segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Estado de Sítio. Um cometa passava...


"Um cometa passava... Na luz, na penedia... Na erva, no inseto, em tudo uma alma rebrilhava... Entregava-se ao sol a terra, escrava... Ferviam sangue  seiva... E o cometa fugia... Assolavam a terra o terremoto, a lava,... A água, o ciclone, a guerra, a fome, a epidemia;...Mas renascia o amor, o orgulho revivia, ... Passavam religiões... E o cometa passava... E fugia, riçando a ígnea cauda flava... Fenecia uma raça; a solidão bravia... Povoava-se outra vez... E o cometa voltava... Escoava-se o tropel das eras, dia a dia:... E tudo, desde a pedra ao homem, proclamava... A sua eternidade!... E o cometa sorria..."  (O Cometa - Olavo Bilac)






Os cometas, desde as civilizações mais antigas, fascinam e assustam a humanidade. Seu súbito aparecimento foi, durante muitos séculos,  considerado um sinal dos deuses e associado a maus presságios.

Não poderia haver, portanto, imagem mais profética do que a de um cometa branco e brilhante de pó de estrelas para anunciar o caos negro e devastador  com que Estado de Sitio nos oprime.

Albert Camus, um dos maiores escritores do século XX, publicou Estado de Sítio em 1948, em referência   à turbulência espanhola  que culminou com a ditadura de Franco. O medo instaurado sob governos totalitários é o condutor da narrativa forte e altamente alegórica, trazendo a Peste e a Morte como protagonistas da opressão e sitiamentos políticos. Temática  atual e em perfeita consonância com as guinadas políticas observadas, não sem  preocupação, no mundo e, em particular, no Brasil.

A montagem de  Gabriel Villela, mais uma vez,  surpreende pela  ousadia criativa  e simbólica! A sua complexa simplicidade barroca tece a densidade do texto  e reforça a sensação de agonia e impotência diante do medo que paralisa e engessa.  O resultado é perturbador. Lindamente perturbador! Tão lindamente perturbador!




Os cenários de Gabriel Villela costumam trazer inconfundíveis elementos mineiros com coloridos em combinações inesperadas. Em A Tempestade (2015), o inesperado deu-se pelo monocromatismo telúrico, barroso. O mesmo monocromatismo aparece em Estado de Sítio, mas, desta vez, em cores cenográficas descoloridas em pátinas suaves que sugerem o desfazer, o esfumaçar, o borrar das liberdades em risco. Bancos e madeiras maravilhosos com multifunções que pontuam a assumida procedência do diretor. Três outros elementos muito potentes constroem o cenário de José Carlos Serroni: (1) a cortina com uma enorme estrela negra, remetendo à estrela de Davi utilizada para marcar os "inimigos" judeus, com vários dizeres em todo o seu contorno; (2) a nuvem nega que cobre e se entranha e; (3) um carrinho de madeira artesanal em homenagem a vários parceiros e apoiadores. Lindíssimos elementos!




Os figurinos, outro elemento que diferencia a obra do Gabriel, são, como sempre, profundamente elaborados. E belos. Tão belos. Diferentemente dos seus outros figurinos exuberantes em cores e texturas,  os figurinos são negros, com capas, pesados. A  maquiagem é grotesca, indecifrável, irreconhecível. O resultado é a personificação das Pinturas Negras de Goya, figuras inacabadas, desnorteadas, obscuras, corrosivas, abismais. As cores aparecem em tímidos toques e no vermelho intenso por baixo da capa preta da Peste e do verde esmeralda por baixo da capa preta da Morte. A suavidade que acalma um pouco nossa repulsão a essas figuras vem do figurino de Vitória, leve, cálido e aquecido pela belíssima mantilha!




A genialidade do diretor explode também na composição do elenco. Não há como dissociar A Peste de Elias Andreato e toda a sua bagagem dramática! Claudio Fontana empresta à sua Morte qualidades corporais que realmente impressionam, principalmente nos seus "agachamentos". Aliás, desde Lady Macbeth (2012) e seu belíssimo "deslizar", Claudio tem apresentado incríveis assinaturas corporais. Mariana Elizabetski (que voz!) e Pedro Inoue emocionam como Vitória e Diego! Chico Carvalho, mais uma vez, brilha como Nada. Desde a sua interpretação como Ariel em A Tempestade (2015), com suas asas e violino, Chico me tem cativa com a sua versatilidade e enorme talento! O elenco ainda conta com Arthur Faustino, Cacá Toledo, Kauê Persona, Marco França, Nathan Milléo Gualda, Rogério Romera, Rosana Stavis, Zé Gui Bueno e, SIM!, meu filho Daniel Mazzarolo!!



Ainda que Camus já tenha previsto elementos teatrais clássicos, como o Coro, esses elementos ganham maior pertinência sob a orquestração do Gabriel. Assim, a unidade, harmonia e intercalação entre o elenco garantem a interlocução típica das grandes tragédias. Da mesma forma, Nada faz as vezes do narrador que nos explica e conduz ao longo da trama, estabelecendo o distanciamento que separa público e narrativa. Nessa relação se estabelece o teatro que se diz teatro, se faz teatro, se assume teatro. E é mágico!

A música, outro grande elemento que diferencia as montagens do Gabriel, aparece solene, grave, e confere à obra caráter sacro. Músicas ciganas e até em ladino colaboram para compor os templos em que o medo habita sitiado.

O tema é denso. A composição cênica é marcante.. Cores e sons são graves. O resultado é incômodo, perturbador. Lindamente incômodo. Lindamente perturbador.

Volto ao cometa. Que se anuncia catastrófico e inevitável. Branco que se destaca diante do obscurantismo do medo. E que cede espaço, vencido o medo, para o azul quente e acolhedor do mar que embala, poeticamente,  a noite de lua cheia... 


















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