terça-feira, 29 de agosto de 2017

Smoke free.







Começar a fumar na adolescência, na minha época, era um rito de passagem. Fazia parte. Era "adulto", moderno, charmoso, glamoroso, inteligente.  Em plena ditadura e com a ebulição cultural de Chico, caetano, gil, teatro arena, censura, etc, descobrir e discutir a  vida   entre as baforadas do cigarro era altamente filosófico!

Fumar na minha casa era proibido. E, claro, não escapei do lugar comum dos que fumavam escondido: trancar-me no banheiro e depois borrifar desodorante, mascar chiclete, fumar na escada entre os andares e o típico "não é meu, só estou guardando pra uma amiga!". Uma vez fomos a uma festa e meus pais foram nos buscar. Entramos no carro e minha mãe perguntou: Quem fumou? Nós, estáticas. "Maria Alice, fala perto de mim". E eu com o maior bafo de cigarro. E assim foi com cada uma de nós. Quem escapou? Minha irmã Cristina. No trajeto até o carro, mastigou folhas do jardim que tiraram o cheiro do cigarro. Livrou-se do castigo. A emancipação se dava aos 18 anos, quando éramos oficialmente permitidas a fumar em casa.

No Colégio de Aplicação, o fumódromo era atrás da igreja. Matávamos aula e fumávamos enquanto discorríamos sobre os amores e chorávamos os desamores. O cigarro era cúmplice. Consolava. Entendia. Era solidário. E altamente revelador.

No 3º colegial,  o colégio passou a permitir o cigarro durante as aulas. Era muita fumaça! E o cigarro, companheiro, foi fundamental para amenizar o estresse do vestibular.

Lembro-me de um episódio engraçado já na USP. Tínhamos uma professora no 1º ano chamada Margarida. Uma personagem tirada de um livro do Charles Dickens!  Era uma figura! Conservadora, antiquada, não pertencia a esse século. Ou melhor, àquele século. Uma professora tradicional de Língua Inglesa. Não poupava os discursos moralistas ao melhor estilo real inglês. Mas gostava de mim. E da Patricia, minha colega que também fumava. Ela não se conformava. Num daqueles dias inspirados, nos chamou à parte para  dizer o quanto era errado moças fumarem! E pior ainda se, além de fumar, ainda tomassem pílula! Eu e a Patrícia nos olhamos sem saber o que dizer. Estávamos na faculdade! Na USP! E levando sermão! Grande Margarida! Uma das melhores lembranças que tenho dos meus tempos uspianos...

Fumei. Muito. Mas nunca passei de um maço por dia. Aliás, raramente chegava a um maço por dia. Comecei com Minister e terminei com Marlboro. Fumei Charm pouquíssimas vezes, porque achava fraco demais. Quando fui para o intercâmbio, aos 16 anos, experimentei os mentolados Kool que a minha irmã americana fumava, mas não gostei.

Fumei. Não parei nem mesmo na gravidez. Na sala de consulta do meu obstetra tinha uma foto de um bebezinho com flores na mão dentro da barriga da mãe fumante com os dizeres 'Eu te amo". Vi aquela foto todos os meses, mas continuei a fumar. Diminui a quantidade, é verdade, mas não parei. Daniel foi prematuro e de baixo peso. Quando engravidei da Marina, o Fernando parou de fumar. Não tive a mesma força de vontade e continuei, ainda que com o mesmo risco da gravidez anterior. Marina também foi prematura. Apesar de nenhum dos dois ter qualquer sequela, se fosse possível,  teria feito diferente.

Fumei. De fazer reserva no avião na ala dos fumantes mesmo com Daniel e Marina pequenos. Minhas roupas cheiravam. Meu cabelo cheirava. Mas sempre detestei cheiro de cigarro no carro. E não suportava cinzeiros cheios.

Fumei. Momentos íntimos de introspecção.  De solidão. De reflexão. De lutos. Momentos que o cigarro registrou de viagens, experiências, descobertas. E momentos vãos, automáticos, do fumar por fumar, sem prazer, sem conexão.

 No feriado de 1º de maio de 1995, tive uma gripe horrível. Dessas de acabar com a garganta e nem deixar engolir. De doer tudo. E causar muito mau estar. Uma gripe horrível, mas não pior do que outras tantas anteriores. E porque o meu momento tinha chegado e eu estava pronta, essa  gripe determinou o fim dos meus tempos de fumante. Nunca tinha tentado parar de fumar antes. Parei de uma só vez. Assim. Aquele foi o último dia em que coloquei um cigarro na boca.

Não tive recaídas. Nunca mais dei uma tragadinha que fosse. Ainda mantive um maço aberto de Marlboro por perto, mas nunca recorri a ele. Não foi fácil. Mas não foi difícil. Na maior parte do tempo, o esforço foi suportável. Em alguns momentos, no entanto, as lembranças do cigarro assombravam, cruéis. Sentia o vazio do cigarro entre os dedos, do gestual, da muleta emocional. Sentia falta do conforto após as refeições e nas conversas entre amigos. Lembrava-me do prazer, do gosto, do cheiro. Associava momentos aos cigarros fumados. Os finais de tarde eram piores. Com o dia já resolvido, as crianças cuidadas e com a proximidade da noite, o cigarro trazia paz. Acertava contas. Planejava. Passei a tomar um pequeno cálice de Baileys nesse horário. Como me fazia bem! Ria comigo mesma diante da possibilidade de trocar um vício pelo outro. Mas o Baileys durou apenas o tempo da recomposição.

Vinte e dois anos depois, não  fumar mais é uma das maiores conquistas da minha vida. Não penso mais. Não sinto a menor falta. Não me causa dor nem esforço. Não é mais contabilizado.

Mantenho a lembrança de ter fumado apenas para não perder a perspectiva.Ter  sido fumante fez parte. Fez-me. Não faz mais.

Comemoro. Contidamente. E sem culpa.

 




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