sábado, 29 de dezembro de 2018

Bohemian Rhapsody. A voz do dono e o dono da voz.


"O que é bom para o dono é bom para a voz...O que é bom para o dono é bom para vós... O que é bom para o dono é bom para nós..." (A Voz do Dono e o Dono da Voz - Chico Buarque)



Uma porta - apenas uma porta -   separa uma das maiores vozes de todos os tempos  de um Wembley Stadium tomado por  mais de 80.000 pessoas. Do lado de cá da porta,  o dono da voz caminha tenso, se alonga, tenta relaxar o corpo. Concentra-se. Não dá para imaginar o que passa na cabeça do dono da  voz. Não dá para simular a sensação de ser a voz de tantos. Dos 80.000 ali. E de mais 1.5  bilhões conectados pelas tvs ligadas em todo o mundo.

Quem, como eu,  viveu o dia 13 de julho de 1985 já se emociona e se arrepia na cena de abertura do Bohemian Rhapsody. Naquele dia inesquecível, o mundo - o do rock e todos os outros  - se uniu em uma campanha jamais repetida de combate à fome na África. Foram 16 horas de shows simultâneos em Londres e na Filadélfia e os maiores nomes do rock mundial participaram gratuitamente. Estima-se que a arrecadação tenha chegado a 150 milhões de libras.

A escolha dessa cena como abertura não poderia ter sido mais acertada. Ainda que a apresentação propriamente dita só ocorra no final do filme, o lado de cá da porta já estabelece, de imediato, a importância da voz do dono e do dono da voz. Porque, talvez, não haja voz nem dono da voz tão simbólicos das últimas décadas do séc  XX !

A construção da trajetória de Freddie Mercury - profissional e pessoal - apoia-se na construção da sua obra-prima Bohemian Rhapsody. A música de 1975, parte do álbum 'A Night at the Opera" foi, contrariando o rock tradicional dominante, um estrondoso sucesso! Diferente de qualquer referência anterior e longa demais para os padrões musicais (6 minutos!), levou três semanas para ser gravada em quatro estúdios diferentes e desafiou a tecnologia disponível na época.  A brincadeira com a ópera resultou numa verdadeira obra-prima de complexidade comparável a músicos como Liszt e  Brahms, que também compuseram famosas rapsódias.

Na Grécia Antiga, a rapsódia era um fragmento de um poema épico declamado, pelo rapsodista, de maneira independente da obra principal. Costurar os fragmentos da vida de Freddie Mercury e da banda Queen aos fragmentos da composição da Bohemian Rhapsody fazem o filme coeso, coerente e emocionante. Ainda que ela não seja cantada, na íntegra, em nenhuma cena, é ela que conduz a narrativa e apresenta os conflitos, angústias, humanidades e genialidades do dono da voz.

Aliás, o caráter dramático do típico herói grego pontua a trajetória do Freddie Mercury. Há algo heroico nos que, como ele, incapazes de transitarem dentro do senso comum, cedem à força criativa de suas inspirações quase divinas e, sem controlá-las, sucumbem os seus corpos a favor dos seus legados. A pulsão incompreendida é tão criadora quanto destrutiva. Não raro, como no caso dele, o fim é trágico.

O conflito amoroso também entra  na composição do perfil heroico. O amor idealizado impossibilitado de  realização plena é objeto da literatura desde que o mundo é mundo. "Love of my life", hino da minha geração e cantado várias vezes no filme, é um lindíssimo tributo a Mary, seu amor de vida de alma. É melancólico ver esse amor tão puro de essência ser fragmentado - rapsodiado - do desejo do corpo. Que linda história de amor!

Aos que criticam as "livres adaptações" diante da história real ou a forma "rasa" como alguns temas - como a sexualidade ou a homofobia - foram tratados, lembro que o filme não tem a intenção de documentário e, portanto, permite licenças poéticas. A abordagem conservadora e previsível, em pleno 2018, das polêmicas hoje ultrapassadas não comprometem a beleza e emoção do filme.

Bohemian Rhapsody é um tributo a uma das mais belas vozes de todos os tempos. Um tributo a um gênio transgressor e angustiado por ser o que deveria ser em universos pessoais claustrofóbicos e incompatíveis. Uma revisita a momentos musicais únicos, emocionantes e de talentos incomparáveis. Uma revisita  a uma época de grandes transformações, grandes mudanças e grandes novos olhares.

Rami Malek cede-se a Freddie Mercury de forma impressionante! Jeitos, trejeitos, olhos e dentes. Que atuação!

No mais, é apenas deixar-se levar pela trilha sonora arrebatadora e emocionar-se às lágrimas com as cenas que fazem parte da nossa história. Pelo menos, da minha. Que privilégio o meu!

Vivi a época do dono da voz!  E a voz do dono embalou minhas pequenas rapsódias de vida! Que sorte a minha!!

Espero que as gerações futuras nunca deixem de conhecer essa voz e o seu dono!









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