segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

D.Algenir. A maior figurista dos carnavais!

 Passei a minha adolescência na Rua General Glicério, em Laranjeiras, certamente  uma das ruas mais lindas do Rio de Janeiro! Rua General Glicério, 440. Edifício Pajeú. Morávamos no 5º andar. Apartamento 502. No apartamento 503, morava a Cristina Sobral (também conhecida como Sobralina), neta ilustre do ilustre Sobral Pinto, de quem me apropriei também do tratamento íntimo "vovô Sobral". No apartamento 602, bem  em cima do nosso, morava a Graça Miranda (também conhecida como Graciosa). Formávamos um trio inseparável, e, para nossa sorte, continuamos trio até hoje. Juntas, tornamo-nos , assumidamente, gralhas, ou hienas, ou retardadas (até os filhos, muitas vezes, se referem a nós dessa forma!). A nossa capacidade de rir e falar besteira é inesgotável! 

Somos um trio singular. Eu e a Cristina sempre adoramos praia. A Graça não ia à praia. Eu e a Cristina adorávamos carnaval. A Graça não ia com a gente. Eu e a Cristina fumávamos escondido na escada. A Graça não fumava. Eu e a Cristina fuxicávamos tudo. A Graça pegava uma revista e lia. Eu e a Cristina brincamos, até hoje, de sermos repórteres culturais e esportivas. Simulamos transmissões ao vivo, inventamos entrevistas, conversamos com os nossos ouvintes! A Graça nos chama de loucas e se recusa a fazer parte da nossa equipe. Vocês precisavam escutar algumas das nossas transmissões "ao vivo". Põe qualquer live da Bethânia no chinelo!  

O que isso tudo tem a ver com figurinos de carnaval?  Tudo a ver! Porque a mãe da Graça, D. Algenir, essa linda da foto abaixo, era uma costureira de mão cheia! E eu e a Cristina tivemos a sorte de sermos presenteadas com os modelitos mais lindos do mundo!!! 

O melhor deles, e mais original, foi um pós-banho. Segundo a d.Algenir, era um substituto do roupão de banho (que a gente nem usava!) para sairmos do banho e ficarmos confortáveis até vestirmos a nossa roupa.  Era, na verdade, um tomara-que-caia curtinho, com um elástico na cintura. Os dois eram estampados e o meu era amarelo. Como a gente adorava aquele pós-banho!! Íamos pelo corredor uma pra casa da outra, sempre de pós-banho! Sentávamos pra fumar escondido na escada de pós-banho! Reuníamos para ouvir música de pós-banho! A gente não largava o pós-banho! Foi, sem dúvida, a peça de roupa que mais marcou a nossa adolescência! E não me conformo de não termos uma só foto para mostrar! 

Mas as melhores criações da D.Algenir foram as nossas fantasias de carnaval! Eu e a Cristina íamos, todos os anos, aos bailes da AABB e, aos domingos, quando acabava o baile, tentávamos entrar nas arquibancadas da Presidente Vargas para ver os últimos desfiles das Escolas de Samba. A Graça, claro, não ia com a gente. Mas d. Algenir garantia os nossos figurinos. E era assim, ano após ano, que desfilávamos os nossos pareôs super estilosos! Íamos de par de vasos! Mudava a estampa, mas o modelo era exatamente igual! E como a gente gostava! Como a gente se sentia mais linda do que qualquer fantasia em qualquer salão do Rio de Janeiro! Uma vez, num dos últimos carnavais a que fomos de clube, d.Algenir se esmerou! E fez uma baiana estilizada maravilhosa!!! A saia era bem curtinha, de renda branca. O bustier e o arranjo da cabeça eram de lamê dourado. Ficou MARAVILHOSA! 

Nesse carnaval tão atípico, recluso e confinado, as minhas memórias de carnaval jorram! E olho pra trás com uma enorme saudade... Mas, ao mesmo tempo, com uma alegria infinita por tantos e tantos carnavais aproveitados até o último acorde do "Cidade Maravilhosa"! 

E, mergulhada nessas memórias tão doces, tão foliãs, tão agradecidas, veio uma imensa saudade da d.Algenir... 

E me imaginei na escada entre o 5º e 6º andar do Edifício Pajeú... Vestida no meu pós-banho esperando a hora de colocar o meu pareô e cair na folia! E sei que a estrelinha lá no céu iria sorrir, orgulhosa das suas criações!

Salve, d. Algenir! Linda! Querida! Maravilhosa! 

 










Vocês não têm ideia! 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Monica. Porque a primeira amiga da adolescência a gente nunca esquece.





Monica foi a minha primeira amiga quando voltei ao Rio com 10 anos de idade. Estudamos juntas na Escola Municipal Albert Schweitzer, na mesma rua em que morávamos. Quer dizer, na rua em que eu morava, Rua General Glicério, em Laranjeiras.  A Monica morava na rua de trás, Rua Professor Ortiz Monteiro, no icônico Edifício Três Mosqueteiros. Da área de serviço da minha casa eu conseguia ver a janela do quarto dela. E era assim que nos comunicávamos para combinar quem ia pra casa de quem. Porque sempre íamos uma pra casa da outra.

Estudamos juntas por apenas 1 ano. No Admissão, eu fui para o Colégio Teresiano, na Gávea. Não me lembro para onde a Monica foi... No ano seguinte, ambas tentamos o sorteio para entrar na 5ª série do Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp) , na Lagoa. A Monica foi sorteada. Eu não. Continuei no Teresiano. Mas nossas janelas continuaram. E, como adendo dela, fui conhecendo os seus amigos e me entrosando no CAp.

Mônica repetiu a 5ª série. Eu entrei no CAp na 6ª série. E, ainda que tenhamos ficado em séries separadas,  nunca deixamos de estar juntas. Nunca. Herdei a sua turma original, da qual ela também jamais deixou de fazer parte.  E ampliamos nosso pequeno círculo com os novos alunos de sua nova turma. E nossas janelas continuaram.

Meu irmão nos levava para o Cap todas as manhãs. Minha irmã caçula, Andrea, e a irmãzinha da Monica, Rossana, também faziam parte da comitiva. E era a mãe da Monica que nos trazia de volta no final da manhã. Nossa convivência ultrapassou o universo de amigas. Virou família. Mesmo. Monica se tornou uma irmã. 

Minha adolescência foi ao lado dela. Não tínhamos segredos, tudo dividíamos. Usamos o primeiro soutien (eu antes que ela!) , menstruamos, demos o primeiro beijo. Juntas sonhamos, vibramos, descobrimos amores e todas as outras coisas importantes desta fase. Não me lembro de nada - importante ou não - que ela não tenha testemunhado ou participado. Eu mega metida, ela mega não metida. Eu na frente, ela na retaguarda. Uma encobrindo a outra. Inventamos roteiros fantásticos! Como tínhamos imaginação! Como ela tinha paciência com as minhas trapalhadas!  Ouvimos todas as trilhas sonoras de novelas ( a mãe dela SEMPRE comprava os discos das Trilhas Nacionais e Internacionais!)! Fizemos guerras de sapato contra a coitada da Rossana de deixar as marcas na parede do quarto! Fomos a festas! E nos metíamos em cada uma... E sempre, sempre, sempre, sempre, sempre defendíamos uma a outra. 

Monica era lobo em pele de cordeiro. Fala mansa... Quieta... Tímida... Mas por dentro... Quando o sangue fervia... Socorro!!! Por sorte, os seus ataques nunca foram dirigidos a mim! Não sei se sobreviveria! Monica tinha uma situação familiar conturbada e, volta e meia, "fugia de casa". Pra aonde? Pra minha casa! Perdi a conta de quantas vezes ela se refugiou conosco. Meus pais a acalmavam, a acolhiam, a mãe dela sabia que ela estava em segurança, ela ficava alguns dias, a poeira baixava, ela voltava pra casa. E essa rotina se repetiu inúmeras vezes. Eu adorava a mãe dela! Mais jovem, tinha uma cabeça mais aberta, a gente conversava muito! E meus pais adoravam a Monica! Virou filha mesmo! Uma vez, ela disse que, se um dia se casasse, queria que o meu pai entrasse com ela na igreja. Isso não aconteceu, porque meu pai morreu muito cedo. Nem sei se realmente aconteceria, mas era essa a nossa intimidade.

Vivemos nossas vidas adultas muito separadas depois que vim pra SP. Monica não teve uma vida fácil. Teve a Gabi sozinha, ficou viúva muito cedo e com outros dois filhos: Marcelo e Roberta. Bateu um pouco a cabeça, mas a sua capacidade de resistência e recomeços é impressionante! Tenho uma admiração infinita pela coragem, pela determinação, pelo despojamento! Hoje ela mora em Portugal. Um novo recomeço, que, espero, lhe traga tudo que ela sempre desejou, correu atrás e merece!

Hoje é o dia dela! 63 anos! E o que eu desejo não cabe nesse número tão pequeno pra contar a nossa história. 

Hoje é o dia dela! E eu só quero agradecer! Muito! Sempre! Porque se eu, ao longo da minha vida, aprendi a ser uma boa amiga, foi com ela que aprendi! Ela me ensinou a amizade da forma mais destilada, generosa e comprometida possível! 

Monica, minha irmã de alma e de vida: PARABÉNS!!!!!!! Te amo tudo o que posso!!!!





quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

63.




Hoje acordei com 63 anos completos. 

Quem me conhece sabe que nunca tive problemas com a idade. Passei dos 20 aos 30, dos 30 aos 40, dos 40 aos 50 e dos 50 aos 60 sem traumas. Com alguns sustos, claro. Mas sem traumas. Cada década é um pequeno susto. Não pelo o que ficou pra trás, mas pelo o que vem pela frente. Sempre acreditei que, se vivemos plenamente nossos tempos, o que fica pra trás é ganho. E não nostalgia. Nostalgia é um vazio incômodo pelo o que deixamos de viver. Nostalgia é diferente dos rompantes de saudades que sentimos. E que são bons de sentir. E que não nos deixam esquecer a nossa história.

Ter trinta anos foi o susto pelas responsabilidades do casamento e da maternidade. Ter quarenta anos foi o susto pela dosagem entre ser eu e ser as outras que eu tinha que ser. Ter cinquenta anos foi o susto de me resgatar fora do casamento e com os filhos independentes. E ter sessenta anos está sendo  escolher, dentro do possível, com o que, como  e com quem (con)viver. Inclusive a escolha pelos meus cabelos naturalmente brancos (aí, o susto foi dos outros! Não meu!)!

Os sessenta anos me têm sido relativamente leves. Prazeirosos. Cheios de humor. Plenos em novos aprendizados. Transbordantes de alegrias e orgulho de ver os meus filhotes trilhando os seus caminhos. Rodeados de jovens que me enchem de energia e compensação todos os dias. 

Mas mesmo com essa aparente serenidade e aceitação do tempo que passa, jamais, em tempo algum, imaginei completar 63 anos em meio a tamanho caos social, político e humano... Mas escolho não falar, aqui e agora, sobre o caos . Escolho  falar, aqui e agora, sobre as flores que brotam/têm brotado do caos.

Escolho falar da minha mãe, que aos 94 anos, tem (sobre)vivido bem, saudável, cuidada, amada! 

Escolho falar dos meus irmãos que, em enorme parceria e cumplicidade, nos alternamos para dividirmos nossas preocupações e dificuldades!

Escolho falar dos meus sobrinhos que nos mantêm desafiados e antenados! 

Escolho falar dos meus primos, de um e do outro lado, que têm sido um enorme alento e porto seguro!

Escolho falar dos amigos/amigas maravilhosos que tenho a sorte de ter. Amigos de longe, de perto, de antes, de durante, antigos, novos, cultivados, resgatados, adotados, descobertos, "reais", virtuais. Amigos que escutam. Ou que falam. E que falam outras línguas. Ou que riem junto comigo até a barriga doer. Ou que choram junto. Que ligam sistematicamente pra saber como estou. Que acompanham os programas bizarros aos quais assisto. Que leem os mesmos livros. Que mandam aqueles textos enormes que nem abro. Que discutem e criam polêmicas. Que mandam os links que você, sim, abre, lê e gosta. Que mandam fotos lindas. Que bordam, costuram, cozinham. E me inundam de fotos que começam a congestionar a memória do meu celular. Que me irritam de um jeito que nem sei dizer. E que me surpreendem de outro jeito que também não sei dizer.

Escolho falar dos artistas que são o único ar que nos fazem respirar e nos manter vivos. Artistas vivos  e os eternos. Os das pinturas, os das músicas, os das palavras, os das telas, os das belezas que até machucam e fazem chorar. E que me fizeram companhia todos os dias desse último ano. 

E, por fim, escolho falar dos meus filhotes. Do meu filho que, mesmo longe, me obriga a sair da minha zona de conforto. Que me dá ordens de "já sabe, né, mãe, de máscara, longe, não inventa!" Ou "Não tenho estrutura pra ver você ou o papai em risco". e que, às vezes, "Tá sem saco pra falar." E que, cada vez que me aparece na tela do meu computador, faz o meu coração transbordar. Ele é tão lindo! Ele é tão "gente"! E eu estou com tanta saudade de abraçar e beijar...

E da minha filhota linda. Meu facetime de todas as noites. Quietinha, faz a sua vida. E, às vezes, me joga  bombas. Joga, não. Comunica. E eu, quietinha, engulo. Não dá pra contrariar. E que me empresta a Nina. E que se preocupa. E faz minhas compras online. E organiza o que tem que organizar. E finge, e eu quase acredito, que está interessada nas minhas novidades. E vem me visitar na garagem. e eu estou com tanta saudade de abraçar e beijar...

E foi assim, então, que completei 63 anos. 

Completei 63 anos com o meu rosto coberto.



Completei 63 anos cantando parabéns ao lado da minha mãe.  




Completei 63 anos recebendo carinhos de todos os lados. Mensagens e chamadas que foram recebidas como beijos e abraços. Necessários e apreciados.

Completei 63 anos tão longe e tão perto. Em tempo e espaços reaprendidos. Adaptados e valorizados.

Completei 63 anos com esse mimo da minha filhota e do genro, entregue em drive thru na garagem: flores lindas, um jantar especial (massa recheada de cebola caramelizada com molho bechamel e até  queijo ralado!), e cupcakes, com velinhas e tudo pra eu cantar parabéns pra mim! O jantar de aniversário mais especial que tive em 63 anos! 





E foi assim, então que completei 63 anos...




sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

2021: sobre décadas e dandelions.

 


Dandelion é a nossa flor Dente-de-leão. Uso o nome em Inglês, porque gosto mais  do som. Acho que tem mais som de flor, tem mais cheiro de flor. Além disso, o meu poeta preferido, Walt Whitman, escreveu um lindo poema  chamado "The First Dandelion", e então eu adotei de vez o nome, em estrangeirismo assumido.

São muitas as lendas em torno dessa flor. Dizem, por exemplo, que dandelions são casas de fadas. Com a chegada do homem ao mundo, todas as criaturas mágicas tiverem que se esconder.  Os vestidos volumosos das fadas dificultaram  os seus esconderijos e elas, então, se transformaram nas belas dandelions. Dizem  também que a cor amarela tão intensa é poeira produzida pela carruagem do Sol. Acreditava-se, como outro exemplo,  que esfregar a flor sobre a pele atraía irresistível bem-querer e até as bruxas usavam essa tática para serem aceitas pelas pessoas. Até mesmo a mitologia atribui poderes para essa flor. Segundo a lenda, Teseu teria se alimentado  apenas de dandelions por 30 dias seguidos para adquirir a força necessária para derrotar o Minotauro. No Nordeste do Brasil, dandelions são conhecidos como "Esperança" e há um dito popular que se refere à flor: "Abre as janelas e deixa a esperança entrar na tua casa trazida pelo vento da tarde." Não é lindo? 

Dandelions resistem ao inverno e renascem a cada primavera em florações em tom amarelo vivo. Após florir, formam um papilho de sementes claras que mais parecem plumas. E essas plumas espalham-se facilmente ao menor sopro. Ou pela brisa mais suave. 

Quem, em criança, não adorava colher essas flores que se espalha por todo o lado e as soprava  mentalizando desejos secretos? Uma das mais doces memórias da minha infância em Belo Horizonte era desejar algum desejo bem intensamente e soprar as flores para ver para onde eram levadas... Ou apenas soprar, sem desejos, apenas por soprar.  

Pensando na década que se encerrou no  dia 31 de dezembro de 2020, e  na nova década que se inicia hoje, pensei em toda a simbologia dessa flor. 

A década passada foi cruel. Para nós, brasileiros, foram dez anos de grandes desafios políticos e econômicos. E um enorme retrocesso nos valores humanos... Para o mundo, a pandemia do novo coronavírus selou a década num rastro de mortes, perdas, incertezas e atos de extremas desumanidades. 

Na nova década, teremos que enfrentar esse terrível legado. Teremos que rever conceitos, valores, práticas. Teremos que refazer planos, ajustar expectativas. Teremos que recuar algumas casas para avançar na direção que queremos e devemos. E, para isso, precisaremos de força, otimismo e  muita esperança.

E é aí que dandelions me emprestam a sua poesia. É da imagem da força dessa flor que brota, perene, desafiando o improvável, que resistiremos. É  do otimismo de sempre acreditar na fecundidade dos solos, ou aventurar-se pelo desconhecido, que insistiremos. 

Mas é sobretudo da esperança obstinada e incansável, que venceremos. Sopremos! Sopremos dandelions! Imitemos a sua capacidade de serem levadas pelo ventos. Sigamos, em frente, a favor do vento. Sopremos! Sopremos dandelions! E, a cada sopro, um desejo profundo de cura. Curas físicas. Curas emocionais. Curas individuais. Curas coletivas. 

Que a nova década seja  um imenso jardim de dandelions! E que elas brotem, vigorosas, rompendo o inverno árido e estéril que acabamos de deixar pra trás. Hoje é o primeiro dia! A primeira dandelion! 

Como inspiração, segue o lindo poema do Walt Whitman, seguido da tradução. Como eu gosto desse poeta! 

The First Dandelion (Walt Whitman)

"Simple and fresh and fair from winter's close emerging,

As if no artifice of fashion, business, politics, had ever been,

Forth from its sunny nook of shelter'd grass-innocent, golden calm as the dawn,

The spring's first dandelion shows its trustful face."


"Singelo, fresco e belo quando brota no fim do inverno,

Como se nenhum artifício da moda, negócios, política tivesse um dia existido,

Surge do seu soalheiro recanto a erva abrigada - inocente dourado, sereno como a aurora,

o primeiro dente-de-leão primaveril que mostra o seu rosto confiante." 



 




domingo, 27 de dezembro de 2020

Pernil de Natal.

 A panela era ainda a mesma. Uma assadeira esmaltada bem alta  e com tampa. Comprada em Porto Rico há 28 anos. Um dos seus orgulhos. Riu consigo mesma. Pensou se ter uma panela ideal para assar pernil de Natal é motivo de orgulho. É. Tem orgulho do seu pernil de Natal. E tem orgulho da sua panela ideal para assar o pernil de Natal todos os anos.

Furou o pernil com um garfo. Sal, bastante cheiro verde, alho, 4 folhas de louro, um tiquinho de pimenta dedo-de-moça, suco de vários limões, uma garrafa inteira de vinho branco e cebola. Muita cebola. Cortou a cebola freneticamente. E chorou lágrimas da cebola e lágrimas dela. Nem sabia a diferença entre elas. Eram ambas sentidas, ácidas e frustradas. Estava temperando o seu pernil de Natal para o Natal que não haveria. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como  ela sempre preparou. 

Pernil temperado. Foi  pra geladeira por 12 horas. Teve que fazer mágica para aquela panela caber na geladeira da casa da mãe. A geladeira da casa da mãe tem outras funções. Não tem a função de receber a panela com tampa com o pernil de Natal dentro. E cada vez que abriu a geladeira naquelas 12 horas, lembrou-se  que não haveria Natal. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou . O coração apertou. Sentiu saudades. Saudades imensas do Natal que não terá havido. 

Nunca viveu um Natal interrompido. Seria o primeiro. Detestava esse Natal. Detestava tudo o que lembrava esse Natal. Mas o pernil estava marinando na geladeira da casa da mãe. Por 12 horas. Na sua panela ideal com tampa.

Acordou no dia seguinte sobressaltada. Tanto por fazer! Era véspera de Natal! Deu-se conta, então, que era a véspera do Natal que não haveria. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou. Não havia quase nada para fazer. Véspera de que não haveria. O coração apertou.

Mas o pernil precisava assar. À perfeição. Tem orgulho do seu pernil de Natal. E esse ano ele precisava ser melhor ainda!  Era uma questão de honra. Era uma questão de resistência. Era uma questão de sobrevivência.

Forno da casa da mãe  ligado. Pernil no forno. De repente, ela queria queimar tudo naquele forno. Tudo mesmo. Nem que o pernil queimasse junto. Queria juntar todos os coronavírus do mundo e queimar ali no forno da casa da mãe. Queria queimar as aglomerações. Queria queimar os testes esquecidos num depósito. Queria queimar as máscaras não usadas. Queria queimar as praias e bares lotados. Queria queimar os aeroportos e rodoviárias super lotados. Queria queimar os homens que matam mulheres na frente das filhas. Queria queimar o negacionismo, o pouco caso, o desrespeito, a ineficiência, o cinismo, as más gestões. Queria queimar tudo que tenha provocado tanta dor. Queria queimar tudo que impediu o seu Natal. 

O pernil estava assando. E o aroma delicioso começava a se espalhar pela casa da mãe. Junto com o aroma, todas as lembranças de Natal. As árvores da sua infância em Belo Horizonte... O pai saia para catar um galho seco, fincava num vaso, pintavam de prateado e colocavam meia dúzia de bolas azuis. Às vezes, quando ele viajava, trazia spray de neve!  Outras vezes, colocavam chumaços de algodão imitando neve. Riu consigo mesma. Era uma árvore horrorosa! 

O pernil continuava assando e o aroma agora invadia toda a casa! Lembrou-se dos Natais na casa da sogra. Sua sogra fazia pasteizinhos  natalinos tipicamente italianos: calzunos. Eram recheados de frutas secas e banhados em mel. Dava um trabalhão! Mas sem calzuno, não tinha Natal. Lembrou-se também da árvore de Natal da sogra. A árvore mais cafona que se possa imaginar! Era de plástico branco, ficava em cima da mesa lateral e era decorada com bolas vermelhas. Cafona mesmo. Mas a sogra tinha uma hábito com presentes que ela aprendeu e adotou. Embrulhar presentes. Era um ritual. Às vezes, ela comprava todos os papéis iguais. Outras vezes, variava, mas sempre cobria as caixas. Nunca sabiam, pela caixa, o que era ou pra quem era. Ela adotou o hábito e embrulhava também todos os presentes que iam embaixo da sua árvore. Tem uma pilha de papéis, saquinhos, fitas, e enfeites para embrulhos.  Os filhos compram os presentes e trazem para que ela embrulhe. E ela também ama DE/PARA natalinos! Sempre tem pilhas guardados.

Virou o pernil no forno da casa da mãe. A cor estava maravilhosa! Regou com mais vinho, caldo de limão e água. Não podia ressecar. As lembranças jorravam... Lembrou-se da primeira árvore que fez depois que os filhos nasceram. Todos os enfeites eram de pano, pra que eles não se machucassem. Tem esses enfeites até hoje... Como tem quase todos os enfeites que fizeram na escola quando eram pequenos. O coração apertou... Pensou na sua árvore. Linda. Seu maior orgulho. Comprada numa feira natalina em Bayamón, Porto Rico. Nunca tinha ido a uma feira natalina antes. Enlouqueceu! Compraram a árvore. Enorme! E todos os enfeites em vermelhos e verde. Miniaturas, sininhos, símbolos natalinos, personagens. Montaram a árvore naquele ano e acharam que era a árvore mais linda que já tinham visto! Há 28 anos. 28 anos. E a árvore tem os mesmos enfeites e é linda igual. Começaram a tradição de colocar um enfeite novo a cada ano. Podia ser alguma coisa trazida de viagem, ou comprada mesmo. É sempre o último enfeite a ser colocado na árvore. No topo,  o anjo de pano feito pela sua sobrinha/afilhada. Anjo de asas e cabelos vermelhos. Riu lembrando da montagem da árvore. Quando as crianças eram pequenas, compraram um CD de músicas natalinas cantadas pela turma da Disney. Essa é a trilha sonora da montagem da árvore. Já imaginaram Twelve  Days of Christmas cantada na voz do Pato Donald? Um horror!! Mas é esse o CD até hoje. Há alguns anos, a filha gravou um novo CD de músicas natalinas mais "normais". Feliz Navidad e So this is Christmas estão nele, claro! Ela conhece o gosto natalino da mãe. 

O pernil estava pronto. Perfeito. Cor perfeita! Gosto perfeito! Desmanchava na boca... Os aromas e gostos da infância se misturavam aos da idade adulta e aos da "maturidade". Estava mais emotiva. Quanto mais velha, mais emotiva. Não luta contra isso. Vive. Permite-se. 

O pernil estava pronto para o Natal que não haveria. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou. O coração apertou. E ela chorou. Chorou pela árvore que nem montou este ano. Chorou pelo filho em Nova York que não recebeu os cupcakes que ela tinha  encomendado na Magnolia para ele sentir um pouquinho do calor familiar. Chorou pela filha que não passaria o Natal com ela. Chorou até pelo ex-marido que, mesmo sendo ex, nunca deixou de passar o Natal junto com eles. Chorou pelos irmãos e pelos sobrinhos que não estariam juntos. Chorou pelo sorvete preferido dos sobrinhos que não fez este ano. Chorou pela mãe que nem sabia que era Natal e, por isso mesmo, nem sabia que não haveria Natal. Sempre há Natal. Mas não haveria o Natal como ela sempre preparou. 

Às 19:00 da véspera do Natal que não haveria, preparou para mãe uma linda sopa vermelha para dar cara de Natal. Às 22:00, a filha passou de carro e levou na marmita natalina o pernil que ela tanto adora, a farofa de bacon que ela também adora, os fios de ovos que ela também adora e a sobremesa de frutas vermelhas que ela nem adora tanto, mas Natal é Natal. Às 22:30, video call com a filha, o filho e o ex. O filho estressado porque estava com fome e a sua ceia com os amigos estava pronta. A filha menos estressada, mas também com fome. O ex comeu um sanduiche como ceia de Natal. E assim foi o Merry Christmas familiar.

Às 23:00, a mãe já dormia profundamente. A cozinha estava toda arrumada. O pernil, pronto, seria servido no almoço do dia seguinte.

E aí, a bandinha da rua passou. E tocava músicas natalinas. Ela correu pra sacada. As luzes que enfeitavam os apartamentos e jardins estavam acesas. Via-se, pelas janelas, algumas famílias reunidas. A bandinha tocou "eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel" e ela, depois da Live de Natal do Caetano Veloso, não pode mais ouvir essa música sem sentir uma profunda tristeza... Mas a bandinha continuou, e tocou, e passou.

Ela continuou ali na sacada olhando as luzes. E pensou que sempre há  mesmo Natal. E enquanto houver luzes, músicas  natalinas e amor transbordante no coração, haverá Natal. 

Mas isso, claro, com o seu  pernil assado na sua panela ideal! 






 




segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Tia Yara.

 





Minha mãe tem nove irmãos. Uso o verbo no presente, ainda que muitos deles já não estejam entre nós, porque acredito que a gente nunca deixa de ser/ter irmãos. Irmão a gente é/tem para sempre!

Tia Isa era a mais velha. Era filha do meu avô, que, depois de viúvo e com essa filhinha pequena, se casou com a minha avó. Depois vieram tia Annita, minha mãe, tia Luiza, tia Yara, tio Hilmara, Tia Guanahyra, tio Nilacy, tio Bamba e Toninho. Nomes estranhos, né? Minha avó tinha um gosto bem peculiar para nomes!

Tia Isa  já virou estrela. Tia Annita já virou estrela. Tia Luiza já virou estrela. Tio Hilmara já virou estrela. Tia Guanahyra já virou estrela. Tio Bamba a gente nem sabe, pois ele desapareceu em 1970 e nunca mais soubemos dele. Toninho já virou estrela. 

E ontem, para nossa tristeza, tia Yara também virou estrela...

Temos muita sorte por fazer parte de uma família com tios tão presentes e com tantas memórias afetivas! De tantas lembranças da tia Yara,  escolho duas. A primeira é das inúmeras vezes em que ficamos na sua casa, SEM A MINHA MÃE E O MEU PAI!!,  quando íamos de Belo Horizonte para o Rio. Que farra era ficar no apartamento de Vila Isabel com nossos quatro primos! Era uma alegria! Uma casa cheia de som, de risadas, de brincadeiras, e de gritos da querida Maria, a santa que ajudava a minha tia e que fazia parte da história de todos nós, para tentar, minimamente,  colocar alguma ordem! Era uma delícia!!

A segunda lembrança que escolho para celebrar  - e agradecer MUITO a minha tia! -  foram os carnavais no Vila Isabel! Acho que aprendi a gostar de carnaval por causa dela! Minha mãe nunca teve NADA de carnavalesca... Mas a tia Yara... Ah... A tia Yara era puro carnaval! E nos arrastava com ela! Fazíamos as fantasias iguais - o pareô sempre foi o favorito - e lá íamos nós! Enquanto nós, as meninas, nos metíamos no meio do salão pra paquerar, a tia ficava em pé ao lado da mesa, com um leque na mão se abanando, e dançando sem parar. Dançava, dançava, girava, girava, rodava, rodava. E sempre de fantasia estampada e de flor no cabelo. Ano após ano. Vila Isabel foi a minha grande escola do carnaval! E a tia a minha musa inspiradora!

Tia Yara passou pela dor inenarrável de perder o seu filho mais velho, Carlinhos. Mas jamais deixou de manter a família unida na celebração da vida e jamais deixou a tristeza superar a alegria que vinha dela naturalmente! Ela era a própria alegria de viver! E foi o centro amoroso da sua  linda família: filhos, netos e bisnetos. Tão querida por todos! Tão acarinhada! Tão prestigiada!

Tia Yara era a mais sensitiva entre os filhos da minha avó! Sentia as coisas. Sonhava. E pressentia quando minha avó "vinha buscar algum filho"! E quando tinha esses pressentimentos, pedia, aflita, para ligarem para saber "se a Ieda estava bem." Estava. Felizmente! Mas a minha avó veio mesmo buscar outros filhos...

Sua partida deixa um vazio abismal nos meus primos, seus filhos e filhos de seus filhos... E deixa a nossa família  mais quieta e silenciosa... E com imensas saudades...

Tia Yara não virou estrela. Na verdade, virou pó de estrela. Confetes de alegrias prateadas em  rastros de luz! E já antevejo uma recepção debochada do Carlinhos! E um reencontro cheio de amor com o tio Carlos!


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Memórias de Thanksgiving.

 




No Thanksgiving de 1993, morávamos em San Juan, Porto Rico. Marina e Daniel estudavam na Baldwin School: Daniel já estava no 1st grade e Marina no pre-kinder. 

Na turma da Marina, comemoraram esse dia com uma pequena encenação dos alunos. Marina era uma pilgrim grávida , casada com o pilgrim Diego, aquele menino sentado ao seu lado. Obviamente não me lembro do texto, mas uma das falas da Mari era "...and the baby is coming!" E ela segurava a barriguinha (na foto, infelizmente, não aparece a barriguinha. Eu era PÉSSIMA registradora de eventos!!)

Diego Rosado era  muito bonito. E muito quieto. A mãe era americana e o pai era porto riquenho. Pelo gesto de carinho explicito da Marina na segunda foto, podem ver que ela tinha "a little crush on him" ...

Bem, voltamos para o Brasil em julho de 1994 e Daniel e Marina foram para a Graded School em São Paulo: Daniel ia começar o 2nd grade e Marina o kinder. 

No primeiro dia de aula, em agosto, fui buscá-los e travamos o diálogo típico: "Como foi o primeiro dia?" "Gostaram da professora?" "Já conheceram algum/a amiguinho/a"? Ao que a Mari prontamente respondeu: "Sim, o Diego tá na minha turma." Eu: "Diego quem?" Ela: 'Diego Rosado". Eu: 'Aqui? Em São Paulo?" Ela: "Sim." 

No dia seguinte, procurei a mãe do Diego na escola. Realmente, haviam se mudado para São Paulo, às pressas, por uma transferência de emergência do marido (não me lembro para qual empresa ele trabalhava).E ai, ela me contou, às gargalhadas, que quando o Diego chegou em casa depois do primeiro dia e ela perguntou "How was your day? Made any new friends?", ele começou a chorar dizendo: "I don't want to marry Marina! I don't want to marry Marina!"

Ou seja, o coitado, sem ter ideia do que enfrentaria ao se mudar de país, topou de cara com a minha filha , foi acuado e "forçado" a um compromisso!!!! 

Diego só ficou no Brasil por um ano e depois se mudaram para o México. Para alívio dele, estou certa! 

Resumo da ópera: nenhuma gravidez sai impune! 

HAPPY THANKSGIVING!!!!