quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Tempestade. Sobre sonhos telúricos.

"Somos feitos da matéria dos sonhos." (Próspero. A Tempestade. Ato IV - Cena 1)


Um leve tecido cor-de-mar-caribenho flutuando o movimento do mar revolto e abraçando a réplica perfeita de uma caravela dão o único toque real de água na montagem de A Tempestade de Gabriel Villela. A partir dai, a ilha de Próspero acolhe todo o terra das terras concretas e imaginárias. Realidade e ilusão desfilam em tons de barro - todos os tons de barro - alternando-se em suas funções de vida e arte. Na ilha de Próspero, vida e arte se definem, contradizem, complementam e potencializam.




A última obra de Shakespeare reúne, de forma genial e harmônica, todas as motivações do ser humano - da mais vil a mais nobre - além de destacar o teatro como catalisador dessas motivações. Uma ilha sem latitude ou longitude e que permite brincar com todos os idiomas, todas as teorias teatrais, todos os elementos da tragédia, comédia e romance que respondem pelos movimentos do mundo.

Com todos esses elementos em suas mãos, o diretor Gabriel Villela mais uma vez se supera e cria um universo que arrepia de tão intenso e emociona de tão lindo! Encenado em palco de arena, a ilha de Próspero se mostra inteira e despida.

O que mais impressiona é a delicadeza e suavidade dos elementos de cenário e figurino que amenizam a crueza do barro predominante. madeiras mineiras e cristais aquecem e dão leveza. Que combinação feliz! Os detalhes dos bordados e das rendas nos figurinos já são traços característicos do diretor, mas sempre conseguem surpreender! Destaque para o figurino do espírito Ariel, um verdadeiro sopro de ar na predominância terra. Que artistas talentosos constroem essas obras primas!





Vozes. Sem palavras para o trabalho impecável de vozes. Os jarros de barro remetem ao teatro grego e artificializam as vozes. Sem exagero, com naturalidade.

A música tem sido também personagem constante e de destaque nas montagens de Gabriel Villela. Em A Tempestade, o cancioneiro popular e folclórico é potente na sua coadjuvância. Outro recurso extremamente eficiente para suavizar o terra predominante. A alternância dos instrumentos musicais ao fundo cria uma sonoridade muito delicada! O violino aparece com um presente aos ouvidos! E quem não se arrepia com a abertura com Peixinhos do Mar e encerramento com Suite do Pescador?

O elenco está magistral! Celso Frateschi brilha com o um dos personagens mais densos da dramaturgia mundial e nos conduz generosamente pelas nuances do ódio e perdão, intuição e ponderação, magia e conhecimento. A caracterização de Caliban, um dos maiores monstros e aberrações do imaginário, está perfeita! Ariel é um presente! Que maravilha espiritual! E a dupla Trínculo/Estéfano responde por grandes momentos de comicidade! Miranda e Ferdinando trazem o lado romântico com toques de muita originalidade não gratuita ou casual: a encenação equilibrista nas pontas dos pés traz Romeu e Julieta, outra inesquecível montagem do diretor,  também para essa ilha!





O resultado? Uma obra lindíssima e um grande tributo ao Bardo com a assinatura inconfundível de Gabriel Villela.

O impacto? Potente em todos os sentidos. Uma inesquecível experiência sensorial!

A Tempestade nos oferece um novo conceito de ilha. Passa a ser ilha qualquer pedaço de qualquer coisa cercada por outros pedaços de outras coisas - ou da mesma - por todos os lados. Ilhas se sobrepõem. Vão se complementando e desvendando mundos. Ilha é fora e é dentro. A ilha de Próspero  é aqui e lá, em Minas, e no nordeste, e em todo o mundo. A ilha de Próspero é dentro de cada um e como cada um percebe e se relaciona com traição e lealdade, ignorância e sabedoria, perdão e ressentimento, amor e ódio, trágico e cômico, ilusão e realidade.

Mais além, a ilha apresentada por Gabriel Villela é palco de e para atores. E ao colocá-los na arena, construindo cada cena com a mudança sutil de cenário e de função, convida o público a construir conjuntamente sua experiência de emoção e fantasia. Desconstruir sentidos. Embarcar nessa viagem úmida. Sonhar telúrico.





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