terça-feira, 6 de outubro de 2015

Palavra de Rainha. A loucura em absoluta majestade.

"Eu sonhei que vou morrer louca e numa terra distante." (D.Maria I).



Cenário? Apenas um vestido. Preto. Opressor. Sufocante. Cobre todo o palco, se alastra pelas paredes e se movimenta em ondas. Como em ondas vêem as dores, devaneios e reflexões de D.Maria I, A Louca.

O monólogo protagonizado por Lu Grimaldi, texto de Sérgio Roveri, conta a história praticamente desconhecida da mãe de D.João VI,  nos apresentando uma personagem densa, dramática e que mais parece tirada de uma das tragédias de Shakespeare do que da vida real.

D.Maria I, conhecida como A Piedosa em Portugal e A Louca no Brasil, foi a primeira mulher a subir ao trono português depois do reinado sangrento de seu pai, D.José. Casou-se com seu tio, dezessete anos mais velho, com quem teve sete filhos. Além do desafio político, entre os quais demitir o Marquês de Pombal, teve que suportar a dor de perder seis filhos. Apenas D.João VI sobreviveu. Ao apresentar os primeiros sintomas de loucura, viveu reclusa no Palácio de Queluz e, já no Brasil, fugindo da invasão de Napoleão, no Convento das Carmelitas, onde morreu em 1816. Foi dela o decreto que condenou Tiradentes à forca. E ela acreditava que o diabo morava nas montanhas do Pão de Açucar.

A diretora Mika Lins fez um trabalho primoroso, intercalando as nuances entre a lucidez e a loucura. Afinal, há mesmo uma membrana permeável onde sanidade e insanidade se confundem. O cenário preto, espelho do luto de tantas perdas, deixa também obscura a passagem do tempo e a definição espacial. E é assim que os diversos recortes de Queluz, da travessia do mar e do Convento das Carmelitas dialogam entre si  e compõem a nossa percepção da Rainha. O vai e vem das lembranças são embalados pelo lirismo sonoro que tão lindamente mescla fados aos barulhos do mar...

Lu Grimaldi dá um show de interpretação! No posicionamento em palco, na leveza com que se movimenta entre 200 m de tecido, pelo encolhimento e agigantamento que intercala com extrema habilidade e nas variações vocais. Mas, principalmente, pela expressividade impressionante do seu olhar, que literalmente nos arrasta para dentro daquela mente doente de melancolia.

E é nesse passeio pela loucura de D.Maria I que nos identificamos com a modernidade da insanidade que nos assola a todos. E sentimos empatia pela dor da mãe que perde seus filhos. E conhecemos a fortaleza da soberana responsável pelos rumos do seus país. E nos encantamos pela multiplicidade e fragilidade de mais uma mulher que envelhece sem saber ao certo quem é e onde está, aprisionada no luto de sua mente e alma.

Em uma belíssima passagem, ela se refere a todas as mulheres que, como ela, já passaram por tantas perdas. E diz que, se sobreviveram e chegaram ao outro lado, todas essas mulheres são rainhas. Um lindo tributo a todas as Marias Loucas, passadas e presentes, submissas e esquecidas pela História intrinsecamente masculina.




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