Ali ali só ali se se alice ali se visse quanto alice viu e não disse se ali ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da alice só alice com alice ali se parece (Paulo Leminski)
sábado, 10 de agosto de 2019
Tutankáton. "Tudo já existiu alguma vez".
"Deixai que o espírito do tempo se instale esta noite entre nós, abandonai-vos à sua magia e a seu comando inexorável."
E é com esse convite irrecusável que voltamos ao Egito Antigo de 1300 a.C., durante o reinado do faraó Tutankáton.
O "Faraó Menino" era filho de Akenaton, o faraó que instituiu a primeira experiência monoteísta da História. Sob sua rígida determinação, o politeísmo foi extinto e Áton, o disco do Sol, passou a ser o deus único do Egito.
Tutankáton herdou de seu pai um Egito fragilizado militarmente e em meio a grande insatisfação de todos so segmentos do poder, extendendo-se ao povo que não abandonava sua tradição politeísta. Epidemias, revoltas, invasões e tragédias pessoais, atribuídas à vingança dos 2000 deuses renegados, fizeram com que o faraó retomasse o politeísmo e promovesse Amon a deus dos deuses.
De Tutankáton a Tutankamon. E passou, assim, à História, como o maior dos faraós e em cuja tumba foram encontrados tesouros intactos capazes de reconstituir parte da história egípcia.
Otávio Frias Filho escreveu Tutankáton cinco anos após a queda do Muro de Berlim e o colapso do socialismo soviético. Trinta anos depois, o texto impressiona pela modernidade e pertinência às questões atuais.
A alegoria do Egito Antigo provoca a reflexão sobre o risco e horror da História Única. Questiona muros atuais, intolerâncias, extremos, preconceitos e manipulações. Alerta, sobretudo, sobre o perigo de se apagar a História e impor outra, escolhida como verdadeira e absoluta. E não é o que temos vivido?
"Que os velhos livros sejam lançados ao oceano, que ardam todas as relíquias! Edifiquemos pirâmides de ponta-cabeça e inventemos até mesmo uma nova forma de andar, se necessário, para que em nossos filhos não reste sequer um traço a recordar o passado."
A diretora Mika Lins , amiga pessoal do Otávio Frias Filho, homenageia o dramaturgo com a montagem de sua peça inédita, e nos presenteia com um belíssimo passeio pelo deserto do Egito Antigo!
A Mika tem uma capacidade incrível de produzir cenários e figurinos minimalistas e absolutamente potentes! Na impecável montagem, o cenário é assinado por Laura Vinci e composto apenas por caixotes de madeira de vários tamanhos e formatos. Alguns acomodam sugestões de obras de arte cuidadosamente embaladas, em referência ao cuidado com que esses tesouros foram protegidos contra guerras e bombardeios. Espalhados ao longo do palco, reproduzem as grandes distâncias impostas pelo deserto, e situam o público dentro de um museu. Assim, o espaço físico ganha uma solução eficiente e instigante.
O figurino também segue o estilo da Mika. A figurinista Joana Porto apresenta referências egipcias e africanas em estampas belíssimas e sem contrastes de cor. Tudo é sóbrio, monocromático. Destaque para o lindíssimo adorno de cabeça da Rainha Ankesen. A maquiagem é muito discreta e os dourados espalhados cuidadosamente pelos corpos e, principlamente dedos, remetem à riqueza e luz. Lindo efeito!
A iluminação de Caetano Vilela é de um efeito solar impressionante!
O grupo de atores, todos negros e de faixas etárias variadas, é muito talentoso e de dramaticidade correta. Tanto no gestual quanto no verbal, o tom é coerente e uniforme. Respeitoso. Percebe-se um respeito ao texto, cujo estilo clássico situa-se no limite entre declamação e interpretação. Vence a interpretação, ainda que com toques declamatórios. Mika foi extremamente feliz em atingir esse equilíbrio nada fácil.
Menção especial à atriz Bete Coelho, a vidente cega ao melhor estilo Tirésias de Odisseia. Atravessando toda a extensão do palco enquanto profere suas trágicas profecias, Bete dá um show de talento! E estabelece a linha condutora entre o real e o profético. Que personagem!
Tutankáton é uma aula de História e de como se contar uma história. Com palavras e no palco.
Essa é a beleza maior do teatro. Produzir palcos. No palco, tudo é verdade. Sagrada. Como divindades. Uma ou 2000. Melhor 2000. Verdades únicas são mentiras.
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