terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Ele, o outro e os outros.








Tinha chegado no fundo do poço quando o outro apareceu. O primeiro outro. Sentou-se à sua frente e lhe disse que tinha vindo para ajudar. Não questionou a sua aparição súbita, mas estranhou o bigode ruivo que virava nas pontas como personagem de filme antigo.

O outro parecia saber o que fazer. Disse-lhe para agarrar-se em quem realmente era e ele, o outro, levaria quem ele poderia ter sido. Mas quem era aquele outro? Buscava, em vão, referências e reconhecimento. Teria, em algum momento que lhe escapava a memória, cedido à terapia exaustivamente recomendada? Não era isso que diziam? Que lhe ajudaria a suportar-se a si mesmo? Não duvidou mais. Aceitou. A verdade, por menos que admitisse, é que suas lembranças lhe escapavam nos últimos tempos. Mas fosse o que fosse e quem fosse, e se assim o fosse, recebeu a ajuda com alívio imediato!

Sentiu-se leve ao se desfazer de todas as expectativas não atendidas, sonhos não realizados, medos, angústias e decepções acumuladas. E o seu ser acomodou-se melhor no espaço esvaziado. Mas logo percebeu que, ainda assim, havia o gostar e o não gostar de quem realmente era. E o espaço voltou a sufocar.

O outro, por sua vez, visivelmente não esperava poder ter sido tanto. E numa tentativa de também aliviar o sobrepeso, achou justa a separação entre poder/não poder, querer/não querer ter sido. E nessa argumentação lógica e convincente, o segundo , o terceiro e vários outros - até perder a conta - se multiplicaram.

Pensou no paradoxo da multiplicação quando mais divisões se faziam necessárias. E, num último relâmpago de lucidez, rodeado por milhares de outros que eram ele mesmo, sentiu orgulho súbito por ter finalmente desvendado o misterioso - e até então incompreensível  - processo de mitose - ou seria meiose? - das enfadonhas aulas de biologia!

Acordou só num quarto estranho e silencioso. Pessoas de branco deslizavam sem fazer barulho e sussurravam palavras  que ele não entendia.  Ao sentir a agulha penetrar na sua veia, pensou se não deveria deixar o bigode crescer. Até virar nas pontas.

(Publicado no grupo Minicontos em 14.12.2015. Palavra tema: TERAPIA)





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