domingo, 10 de julho de 2016

Julieta. Dores e cores.

"No te vayas... No quiero que te vayas...  Por que si tu te vas... En  ese mismo instante... Muero... Muero yo..."

(Si No Te Vas - Chavela Vargas)

A escritora canadense  Alice Munro,  primeira  autora de contos a receber o Nobel de Literatura (2013), tem se destacado no cenário literário internacional como uma das mais eficientes tradutoras da alma feminina. Suas protagonistas são, em geral, mulheres simples das pequenas cidades do Canadá e que, a partir de alguma súbita transformação (cultural, circunstancial, morte ou doença), mudam o seu destino ou visão de mundo. Poucas escritoras conseguem, no restrito universo do conto, explorar tão profundamente os contrastes e extremos do turbilhão emocional feminino.

Não é de se estranhar, portanto, que Almodóvar tenha se inspirado em Alice Munro para levar, mais uma vez para as telas,  a sua  já reconhecida tradução do mesmo universo. Com suas fortes cores. Com suas dores. Com sua inegável assinatura.

Em Fugitiva (2004), três dos oito contos de Alice Munro relatam momentos diferentes da mesma protagonista: Julieta. Almodóvar costura os três contos, harmoniza os três momentos e converte as narrativas curtas e fragmentadas em um longa denso, tenso e intenso. Uma jovem professora de filologia  clássica conhece seu futuro parceiro e pai de sua única filha numa viagem de trem.  Ele morre numa tempestade no seu barco de pesca e ela, mergulhada em depressão, vê sua filha se afastar até deixarem de se falar por 12 anos. Adapta-se a essa nova vida ainda que com tristeza contida, até que, ao encontrar uma amiga de infância de sua filha, revive todos as suas culpas, perdas e lutos sem conseguir mais mantê-los na zona do esquecimento salvador.

Almodóvar chegou a cogitar fazer Julieta em inglês e no Canadá. Ainda bem que optou pela Espanha! O colorido latino suavizou a narrativa sombria, além de colocar-nos no conforto da familiaridade com o diretor. Sofremos! Mas em terreno conhecido.

Além do mais,como comparar a potência  sonora de "Voy a contarte todo" com qualquer tentativa de correspondência na língua inglesa? O espanhol de Almodóvar traz  muito mais por trás das  palavras.  Há todo um conjunto de intenções, sotaques, musicalidade, entonações pessoais que contribuem para outros conteúdos complementares à "Voy a contarte todo".

Três décadas desfiam as perdas, sofrimento e amadurecimento de Julieta em narrativa não linear, mas que, ao mesmo tempo, não esconde  nem confunde os mistérios voluntários e involuntários da protagonista. Morte, luto, culpa. Mas em sequências de experiências que não determinam desesperança ou desamparo. Há a convivência do trágico com o possível para a sobrevivência. Há recaídas. Há momentos de felicidade permitida.

Essas alternâncias são brilhantemente  potencializadas pela também alternância entre a madura Julieta (Emma Suaréz) e a jovem Julieta (Adriana Ugarte). Duas atrizes no máximo de sua entrega e com elegância raramente tão óbvia em Almodóvar.  Aliás, elegância talvez seja a palavra que define o filme. Elegância no seu sentido mais amplo. E que abraça o feminino como nenhum outro feminino anterior de sua obra.

Há um quê de Hitchcock  na  líndíssima  e tão emblemática  cena do trem e do cervo, que, no conto original, era um lobo prateado característico do Canadá.

Há um quê de Bergman na conturbada e central relação mãe e filha. Mas o conflito se dá pela ausência e não pela presença. Os silêncios falam muito mais do que qualquer diálogo. Julieta não se assemelha a nenhuma mãe anteriormente construída por Almodóvar. E a maternidade  - seus mitos e também suas dores - se (des)constrói  a partir das fragmentos aos poucos compartilhados. A sombra de Antía é a força vital do filme.

Há muito da identidade do diretor. A começar pela vitalidade dos vermelhos que permeiam o filme. A cena inicial é bela e forte. E já explicita, sem véus,  cor e forma da feminilidade latente, vibrante, pulsante e  fluida de vida. Reconhecemos também Almodóvar nas confissões escritas e de cunho tão pessoal. E a atuação de Rossy de Palma como governanta é outro presente!

Julieta  é uma jornada épica  aos mares da dor, do abandono, das perdas. Não por acaso, o mar é personagem coadjuvante  e um dos elementos simbólicos das tragédias de Julieta. Como Ulisses, Julieta enfrenta seus obstáculos internos e introspectivos para encontrar-se em si mesma.

 Julieta aperta o coração. Suspende a respiração. Solidariza-se na tristeza inevitável que a maturidade contabiliza. E emociona com a belíssima música final!




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