domingo, 27 de setembro de 2015

Pulsões. "Aliás, quando foi a última vez que você morreu"?

"Procurando bem... Todo mundo tem pereba... Marca de bexiga ou vacina... E tem piriri, tem lombriga, tem ameba... Só a bailarina que não tem..." (Ciranda da Bailarina - Chico Buarque)






A bailarina constitui um dos universos simbólicos mais potentes. Força, persistência,  equilíbrio e precisão em simbiose  indissolúvel com  delicadeza, leveza, fragilidade e graciosidade. A perfeição em suspensão  etérea, capaz produzir movimentos  só possíveis nos mistérios não revelados das fitas, tules e gazes.

A potência da música, por outro lado, com cordas, sopros e teclados em urgências de unidades de expressividade,complementa esse universo como nenhum outro!   O maestro, único capaz de decifrar e  harmonizar acordes nem sempre toantes e previsíveis, surge, portanto,  como a sustentação e segurança para  as experiências sensoriais provocadas pelo casamento música/dança.

Pulsões,  texto de puro lirismo de Dib Carneiro e direção cuidadosa de Kika Freire,  desorienta o público ao trazer para o palco  um espaço indefinido e lúdico para expor as fragilidades secretas e intocadas desses dois símbolos de perfeição - até então - inquestionável.

Pulsões desconexas de dança e música revelam  a obscuridade do inconsciente e seus caprichos incontroláveis e  mantêm a sua comunicabilidade apenas sob a condução do afeto e amor curador e salvador.

"A loucura está profundamente ligada ao desamor. Só o amor salva alguém da loucura". (Nise da Silveira - psiquiatra cujo trabalhou inspirou o texto)

O cenário, lindamente construído, mas ardiloso quanto às suas intenções, revela aos poucos o terreno desconhecido  e que brinca com os fragmentos do belo e não belo, da aceitação e rejeição, do delicado e do sórdido, da memória e do esquecimento - voluntário ou não.  Móbiles róseos de extrema delicadeza , caixinhas de música e pequenas bailarinas em posições e deformidades diversas nos suspendem do chão que nos escapa em lindíssimas mandalas.

Ao fundo, um piano e um violoncelo, pontuando com beleza  indescritível a alternância entre realidade e delírio, conflito e calmaria. De Trenzinho Caipira a Bachianas nº 5 de Villa-Lobos, e percorrendo  diversas cantigas de roda do acervo de nossa memória infantil, a música entra como o personagem capaz de resgatar Maestro e Bailarina do risco de se perderem irremediavelmente nos abismos de  suas patologias.

O figurino, lindíssimo, traz concretude possível ao abstrato que nos desorienta. Ao mesmo tempo em que nos oferece a caracterização que encontra a  nossa expectativa coletiva, distrai com as palavras inesperadas tatuadas nas roupas e corpos. 

Bailarina e Maestro, num jogo cênico que emociona pela plasticidade perfeita tanto quanto angustia pela busca contínua pelo equilíbrio que faça a existência tolerável, são fragmentados pela ausência de lógica  de linearidade dos seus inconscientes  individuais e/ou compartilhados. A atemporalidade daquele espaço  "onde não há mais essa contagem" confunde, mas ainda assim permite as conexões, ainda que efêmeras,  com o tempo  e o espaço "lá fora". 

E é  justamente  no esforço permanente por equilíbrio das pulsões individuais de um e outro - dança e música - que dá-se o encontro amoroso  que sugere a possibilidade de cura.

 A cada encontro, o conforto do reconhecimento e acolhimento. A cada cura, redenção das inúmeras mortes anteriores.  "Aliás, quando foi a última vez que você morreu"?





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