sábado, 23 de abril de 2016

Shakespeare 400.



Mrs. Stevens foi minha professora de Literatura Inglesa na USP.   Era uma mulher grande e andava com dificuldade, arrastando os avantajados quadris. Não tenho a menor ideia de quantos anos teria na época, mas tinha um rosto envelhecido e  boca e nariz nada discretos.  O cabelo era ralo e caia na altura dos ombros.  Parecia uma personagem tirada de algum  dos clássicos!

 De Beowulf  e Chaucer até Virginia Wolf e T.S.Eliot, nos fez percorrer a história, costumes e a literatura da Inglaterra. Sempre na sua forma peculiar. Falava rápido e sem meias palavras. Ria alto e nervosa. E não tinha  paciência pra perguntas e interrupções.

Quando chegamos a Shakespeare, no entanto, descobrimos sua paixão e  inesperada doçura. Um ano inteiro dedicado ao Bardo do Avon, cuja obra dissecamos com  curiosidade  e espantos sucessivos! Ela tinha em sua casa uma coleção de discos rotação 45 de encenações clássicas por renomados atores ingleses e nos fazia ir até lá, aos sábados à tarde, para ouvi-los! Nos recebia numa pequena saleta  vitoriana, com prateleiras repletas de livros, por onde nos espalhávamos pelo chão e nos  servia chá  e biscoitos. Cada sábado era uma obra. Ela se sentava numa poltrona, fechava os olhos e recitava junto com os atores, em enlevação comovente. Nós, por outro lado, lutávamos entre o idioma no original em entonações dramáticas e pouco compreensíveis e a impaciência de perder nossos sábados numa atividade que nos parecia desnecessária.

Ao pensar nos 400 anos da morte de Shakespeare, as memórias de Mrs. Stevens me fazem sorrir e  agradecer aqueles anos, aqueles sábados, e o  conhecimento e a admiração  generosamente compartidos.





William Shakespeare nasceu num 23 de abril e morreu, ao 52 anos, também num 23 de abril. Sua primeira peça foi escrita em 1590 e, em 26 anos, produziu 38 peças e 154 sonetos. Um legado jamais superado e que tem atravessado gerações e gerações sem jamais perder - nem de leve! - o seu vigor e modernidade. Pelo contrário, a abrangência de sua obra nunca pareceu tao vívida e atual no nossos acervos literários, dramáticos, afetivos e simbólicos.

Sua teatrologia completa tem mais de 2.000 páginas. Ele contribuiu com 3.000 palavras e expressões para a língua inglesa. 27 luas de Urano são nomeadas com seus personagens. Machado de Assis faz 300 referências a ele em 170 de seus  textos. 200 cachorros aparecem em sua obra. Ele contabiliza 60 mortes, sendo 18 suicídios.

A explicação para tamanha  influência parece simples, mas reflete a imensa complexidade de sua obra. Shakespeare, como nenhum outro isoladamente, lapidou todas as comédias e tragédias do ser humano, dissecando , em minúcias que ainda surpreendem a cada leitura, os sentimentos mais nobres e os mais vis e  que moldam  nossos comportamentos e consciências. Amor, compaixão, inveja, vingança, ardis, traição, altruísmos,  inocência, cobiça, sofrimento, salvação e fatalidade brincam e determinam destinos. Nossos destinos.

Gênio dos gênios! Talento dos talentos! Insuperável!

Fosse Shakespeare único na história, ainda assim sua obra seria suficiente para provocar todas as reflexões e  encantar e emocionar pela beleza das palavras e pela intensidade dos sentimentos. Fosse a literatura a única arte conhecida, todas as outras surgiriam naturalmente para completá-la e melhor expressá-la. E a música e a dança e e o teatro e as artes plásticas e o cinema  floresceriam em primaveras eternas apenas sob sua inspiração.

A conexão com sua obra é diversa e abrange vários universos criativos. Apesar do cinema ter produzido cerca de 420 versões de suas obras - em formatos clássicos e adaptados - ainda é na literatura  e no teatro que sua referência me toca mais profundamente.

Ler Shakespeare é uma experiência transformadora. A cada leitura, uma nova experiência, uma nova transformação. Cada uma de suas peças abre possibilidades de  correspondência que não se esgotam! A atemporalidade de seus trabalhos impressionam e sempre encontram eco!

Já tive a sorte de assistir a algumas montagens incríveis de Shakespeare no teatro. Cada uma especial a seu modo. Mas nenhuma se compara à montagem de Romeo e Julieta de Gabriel Villela! Que obra-prima! Uma daquelas expressões artísticas inesquecíveis e que agradeço ter vivenciado!

Missão quase impossível listar ou classificar as obras mais importantes ou impactantes do Bardo. Cada uma tem seu espaço e sua relevância. Cada uma, a seu tempo -  em determinado tempo - emociona mais fortemente. E essa é a maior das belezas do seu legado: sempre permite releituras! Tantas quantas as possíveis, ao longo da história, para retratar todas as nossas humanidades!

Particularmente, entre todas, tenho preferência declarada por Sonhos de Uma Noite de Verão! Ainda que não seja a mais característica, o estilo lúdico, leve, romântico e cômico encanta e envolve em alternâncias  entre as  realidades e  as fantasias que permeiam o mundo dos sonhos.  Uma noite para cada sonho. Para todos os sonhos.

"Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre , em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado." 
(William Shakespeare - Sonhos de Uma Noite de Verão)














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