Maria foi nossa empregada por muitos muitos e muitos anos. Já nem me lembro quantos. Ela já trabalhava conosco quando morávamos em Belo Horizonte e nos acompanhou na mudança pro Rio. Era negra, gorducha e aguentava, estoicamente, uma casa com 5 crianças com horários variados e, a partir da nossa adolescência, as refeições com a mesa cada vez mais cheia de amigos. Maria tinha uma melhor amiga, d. Alice, costureira, e um namorado, Bruce, motorista de ônibus de turismo e que a esperava na rua de trás para namorarem. E era analfabeta.
Maria foi a minha primeira cobaia como professora. Fiz dela um projeto pessoal e adorava passar tempo no quarto ela, ensinando-a a escrever as primeiras letras. Falava sobre vogais e consoantes, cantava as musiquinhas que aprendia na escola e ela ia aprendendo. Quer dizer, aprendendo apenas o que tinha se proposto a aprender: escrever o seu nome. Maria Alves. Copiava, copiava, copiava. Um esforço enorme para reproduzir as letras que compunham o seu nome sem olhar para o modelo. Maria Alves. Um nome tão comum quanto o analfabetismo que ainda marca as tantas outras Marias Alves no Brasil.
Não tinha a dimensão, na época, do que significava viver num mundo em que letras não fazem sentido. Ou em que o itinerário do ônibus é definido pelas suas cores. Ser cega, surda e muda sem ser. E precisar se relacionar com o mundo que impõe o mistério implacável e intransponível da alfabetização.
Fui entender esse abismo muito tempo depois. E a consciência da indignidade do analfabetismo marginal me faz sempre lembrar da Maria com admiração ampliada e orgulhosa por, por questão de honra determinada, ter aprendido a desenhar o seu nome!
Ainda que tenhamos evoluído nas últimas décadas, o Brasil ainda ocupa a vergonhosa 8ª posição, segundo a UNESCO, de pais com maior número de analfabetos no mundo. 8,7% dos brasileiros acima de 15 anos ainda são analfabetos absolutos e 27% são analfabetos funcionais. Mais além, apenas 8% da nossa população são considerados "proficientes" ou seja, capazes de compreender e elaborar textos de motivações diversas, além de gráficos e tabelas, e conseguir opinar, argumentar e se posicionar com clareza e consistência.
Tendo nas palavras a minha formação e trajetória profissional, tenho dificuldade em imaginar o mundo desprovido da mágica do ler e escrever. Porque aprender letras é, sim, um processo mágico. Entendê-las na sua primitividade e, a partir daí, experimentá-las em ordenações múltiplas para significados infinitos é agigantar, alargar, libertar, transformar, romper, desafiar, ultrapassar. É multiplicar e desvendar mundos, universos. É mergulhar em realidades sonhadas ou em sonhos reais.
Precisamos intensificar as políticas e ações - possíveis e disponíveis - para erradicar o analfabetismo em nosso país. E acreditar que a primeira e maior das riquezas e grandezas de uma verdadeira nação é ter nas letras, em cada uma, como em cada letra que compõe o nome Maria Alves, diamantes reluzentes!
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