"Senhor Watson, venha para cá. Quero falar com você."
(Graham Bell - 10 de março de 1876)
Morávamos em Belo Horizonte quando chegou o nosso primeiro telefone. Preto, indiscreto e barulhento. Foi instalado na sala de jantar, em cima de um carrinho com rodinhas, com uma pequena prateleira que acomodava a lista telefônica e o caderninho que começaria a ser preenchido. Fazia sentido por ser, entre refeições e tarefas escolares de uma família numerosa, o cômodo mais usado da casa.Tenho pouquíssimas lembranças desse telefone e, as poucas que tenho, são da minha mãe chorando ao receber notícias tristes de nossa família no Rio de Janeiro.
O telefone passou a fazer parte integrante - e fundamental - da minha vida a partir da pré-adolescência, já de volta ao Rio. Naquele tempo, conseguir uma linha levava um certo tempo. Tempo em profunda dissonância com a minha impaciente necessidade de sociabilização que aflorava. Necessidade parcialmente satisfeita graças à generosidade da nossa vizinha do andar de cima, D. Algenir, mãe da que veio ser uma das minhas mais queridas e duradouras amigas da vida, Graça. D.Algenir me dava acesso ao seu telefone, quase sempre sob a desculpa de "tenho que conferir uma lição de casa". D. Algenir merece - e um dia ainda farei! - um texto em sua homenagem! Uma das referências mais marcantes da minha adolescência! Saudades da D.Algenir...
Até que o nosso telefone foi finalmente instalado! No mesmo carrinho de rodinhas. Mas, desta vez, no hall de entrada do apartamento em que morávamos na Rua General Glicério, em Laranjeiras. Local também apropriado para garantir a ilusória privacidade de uma família mergulhada em hormônios vocais. A verdade é que o pobre aparelho teve pouco descanso.
Penso naqueles dias com inevitável saudosismo. Mas não o saudosismo de um tempo já passado e tão rico em descobertas e emoções. Sinto falta do fio preto. Aquele fio que trazia e levava mundos e vida em vozes. O mistério do toque. Esperar o toque.Imaginar quem seria. Fantasiar o rosto por atrás da voz. As expressões mutáveis durante as conversas de até duas horas de duração. A privacidade que o fio garantia. A proximidade. A seleção. A comunicação.
Em tempos de explosão tecnológica, impossível não pensar no conceito dessa comunicação. E o telefone, nesse sentido, surge com o maior símbolo. Do meu primeiro telefone preto aos mais modernos smartphones atuais, a evolução (?) da comunicação vocal.
O progresso é inquestionável. A pulverização. A facilidade. A abrangência. Estamos acessíveis. Comunicáveis. Identificáveis. Democratizados. Incluídos. A custo e tempo reduzidos. Compactos. Móveis. Nossos celulares tiram fotos, filmam, leem códigos de barras, pagam contas, indicam trajetos, driblam blitz e tantas outras funções. O mundo corporativo abriu-se a possibilidades incalculáveis. Não há limitação geográfica ou de fuso horário. A nível pessoal também. Pais conseguem monitorar idas e vindas de filhos cada vez mais independentes. E jovens multiplicam suas redes de convivência social , desafiando limites intransponíveis. Dentro desse universo ilimitado e, sob tantos aspectos assustadores, confesso-me usuária assumida e convicta.
Mas, no entanto, apesar de tudo, ainda acho que, ao perdermos o fio, perdemos algo importante. Perdemos, sobretudo, a voz. Aquele "alô" que era tão revelador e que anunciava alegria, ou tristeza, ou promessa, ou desilusão ou esperança. Aquele "alô" inconfundível, determinante, transformador. Pois, por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais o telefone evolui, mais a voz perde a sua importância. Hoje, falam nossos dedos pelos cotovelos, em teclamentos frenéticos cada vez mais ágeis e velozes. Calam nossas vozes e traduzem nossas emoções a partir de símbolos.
Ao perdermos o fio, perdemos a privacidade. Somos bombardeados dia e noite por estranhos oferecendo serviços que não queremos. Somos desrespeitados no nosso direito de escolher com quem falar. Pelo contrário, falamos muito mais com quem não queremos ou nem seque conhecemos. Pois, com quem queremos e conhecemos, teclamos. Saudades dos tempos em que essas invasões eram apenas enganos , educadamente desculpados. Ou intencionais - e inocentes - trotes do tipo "Alô! É do açougue? Não. Então quem é a vaca que está na janela?" !
Perdemos o anonimato e a identidade. Pois somos, passamos a ser, o telefone que portamos. Ele nos rotula, cataloga. Tornou-se acessório obrigatório. Orgão vital e sem o qual não somos reconhecidos no mundo e pelo mundo.
Evolução? Involução? Difícil dizer. Para cada ganho há um perda sem retorno. E, na verdade, não teria mesmo que haver retorno. Mas, talvez, alguns fios invisíveis pudessem ser reconstruídos. E resgatar, ainda que parcialmente, a sua função primeira: a nossa voz protagonista da nossa própria voz!
Muito bom o texto (como sempre). Me levou também à recordar minha vida profissional.
ResponderExcluirMario, é mesmoooo!!! Vc na Telemig deve ter acompanhado de perto essa evolução!! Bjs
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