quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Bolo de Reis.






O Dia de Reis era sagrado! A avó não abria mão de sua herança espanhola - nunca questionada, mas sem clareza de onde vinha - e reunia as mulheres da família para o que considerava a verdadeira profecia e  bons presságios de Ano Novo! Árvore de Natal desfeita, mesa arrumada. Na cozinha, a avó desenformava o bolo ainda quente. A receita era antiga e, embora tivesse sofrido algumas adaptações aqui e ali -  por conta do gosto e do bolso -  ainda era o melhor bolo de Reis de que se tinham notícias! A avó apareceu na sala para recolher os talismãs do ano anterior. Pois isso também era tradição na família: cada contemplada era responsável por guardar  o símbolo da graça alcançada até o ano seguinte. Nunca ousaram perdê-los. Houve um ano, contam, que a prima Dália não encontrava sua âncora. Reviraram a  casa de pernas pro ar e só após fervorosa promessa a São Longuinho a encontraram. A avó nunca soube disso, mas  aceitou, sem perguntas, a imagem de São Longuinho junto às imagens de Baltazar, Melchior e Gaspar na comemoração do Dia de Reis.

As casadas afastaram-se, torcendo secretamente por suas filhas, irmãs ou primas preferidas. Secretamente, pois a avó não permitia favoritismo a quem quer que seja. O destino era o destino.

As solteiras, então, rodearam a mesa, da mais velha para a  mais nova, como rezava a tradição. Este ano, com duas novidades:  tia Hortência, após um divórcio pra lá de escabroso, voltou como solteira para tentar nova chance de felicidade. As mais novas, no fundo, não achavam muito certo. Afinal, ela já tinha tido a sua chance e não deveria disputar de igual pra igual.Mas, como não se desafiava a avó, o jeito era torcer para que não recebesse nenhum talismã!

A segunda novidade era a pequena Angélica! Na flor dos seus 13 anos, despontava como a verdadeira flor angelical que o seu nome sugeria. Não havia menina mais doce e delicada!E vivia o seu primeiro grande amor. Sonhava acordada e vivia pelos cantos a suspirar pelo tal rapaz - Antonio - que nem sabia que a pequena existia. Mas amor é amor. E primeiro amor é mais mesmo  pra gente aprender a sentir do que pra ser correspondido. A pequena torcia as mãos e seus olhos  brilhavam, acreditando que, se tirasse a aliança no bolo, Antonio seria acometido de amor súbito, se declararia e ela viveria o seu conto de fadas. Ninguém ousava dizer-lhe o contrário.  Pois não tinham igual fé no poder dos Reis?

O bolo foi partido em fatias de espessura milimetricamente iguais, que só muitos anos de prática permitiam. Outro orgulho da avó. As fatias foram passadas uma a uma,  cada uma com gosto de um desejo ou  com uma esperança de sonho a realizar. Mas no fundo, no fundo mesmo, embora não assumissem uma para as outras, o que realmente contavam encontrar naquele bolo era o tal anel! E só o tal anel! O resto era só consolo para disfarçar a decepção.

Mas este ano, nem a tia Hortência nem a pequena Angélica. Rosinha tirou a âncora e já sonhava com a viagem inesquecível onde conheceria o homem de seus sonhos. Camélia recebeu a moeda. Recém formada no magistério, ansiava pelo seu primeiro emprego e, quem sabe, conhecer algum professor que compartilhasse do mesmo amor por ensinar? Clara, que nem  nome de flor tinha, e nem era de verdade da família, mas era como se fosse, tal a amizade que já unia três gerações, recebeu a aliança logo na sua primeira tentativa, acabando com a esperança das demais. Sorriu um sorriso iluminado, certa de que aquele seria o seu ano! E que depois de oito anos de namoro, Geraldo finalmente a pediria em casamento! Às outras, lhes parecia mais do que justo.

Com as sortes do ano devidamente seladas, entregaram-se apenas ao sabor inigualável daquele bolo que desmanchava na boca e unia no coração.

E assim foi-se mais um Dia de Reis. Mais um bolo de Reis. A avó sorriu e  pensou se no próximo ano não deveria esconder duas alianças. Decidiu que não.


(Publicado no grupo Minicontos em 29.01.2012. Palavra tema: ANEL)

Nenhum comentário:

Postar um comentário