sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Boca de Ouro . Entre batatas e pérolas.







Dizem que Nelson Rodrigues se inspirou no motorista do ônibus que costumava pegar para ir almoçar na sua mãe para criar o personagem Boca de Ouro. Esse motorista exibia, orgulhosamente, 27 dentes de , segundo ele mesmo , "ouro maciço, 24 quilates". A dentadura de ouro foi  levada pro subúrbio carioca, e, parida em ritmo de gafieira, virou dramaturgia de quilate incomparável!

Dizem também, mas esse dizer tem nome e sobrenome, participa da montagem como assistente de direção e, não por acaso, é meu filho, que: "Todo artista brasileiro de teatro em algum momento se depara com Nelson Rodrigues. Seja na escola ou profissionalmente. Seja por estudo, por curiosidade, por deleite ou por trabalho." (Daniel Mazzarolo).

Vou além. E ouso dizer que também o público brasileiro de teatro em algum momento se depara com Nelson Rodrigues. Tem que se deparar. Tem que enfrentar, descobrir, desvendar, com cautela, resistência e desconfianças rendidas até entregar-se  ao deleite  desarmado e apaixonado. 

E vou além. Talvez não haja porta de entrada mais reveladora e encantadora  para Nelson Rodrigues do que a arena construída por Gabriel Villela em Boca de Ouro! Arena é palco caprichoso e ambíguo. Se, por um lado, permite a visão cênica completa e desnuda, por outro, mantém clara a linha divisória entre o real e o irreal, uma vez que toda a preparação de entrada/saída cênica se passa aos olhos do público. Arena separa o ator do personagem. Permite a transformação de um no outro como em um ritual. Torna o palco/picadeiro em lugar sagrado onde essa "incorporação" faz o teatro acontecer. E ninguém orquestra esses ritos de passagem com tanta maestria como o Biel!

Em Boca de Ouro, a arena vira uma típica gafieira dos subúrbios cariocas dos anos 50. Gafieira multifuncional que abriga outros micro-universos derivados como a redação de um jornal, as casas dos outros núcleos, o reduto do bicheiro e até mesmo um necrotério. A iluminação difusa e objetos de referência pontuam cada cenário contido. Impecável! 

Falar sobre o efeito dos figurinos em qualquer produção do Biel é chover no molhado. Mas é também impossível não falar! Porque ele consegue SEMPRE surpreender e se superar! Os figurinos, em especial os femininos, são de uma beleza quase indecente! Sensuais, elaborados, coloridos, traumáticos em tantas tramas. O de Dona Guigui, por exemplo, ostenta uma rosa nas costas parcialmente desnudas que brinca entre transparência e tatuagem. Belíssima! As cabeças estão também particularmente maravilhosas! E, como não poderia faltar, as sempre golas , perucas e máscaras. Símbolos teatrais clássicos sempre travestidos para manter suas funções. Sempre me impressiono com essa capacidade! Mas o toque de genialidade, desta vez, fica por conta dos dedais que vestem os dedos dos personagens com uma sonoplastia absurda! ABSURDA!

O elenco reluz como o ouro. Midas multiplicados que, a cada toque - seja voz, seja postura, seja presença e até ausência - multiplicam ouros de interpretações inesquecíveis!  Malvino Salvador É Boca de Ouro! Mel Lisboa está absolutamente perfeita como Celeste! Lavinia Pannuzio encarna uma Dona Guigui inesperada! Chico Carvalho, mais uma vez, brilha! Que talento para converter-se em 2 personagens tão completos! Cacá Toledo, Leonardo Ventura, Guilherme Bueno também impecáveis!  Claudio Fontana me emocionou como Leleco...  Tantas nuances tão bem capturadas pelo Claudio... E, claro, os dedos mágicos de Jonatan Harold e a voz dadivosa de Mariana Elisabetsky! Elenco afinado que impressiona pelo equilíbrio entre o trágico e o cômico! E que retrata fielmente a ambivalência tragicômica tão característica de Nelson Rodrigues. 

Talvez seja esse o maior mérito do Boca de Ouro de Gabriel Villela! Manter-se fiel ao texto de Nelson Rodrigues, apenas destacando, no encontro equilibrista entre o cômico e o trágico, o que ele tem de mais potente: comportamentos obsessivos movidos por paixões avassaladoras; a morbidez e a ironia feroz; as portas do inconsciente que revelam os conflitos psicológicos; as relações pessoais mantidas pelos antagonismos, abusos e traições; o particular e o genérico que brincam com a universalidade tão específica; e, por fim,  os diálogos precisos que fazem pontes entre o imaginário e o real. O caráter mais expressivo de Boca de Ouro, as versões únicas oferecidas por Dona Guigui, são presentes cênicos! 

Não há como não destacar outra assinatura inconfundível do diretor: o esmero com a música! A musicalidade nas produções do Biel é sempre tão cuidada que é sempre convertida na personagem principal! E com uma função específica! Em Boca de Ouro, a música costura e une o que parece desconexo e descolocado. É pela música que a unidade se (re)compõe. Da abertura com Cidade Maravilhosa ao fechamento com De Frente pro Crime, passeamos pela voz de Mariana por clássicos da época. Arrisco dizer que foi a trilha sonora mais coerente e coesa das peças do Biel! Um colírio para os ouvidos! 

Uma noite de gala! E que continua ecoando pelos meus sentidos. E não deixo de pensar que realmente não há expressão mais batata que batata!

E me pego sonhando um novo sonho...Se algum dia eu for enforcada, POR FAVOR, que seja por um colar de pérolas!! 





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