domingo, 26 de setembro de 2021

Deborah Colker e a "cura do que não tem cura"

 


O espetáculo "Cura", da coreógrafa Deborah Colker, é  de uma beleza absolutamente estonteante! E é, ao mesmo tempo, um soco no estômago e um enorme afago no coração!

Deborah Colker tem a inquietude dos grandes artistas! Como cria! Como inova! Como experimenta! E como mistura linguagens em harmonias imprevisíveis! Devo confessar que os seus trabalhos mais recentes me emocionam mais do que os trabalhos mais antigos. "Cão sem plumas", inspirada no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, é uma obra-prima! Só mesmo ela para dar movimento a uma dos meus poemas preferidos!

E agora chega "Cura"! O nome do espetáculo, ainda que não tenha sido inspirado em nada relativo à pandemia, estreia quando estamos desejosos e necessitados da cura literal, mas, principalmente, da metafórica. Estamos doentes de alma. E nunca a cura foi tão urgente.

Para lembrar, Deborah tem um neto, Theo, portador de epidermólise bolhosa, uma doença genética e hereditária rara que provoca a formação de bolhas na pele. A longa e frustrante jornada pela ciência  levou a coreógrafa a percorrer outros universos contraditórios entre si, mas que encontraram a convergência da resiliência. Não da desistência.

"Cura" é o resultado dessas referências e influências. Nos movimentos do corpo, a harmonia científica, história, mitológica, religiosa e musical. A riqueza simbólica é absurda! E nos chega em sons, alegorias e coreografias espetaculares!

O rabino Nilton Bonder responde pela dramaturgia. Quem leu "Alma Imoral" ou já assistiu a algumas palestras do Nilton Bonder entende a escolha. Quem já participou da celebração do Rosh Hashaná conduzido por ele na Pedra do Arpoador no Rio sabe o quanto ele une as pontas da vida e da fé. Fui uma vez, com o meu filho Daniel, por convite da minha amiga Beatriz Tremblais, e foi uma das experiências mais incríveis da minha vida!

Carlinhos Brown assina parte da  trilha sonora. A música de abertura coreografada por um só bailarino, fala justamente sobre a  dor. "Sou mais forte do que a minha dor". Nunca passei por uma dor tão dilacerante, mas tenho amigos que passaram e passam. E consigo entender a força desses versos. A força que não deixa a dor vencer, ainda que a dor se instale em cada cantinho do corpo ou da alma. Nos curativos da dor, a resistência. Que abertura forte, doída e penetrante! Sentimos a dor do bailarino. A dor se personifica no palco. 

Deborah, Bonder e Brown conseguem unir as emoções mais comuns e as mais raras! E fazem um espetáculo de uma grandeza que apenas todos os séculos da existência humana explicam!

A lenda do orixá Obaluê abre "Cura", declamada pelo próprio neto de Deborah, estabelece o lúdico que compõe também a busca pela cura do incurável. É uma abertura inesperada para um espetáculo de dança, mas não poderia haver nada mais apropriado! Na lenda do Orixá da doença e da cura, toda a trajetória do abandono, acolhimento, preconceito e superação. Não poderia haver analogias mais pertinentes!

A partir daí, estabelece-se uma sucessão de movimentos, contorções, distorções, músicas, tradições e palavras. É uma obra tão visual e sensitiva quando verbal. Mérito do Bonder, que escolheu a dedo as palavras certas e que nos incomodam tanto quanto acalantam. A potência das palavras... Já dizia Cecília Meirelles: "Ai, palavras, ai, palavras! Que estranha potência a vossa! Todo o sentido da vida principia a vossa porta:" De palavras isoladas a salmos lindíssimos, os caminhos da dor, da busca, da aceitação, do pedido de socorro, da ajuda, da insistência. 

Gostaria de destacar duas coreografias que particularmente me marcaram e que exemplificam os caminhos mencionados acima.  A primeira foi a simulação do Muro das Lamentações da tradição judaica.   Que impressionante! E a segunda foi a simulação do "caminhar". Caminhar sobre as águas, caminhar pelo íngreme, caminhar só, caminhar amparado, caminhar pesado, caminhar leve. 

O caminhar que, uma vez concluído, resulta na alegria que encerra o espetáculo. Porque a cura do que não tem cura, quando assimilada, pode - e deve! - conviver com a alegria! Essa é a grande lição.

Encerro com uma das referências mais  inspiradoras: HINENI. EIS-ME AQUI!


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