandro (pelo menos 5 vezes!) com Marieta Severo e Elba Ramalho. Li Fazenda Modelo, Chapeuzinho Amarelo, Estorvo, Benjamim, Budapeste, Leite Derramado e o Irmão Alemão. Assisti Quando o Carnaval Chegar, Certas Palavras e Chico - Artista Brasileiro. Tenho alguns livros de coletâneas e resenhas, além de 12 dvds sobre a sua obra. E devo ter quase todos os LPs e Cds. (incluindo um maravilhoso de duetos geniais!) Desses, tenho carinho especial pelos três primeiros, que ganhei omo presente no meu aniversário de 10 anos.

Comemorei os meus 40 anos num show dele no Canecão. No meio de um daqueles silêncios entre uma música e outra, ouviu-se uma voz bem alta na plateia: INSUBSTITUÍVEL!!! Foi uma gargalhada geral! Dele, inclusive! Mas, no íntimo, era o que todos pensávamos. Para mim, pelo menos, é e sempre será! Chico. O meu Chico. Sempre. Desde sempre. Para sempre. Insubstituível.

Com ele vivencio a indescritível relação de fã. Fã  vem do latim "fanaticus", com significado original "aquele que se diz inspirado pelos deuses" e, posteriormente, "aquele que tem admiração excessiva por alguém". Desse último sentido, o inglês adotou "fanatic" e o diminutivo "fan". E assim, emprestamos do inglês a nossa adaptação para fã. Particularmente, prefiro o significado original. Ser inspirado pelos deuses remete à manifestação artística e criativa na sua essência mais cristalina e pura. Como o Chico. Inspirado e inspirador. Valter Hugo Mãe, um dos meus escritores  preferidos da atualidade, já disse que "o Chico Buarque está perto do super-humano. É alguém que está um pouco para lá do que é expectável do simples humano. Caetano Veloso, no aniversário de 70 anos do Chico, escreveu: "Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico."

Ser fã do Chico tem sido me reconhecer na sua obra. Ecoar nos seus pensamentos. Encantar-me com o seu poder quase mágico de combinar palavras incombináveis. Surpreender-me com poesias onde poesia não cabe. Decifrar o mundo na beleza até onde ela falta. Fazer o cotidiano especial. E desafiar tantas e tantas expressões e linguagens.

E por todos esses momentos, essas memórias, essas emoções, esses diálogos com a sua obra, essas letras, essas músicas, esses livros, essas peças, essa voz, essa presença e, claro, esses olhos de luz, celebro a data e as  inspirações!

Viva Chico!!!



sexta-feira, 1 de junho de 2018

Quero Morrer Com Meu Próprio Veneno.






"Não pode ter sido de outro modo, que o ponto principal é o seguinte: se eu me afogar voluntariamente, pratico um ato; um ato é composto de três partes: agir, fazer e realizar. Logo afogou-se porque quis. " (Shakespeare - Hamlet - Ato V -Cena 1)


As mulheres de Shakespeare são complexas, multifacetadas  e,  por vozes emprestadas, transcenderam os limites de sua condição de submissão dentro de uma estrutura patriarcal extremamente estratificada.


A doce Julieta (Romeu e Julieta), a obediente Desdêmona (Otelo), a casta Miranda (A Tempestade), a independente Catarina (A Megera Domada), a poderosa Cleópatra (Antonio e Cleópatra) e a ambiciosa Lady Macbeth são algumas das heroínas que ainda permitem leituras contemporâneas do papel social da mulher.


Mas nenhuma outra personagem de Shakespeare tem sido mais inspiradora do que a frágil Ofélia de Hamlet!  A  bela jovem que foge de sua loucura entregando-se ao sono plácido rodeada  por flores no berço de águas foi/tem sido musa inesgotável  na pintura, poesia, cinema, moda, ensaios fotográficos - e teatro.

Ophelia (1852) de Sir John Everett Millais.



Elena , filme de Petra Costa.


A jovem Ana Carolina, integrante do Núcleo de Dramaturgia SESI - British Council que há 10 anos estimula a escrita como processo de renovação, apresenta um texto estimulante que multiplica Ofélia em 3 para negar a sua história determinada pelo universo masculino.


A diretora Mika Lins  - e seu mega competente assistente de direção Daniel Mazzarolo, não por acaso, meu filho - levam ao palco essa verdadeira revolução Ofeliana! Que resultado incrível!




Luisa Micheletti é o presente, a visão sobre si mesma. Luiza Curvo é o pensamento, a interpretação  sobre a realidade dos acontecimentos e Luna Matinelli é os olhares dos outros, pelo seu ponto de vista.Uma Ofélia que fala, uma Ofélia que pensa e uma Ofélia que escuta. É na interação e alternância  entre as 3 Ofélias que refletimos sobre resistir ou sucumbir num mundo ainda hostil a Ofélias.

Mika nos presenteia com um trabalho lindíssimo, sensível, poético e muito alegórico.

A unidade e independência das 3 atrizes é impressionante!Que sintonia em palco! Que expressividade dramática! Que belíssimo trabalho corporal!





Gosto muito dos cenários e figurinos da Mika, quase sempre minimalistas, mas muito  eficientes! Desta vez, o palco  é, na verdade, um corredor ocupado por  vários vestidos de tule preto pendurados como fantasmas. O efeito é lindíssimo! As Ofélias igualmente se vestem de preto com transparências em tule.



A potência do cenário e figurinos é complementada pela  iluminação nada sutil que corre e corta o corredor e as personagens em feixes luminosos de cores fortes. As sequências do verde e do vermelho impressionam pela  beleza e dramaticidade.




A maior qualidade da montagem é libertar-se do enredo de Hamlet. A  referência necessária - mas apenas a necessária -  é, acertadamente, por gravação em off.  Desta forma, o protagonismo é, definitivamente, retirado das mãos de Hamlet, Polônio e Laertes -  respectivamente o noivo, o pai e o irmão -  para ser,   finalmente,  conquistado por Ofélia  para a escolha de seu próprio destino.

A composição da(s) Ofélia(s) contemporânea(s) trazem mais uma voz  - em altíssimo tom - para as questões cada vez  mais urgentes sobre a sociedade ainda pautada pelo homem. E que precisam conceder a liberdade para que cada Ofélia morra com  seu próprio veneno!















domingo, 20 de maio de 2018

Casamentos reais.








Canterbury, cidade ao sudeste da Inglaterra, é o principal centro religioso do Reino Unido e sua catedral, Patrimônio da Humanidade, abriga o líder espiritual da Igreja Anglicana, o arcebispo de Canterbury.

Sua relevância histórica e cultural foi imortalizada por Geoffrey Chaucer nos famosos  The Canterbury Tales, escritos entre 1380 e 1400. A coletânea de contos descreve a viagem de peregrinos de todas as classes sociais de Londres a Canterbury para visitar o túmulo de St. Thomas Becket, arcebispo decapitado em 1170. A importância dessa obra é enorme, pois foi a partir dela que o inglês foi consolidado como língua literária em substituição ao francês e ao latim, idiomas predominantes naquela época.

Assim, não há como pensar em qualquer evento religioso dentro da Família Real sem a condução do arcebispo de Canterbury.

Costumo brincar - seriamente - que a Rainha Elizabeth é o meu reconhecimento de mundo. Em meio ao caos ou sucessão de preocupações pessoais e/ou coletivas, saber que ela ainda existe me dá chão e norte. Após a cerimônia de casamento do príncipe Harry, vou um pouco mais além: reconheço-me no mundo  sob a presença da Rainha e a benção do arcebispo de Canterbury!

Anacronismos à parte, ideologias à parte, feminismos à parte e demais "às partes" cabíveis, a realeza inglesa exerce inegável fascínio! E casamentos reais ingleses reativam todos os mitos e arquétipos de príncipes, princesas e finais felizes. O mundo para. Assiste. Emociona-se. Torce, ainda que torça o nariz. Quem não?

Assisti, arrebatada, aos três casamentos mais importantes das últimas décadas! Cada um com suas particularidades. Em seu contexto.  Com seu apelo. Em seu alcance.






O mundo apaixonou-se por Lady Di em 1981! Um casamento dos sonhos na belíssima Catedral de St.Paul's! ! A princesa de todos! Suave e linda  no vestido que entrou para a história criado por David e Isabel Emanuel,  com a tiara da família Spencer em ouro e diamantes colocados em prata,  e um buquê enorme que nem imagino quanto pesava.






Príncipe William e Kate Middleton casaram-se na Abadia de Westminster em 2011. Como não se emocionar com o futuro rei tão parecido com sua mãe? Como não desejar que ele construísse a sua própria família e perpetuasse o legado? Kate já era amada e aprovada para preencher o vazio que sua sogra havia deixado! Segura e delicada, usou um lindíssimo vestido de renda desenhado por Sarah Burton (Alexander McQueen), tiara Cartier que havia sido dada a Elizabeth II pela Rainha Mãe, e buquê  mais modesto, composto por  várias flores típicas da Inglaterra e muguet, símbolo de boa sorte.






O casamento do príncipe Harry com Meghan Markle na maravilhosa St.George's Chapel não carregou o peso da hereditariedade da coroa dos dois anteriores, mas estabeleceu, certamente, um divisor de águas. Em tantos sentidos. Em tantos pequenos detalhes. A elegância do vestido minimalista criado por Clare Waight Keller (Givenchy) dividiu protagonismo com o  véu absolutamente espetacular com suas 53 flores bordadas à mão representando os 53 países do Commonwealth. Grande simbolismo para uma noiva nascida em um país que foi colônia da Inglaterra! A tiara de 100 diamantes foi da Rainha Mary, avó da Rainha Elizabeth. O buquê, também discreto e simples, foi confeccionado a partir de flores colhidas pelo próprio príncipe Harry.





A espontaneidade, ainda que dentro do rígido protocolo, marcou a cerimônia. A caminhada dos dois irmãos até a entrada da Capela trouxe à memória os mesmos dois meninos caminhando ao lado do pai no funeral de sua mãe. Quem não se lembrou daquele momento? Quem não desejou que a insubstituível Princesa Diana  pudesse ver os seus meninos homens feitos? Meghan percorreu sozinha, poderosa, a primeira parte da nave central, sendo só então conduzida por seu sogro. Sua mãe cativou pela emoção incontida durante toda a cerimônia! Os olhos marejados eram os olhos de todas as mães que torcem pela felicidade de seus filhos. Lady! E a inesperada resposta "I hope" a invés de "I will" arrancou risadas.

A música foi, sem dúvida, a marca do casamento!  Sublimes solos de vozes e solos de violoncelo (aqui vale uma pequena explicação do Ronaldo Miranda, compositor brasileiro que tenho o privilégio de conhecer há muitos anos: a escolha do violoncelo não foi por acaso. Além do talento inquestionável do jovem músico de apenas 19 anos e de quem o casal se tornou admirador, o violoncelo é o instrumento que guarda maior similitude com  voz humana)!   O tradicional coral de crianças ao lado do inusitado coral Gospel entoando Stand By Me deu vontade de cantar junto e sair dançando! E, para encerrar, o hino britânico God Save the Queen. It was a royal wedding, after all! Magistral!





Volto à Rainha. Elegante e moderna com um vestido estampado em verde-limão e roxo. 92 anos. Nos seus 66 anos de reinado, tem presenciado mudanças sociais que confrontam a rigidez  da pesada coroa que ostenta. Questionamentos sobre a sobrevivência da realeza no mundo contemporâneo, popularidades em gangorras, escândalos e divórcios no núcleo mais central. Humanidades que não podem mais se esconder atrás de palácios impenetráveis. Fragilidades reconhecidas que aproximam mais do que distanciam. E a sabedoria de tentar acompanhar as escolhas pessoais que lhe foram negadas, mas que ela, aparentemente, permite à sua sucessão. Concessões impensáveis há apenas algumas décadas. Mas que apontam para relações construídas em bases mais reais - literais e metafóricas - e que apontam a possibilidade de convivência entre a  tradição que define o Reino Unido e a modernidade que não pede permissão e nem precisa se curvar diante de sua monarca.

E volto aos arcebispos de Canterbury. Robert Runcle celebrou o casamento de Charles,  recepcionando o primeiro cardeal católico a participar de uma cerimônia religiosa desde o rompimento de Henrique VIII com Roma. Rowan Williams celebrou o de William, num evento festivo e promissor de superação ao funeral de Lady Di na mesma abadia.  E Justin Welby celebrou o de Harry, cedendo espaço para o bispo americano Michael Curry. Sem duvida, um momento importante de protagonismos compartilhados. Enquanto um manteve-se fiel aos rituais tradicionais, o outro trouxe irreverência, coloquialismo e um quê de Broadway que destoou, num certo sentido, da natureza de seus anfitriões.

Contos de fadas jamais deixarão de fazer parte da construção do nosso imaginário. Reis, rainhas, príncipes e princesas serão sempre arquétipos necessários. Mudarão belezas, sonhos, ambições, atitudes. Terão escolhas. Serão iguais. Terão vozes. Mudarão vozes. Terão novos papéis, novas missões. Serão modelos de outras ideologias. Ainda bem.

Mas a monarquia inglesa sempre será referência. Sempre inspirará finais felizes. God save the Queen. Com a benção dos arcebispos de Canterbury. Amém.





quarta-feira, 18 de abril de 2018

Dia do" Era uma vez" verde e amarelo.








É no  encontro com qualquer forma de literatura que ampliamos, transformamos e enriquecemos nossas experiências de vida. A literatura infantil, como primeiro contato da criança com a infinitude do universo literário, tem importância vital no seu desenvolvimento!  É através do prazer, da entrega, da curiosidade,  da identificação e da imaginação que ela aprende  a coordenar palavras, ideias e emoções e, a partir daí, formular suas visões individuais de mundo.

Uma vez estabelecida - com sucesso - essa relação, as possibilidades são ilimitadas! E a criança mergulha em descobertas e explorações de labirintos reveladores e surpreendentes! Dela e do mundo que acerca.

Fábulas, Contos de Fadas e Lendas. A literatura infantil constituiu-se, desde os seus primórdios, no fantasioso e maravilhoso. E essa linguagem metafórica comunica-se facilmente com o pensamento mágico e natural da criança.Os significados simbólicos dos contos maravilhosos estão ligados aos eternos dilemas que enfrentamos ao longo do nosso amadurecimento emocional. E as dicotomias apresentadas na literatura infantil - bela/feia, boa/má, poderoso/fraco, etc - lidam com valores perenes. O que muda, através das gerações, é o que se define como certo/errado.

Tive a sorte de vir de uma família que valorizava e incentivava a leitura desde a mais tenra idade! E também a sorte de frequentar ambientes escolares que ensinaram e exploraram o gostar de ler!

A estante sempre teve lugar de destaque na minha casa. E nela, perfilavam-se coleções encadernadas dos clássicos da literatura: Reino Infantil, Croni, Machado de Assis, José de Alencar, Malba Tahan, Sherlock Holmes, Coleção Menina e Moça (mais do que apropriado para uma casa com quatro mulheres!etc, etc, etc... E, claro, Monteiro Lobato!

Monteiro Lobato... Determinante na minha relação com a leitura. Sem dúvida alguma, a maior influência! Inestimável. Incomparável. Inigualável. Desbravador e libertador da minha emoção literária. Li-o, reli-o. Avidamente. Repetidamente. Apaixonadamente. Deslumbrada. Maravilhada. Tocada. Transformada. Sonhei e vivi aventuras. Com e sem o pó de pirlimpimpim. Estive em todos os reinos, de Águas Claras à Grécia de Hércules. Mas fui sempre brasileira. De saci-pererê e onça pintada. Fui vários. Todos. Narizinho faceira, Pedrinho valente, Visconde sábio. E, embora não me lembre sob que circunstâncias, certamente fui também Rabicó alguma vez. E fui Emília espevitada quase sempre. Ou, pelo menos, na vontade de ser. Minha grande heroína! E senti pontadas por Dona Benta. E salivei as quitutes da preta negra Tia Nastácia. E nem por isso cresci racista!

Monteiro Lobato disse: "Ainda acabo fazendo livros onde as crianças possam morar." Já pensaram? Megalópolis de livros - de Monteiro Lobato e de todos os outros talentosos autores- com infinitas portas para mundos múltiplos, mágicos, viáveis, inviáveis, possíveis, impossíveis, temidos e desejados?

Acreditar que SEMPRE era uma vez... Afinal, sem uma vez que era, nenhuma outra vez será!

domingo, 1 de abril de 2018

Mentira.





Envolveu cada verdade em uma lágrima e chorou uma a uma sentida e profundamente. Restaram apenas as mentiras. Secas. Curadoras. E única possibilidade de felicidade.