terça-feira, 6 de setembro de 2016

Aquarius. Cancioneiro de memórias.

"Hoje... Trago em meu corpo as marcas do meu tempo... Meu desespero, a vida num momento... A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo..." (Hoje - Taiguara)





Aquarius  surpreende pela   densidade, intensidade e surpreendente suavidade! Incomoda tanto quanto emociona.  E prolonga as sensações conflitantes horas após o término da sessão.

Kleber Mendonça Filho, como seu segundo longa-metragem, confirma sua posição de destaque no cinema nacional. Apesar de abordar  questões, olhares e valores inequivocamente regionalistas, o diretor consegue imprimir temáticas universais e atuais, costurando seus fotogramas com sonoridades inovadoras.

Se em O Som ao Redor essa costura se deu través dos ruídos diversos e tantas vezes imperceptíveis do cotidiano de uma cidade, em Aquarius a música é a grande condutora. E que condutora! Uma trilha sonora grandiosa, impecável, irretocável! Da abertura na voz  inconfundível de Taiguara a Queen. De Gil e Bethania a  Ave Sangria. Nada casual. Tudo intencional e altamente pertinente e eficiente.

Livros, vinis, MP3, Cds, rádios e referências pontuam e constroem as memórias de Clara, a protagonista vivida por Sonia Braga. Todas as formas de música convivem. Nenhuma exclui. Todas agregam.



Destaco a importância da música porque ela é mesmo fundamental na narrativa de Aquarius. Os mais jovens talvez não percebam a ideologia intencional na escolha de Hoje para abertura e créditos finais. Taiguara, brasileiro nascido por mero acaso no Uruguai, fez estrondoso sucesso nos anos 70 com Hoje e Universo do Teu Corpo. Mas abandonou a trilha da Bossa Nova transformando-se num verdadeiro guerrilheiro musical contra a ditadura. Na proposta  do filme em  discutir Resistência como conceito multifacetado,  Taiguara, há exatos 20 anos de sua morte, talvez seja a melhor tradução da militância musical.



Igual referência merece a escolha da belíssima Dois Navegantes de Ave Sangria. O grupo de rock psicodélico  pernambucano surgiu no início dos anos 70 e contemporâneo ao Secos e Molhados e Bixo da Seda. Perseguido pela ditadura, lançou apenas um disco, mas um disco primoroso, cuja polêmica capa apresentava um papagaio drag queen.

São, portanto, as músicas - até quando recitadas -  que fazem as pontes do tempo e passeiam por Recife e constroem os espaços de Clara.




Clara é só espaços. Físicos, emocionais, memoriais. Públicos e privados.Clara é um corpo dentro de uma mulher, por sua vez dentro de um edifício alegórico, por sua vez dentro de uma cidade. Clara é um personagem raro: uma mulher que empresta o seu corpo mutilado como espaço de resistência. Resistência pessoal, de valores, de crenças e de memórias que lhe pertencem por direito e das quais não abre mão. Mas é também a resistência coletiva, aquela que enfrenta as violências urbanas e as forças mais perversas do poder com coragem e determinação.

Sem ignorar ou minimizar o que faz parte do imaginário feminino - maternidade, casamento, sexualidade, carreira, fragilidade, elemento agregador e sustentador da família, empatia, vaidade, etc - Clara transmite a força obstinada pela sobrevivência, independência e auto suficiência numa sociedade machista, preconceituosa, oportunista, ambiciosa e cruel.




Sonia Braga emociona com sua interpretação maravilhosa! Além de toda a sua beleza madura   - e como está linda! - alterna rispidez e doçura, desapego e posse, empatia e desprezo com muita verdade!

Aquarius é um filme bem concebido e bem executado! Micro-narrativas costuradas pelo cancioneiro cuidadoso que produzem uma macro-narrativa universal e potente. Perturbadora. E tão delicada!






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