domingo, 21 de agosto de 2022

Pundonor. Pontos de honras.

 

Pundonor, em espanhol,  quer dizer ponto de honra, aquilo do que não se pode abrir mão. 

E é justamente a defesa dessa honra que serve de base para o monólogo dirigido por Bernardo Bibancos, um jovem diretor de apenas 25 anos, mas com um olhar sensível, cuidadoso e muito profissional; e protagonizado por Lu Grimaldi,  que dispensa apresentação pela sua carreira coroada por grandes personagens! 

O texto é da dramaturga argentina Andrea Garrote, o que lhe rendeu vários prêmios, inclusive o de "melhor monólogo da década"!

Monólogos não são fáceis dentro da dramaturgia. A falta de interação entre personagens, a ausência de falares diferentes e de particularidades individuais podem tornar-se cansativas para o público e muito desgastante para o ator. O monólogo EXIGE um texto primoroso, impecável, interessante, coeso e de grande poder de identificação. Ao mesmo tempo, o monólogo EXIGE cenários assertivos, iluminação cuidadosa e um ator/uma atriz de ENORME talento de corpo e voz. Sem essa combinação perfeita, o monólogo torna-se um desafio. 

Tenho, como referência, dois monólogos a que assisti e me impactaram muito. O primeiro, na década de 70 e eu, ainda adolescente, foi "Apareceu a Margarida", numa interpretação inesquecível de Marilia Pera! Arrebatadora! Desconcertante! O texto falava sobre uma professora que, em plena sala de aula, fazia de seus alunos  interlocutores para mostrar a sua visão de mundo, discutir autoritarismo, poder e sexo. Aos poucos, na sua empolgação e abstração, a professora subia na mesa, gritava, ria histericamente, chorava, uma mistura incrível de emoções! 

O segundo foi "Palavra de Rainha", com Lu Grimaldi numa apresentação magistral que, ainda que única atriz, dividia o palco com um dos cenários mais sensacionais que já vi! O enorme vestido preto de D.Maria cobria cada centímetro e movia-se, como ondas, na mente tortuosa da Rainha Louca. Tenho uma afeição especial por esse monólogo, pois o meu filho teve a honra de participar desse projeto como assistente de direção da diretora Mika Lins. Lu Grimaldi encarnou D.Maria de forma tão absurda que, depois disso, só consigo vê-la como "majestade"! A peça fala sobre a "loucura" da rainha atormentada pela morte de seus filhos e pelo medo do desconhecido. O que eram fatos racionais e lógicos, passam a ser sensações e intuições. Uma peça belíssima que traz toda a tragédia da mulher, mãe e soberana numa mente fragilizada, amedrontada e melancólica. 

Pundonor reúne, num certo sentido, as trajetórias e vozes das duas mulheres que a antecederam. Na pele de Claudia, professora de sociologia especializada em Michel Foucault, o conceito de loucura, opressão e dominação são aprofundados e atualizados. Claudia volta à sala de aula após um afastamento imposto. Ainda bastante abalada pelos acontecimentos e por  todo o julgamento, acusações e rótulos impostos, ela usa a teoria de Foucault para externar a sua visão da modernidade e do papel que a sociedade ainda destina à mulher. Loucura e descontrole sempre foram atribuídos às mulheres ao longo da História, quando não correspondiam ao comportamento esperado, ou melhor, definido para elas. Ao confrontar os próprios alunos quanto às suas atitudes, principalmente  quanto ao uso das redes sociais, Claudia questiona o que pode ser considerado normal ou anormal, e o quanto esse conceito muda de acordo com o tempo e os padrões sociais. 




A personagem parece ter sido escrita especialmente para a Lu Grimaldi! Que controle de palco! Que controle de corpo! Que controle de voz! Que controle de olhar! A Lu consegue, com maestria, mesclar a densidade do tema com a leveza e o humor que sustentam o texto. O nervosismo de estar sendo julgada é equilibrado com o "foda-se" e controle de seus pensamentos e convicções. A loucura é uma linha tênue... E tão fácil de ser diagnosticada! E tão difícil de ser compreendida e acolhida... 




Uma das coisas legais dessa peça é o espaço escolhido! Não é teatro. É um anfiteatro dentro da Unisa, Assim, a criação do ambiente de sala de aula é criado de forma natural e não cenográfica!

O primoroso trabalho de iluminação também merece aplausos!  Algumas poucas luminárias espalhadas pela "sala de aula" servem de âncora e de apoio para Claudia. Em uma das cenas, todas são deitadas no chão... Que efeito!

E destaco , para finalizar, a frase do  texto MUITO apropriada para os tempos atuais: "Há muitas pessoas sem inteligência, mas que têm a sua ignorância muito bem organizada."






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